MANUEL JOÃO RAMOS
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A VERNISSAGE

6/10/2022

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A noção de preservação do património é espinhosa. Assim como o é o entendimento do que é criação artística. Segundo os padrões da europeidade – geralmente estabelecidos nas margens do Sena, do Tamisa e do Elba (vá lá, também do Tibre) -, os portugueses são fracos preservadores do património arquitectónico. Sintra e Óbidos não competem na mesma liga que Tivoli e Rocamadour. Grão Vasco e Joana Vasconcelos passam por meros copistas das tendências da Casa Médici florentina e da Documenta de Kassel. É ponto assente pela “inteligência” alfacinha que rebocar palacetes a cimento, instalar janelas de alumínio na Casa dos Bicos, e “estragar” centros históricos com construções moderno-brutalistas é sinal de vandalismo cultural típico do vernáculo da nossa boçalidade.
Por mim, prefiro ver as coisas de outra maneira. Não me aflige substituir calçada “à portuguesa” por lajetas de cimento se isso melhora o conforto dos viandantes. Atrai-me mais o melting pot de São Teotónio que o de Óbidos, o Bairro das Fontainhas em Setúbal que a Rua Cor de Rosa e o Campo de Ourique em Lisboa. E quanto à fraca criatividade artística portuguesa... acho que os estetas procuram a musa nos lugares errados. Se queremos ver boa arte em Portugal, há que fugir da Galeria 111 e do Museu do Chiado, e percorrer as aldeias, vilas, e bordas de estrada lusas para bem apreciar a explosão de criatividade autóctone. Os portugueses não produzem Picassos, Beuyses, Pollocks ou Damien Hirsts, porque não precisam deles em cima da lareira. Antes, dedicam a sua energia, o seu ethos e o seu pathos, à produção de formas geométricas complexas a que dão o nome de “moradias”. Não há uma igual a outra, e nenhuma arquitectonicamente aborrecida, sobretudo desde que a Revolução dos Cravos veio dar rédea livre à imaginação individual e colectiva pátria. No Reino Unido diz-se que “a minha casa é o meu castelo”. Em Portugal, país de estetas espontâneos, “a minha casa é a minha obra-prima”.
Vem isto a propósito do facto da renovação de uma casa do largo da Piedade onde, no andar térreo ficava (e voltou a ficar) o café e mercearia da aldeia. Foi há coisa de dois anos que publiquei aqui um texto chamado “A morte da aldeia”. Falava sobre o encerramento iminente do café, e sobre o impacto previsível que isso teria sobre a vida dos seus habitantes, tanto os usuais como os de arribação. A verdade é que as quarentenas e outras várias restrições destruíram  o negócio do Norberto e da Olga e desde aí a aldeia ficou sem café, sem mercearia, e por isso sem um ponto certo onde as conversas podiam ser postas em dia, a terra da lavoura e o pó das obras podiam ser lavados com minis, o passado e o futuro podiam ser presentes a público.
O edifício foi posto à venda, e veio a ser comprado por um jovem casal holandês que tomou como ponto assente que tanto a mercearia como o café haviam de voltar a abrir, em parceria com a Alexandra, de raíz local. As obras são como são, as licenças camarárias são como sempre serão mas, após meses de expectativa, os sinais da renovação começaram a acumular-se. À porta do prédio, o tijolo e o cimento foram dando lugar às latas de tinta e aos materiais de pavimentação, os pedreiros deram lugar aos estucadores, e estes aos canalizadores e electricistas. No supermercado da vila, uma vizinha confidenciou-me “está para breve”, na rua da Escola outro comentou “agora é que vai ser; o café vai voltar”. Finalmente um dia, frente ao portão de ferro, apareceu um letreiro grafitado a giz tratando o leitor com uma inconfundível familiaridade empática holandesa: “Olá, aldeia! Vamos abrir  o café no dia 15 de Agosto”. E assim foi. Uma maneira diferente de fazer a festa na aldeia.
Sim, dia 15 de Agosto é, tradicionalmente, o dia final da Festa de Nossa Senhora da Conceição, na capela de São Pedro, que este ano mereceu apenas cerimonial religioso. A comissão de festas alegou que, à semelhança de 2020 e 2021, ainda se aplicavam as restrições do COVID e que, por isso, os bailes, rifas e bifanas só regressarão à aldeia no Verão de 2023. Pouco importa mais bailarico, menos bailarico. O que interessa mesmo é que o café e a mercearia estão de regresso e a vida da aldeia sente-se renascer.
Renasce diferente, como é óbvio, assim como o café. Nestes dois anos, mais ou menos, não foi só o Norberto e a Olga que deram uma volta à vida. A pandemia foi má para muita gente, mas boa para certos negócios, em particular o imobiliário. Várias quintas, moradias e casinhas de aldeia mudaram de mãos e de destino. Os casarões foram recuperados, os jardins ganharam novos ciprestes, os alojamentos locais multiplicaram-se e, com eles, as matrículas estrangeiras dos carros. Será incipiente a alteração demográfica, mas já se faz sentir na via pública: há mais passeadores de cães, mais licra a fazer jogging nos trilhos, mais sotaques de terras protestantes.
Dias antes da inauguração do café, a Sabina chamou-me do lado de lá do portão para anunciar de viva-voz a boa nova. Na parede rebocada e pintada de fresco, o novo nome foi aposto sobre o branco alvo, em ferro forjado negro: “LIMA”. Duas pipas e três mesas apareceram a decorar a entrada do café. Tudo pronto para o grande dia, portanto.
Ao chegar ao café, na segunda de manhã, já havia um grupo de fiéis lá dentro, e o Arnauld, a Sabina e a Alexandra cumprimentavam os recém-chegados de sorriso aberto e sentimento de dever cumprido. A vernissage foi um retumbante êxito: entre croquetes, fatias de bolo de laranja, galões e minis, o público apreciou a obra de arte, comentando em detalhe os materiais usados, a disposição dos espaços, não esquecendo nunca de enquadrar a peça na linha histórica da arte local. O café “Lima” é sem dúvida a nova obra-prima da fusion art azeitonenese: a forma tradicional do edifício manteve-se inalterada, mas foi convenientemente rebocada a cimento e pintada de branco; o limoeiro no topo das escadas foi podado; as barricas vieram dar à entrada um alegre toque germânico; os matraquilhos e as rifas foram-se, assim como as fraldas Lanidor e o Baygon para formigas, mas agora há um terminal multibanco muito chique e uma máquina de café reluzente; os bancos e mesas toscos do interior foram substituídos por cadeiras de ferro forjado e mesas de pedra; o pátio interior foi reaberto, prometendo noitadas de poesia francesa e fado corrido. Em suma, um primor de gentrificação suave, que alegra toda a gente, na aldeia e arredores. Só falta uma tabuleta a substituir o antigo “Aqui não se fia”: “Os críticos de arte contemporânea não são bem-vindos”.
 
Jornal de Azeitão, Setembro 2022
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BERARDIZAÇÃO

24/7/2021

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Apesar de relativamente recente, kitsch é uma palavra de etimologia dúbia. Popularizada no mercado artístico de Munique, em finais do séc. XIX, para designar obras de mau gosto, superficiais, imitadoras, terá ganho o seu sentido a partir do verbo dialectal bávaro kitschen (“apanhar lama da rua”). Um outro verbo com a mesma raíz, Verkitschen, significa “vender algo acima do preço”. Nasceu portanto como um termo pejorativo, como marca de distinção entre valores estéticos “elevados”, porque criativos e originais, e “baixos”, porque imitadores e desinspirados, e usado para designar objectos pseudo-artísticos produzidos de forma mecanizada para consumo das massas.
A palavra pastiche é a adaptação francesa do termo italiano pasticcio, e na sua origem significa algo como “pastelada”, uma mescla heteróclita. Tem o mesmo atributo de arte superficial, imitadora. Como o kitsch, o pastiche começou por designar um tipo de arte barata, superficial, de mau gosto, embora tenham sido recuperados durante o séc. XX como intenções de questionamento crítico de acepções artísticas elitistas.
Pechisbeque é o aportuguesamento de um termo inglês que também designa imitações de baixo valor, e que advém do nome de um relojoeiro do séc. XVIII, o londrino Christopher Pinchbeck, o criado de uma liga de cobre e zinco que simulava a cor do ouro. Neste caso, é o material e não o estilo e a forma que revelam o carácter imitador e enganador do objecto em relação ao qual se usa o atributo pejorativo.
É curioso que se saiba mais da etimologia de termos alemães, ingleses ou franceses (e italianos) que dos seus equivalentes portugueses. A origem do significado actual das palavras “parolo”, “foleiro”, “possidónio” e “piroso” é bastante obscura. “Parolo” virá de parole e terá começado por designar alguém que procura imitar de forma desajeitada determinadas formas de falar; “foleiro” (ou “fuleiro”), que pode tanto vir de “fole” como de “fula”, refere-se também a alguém pretensioso e com mau gosto; “possidónio” advém de um nome próprio (Possidónio, aportuguesamento do grego Poseidon) e virá da expressão brasileira que designava um político oriundo da província e procurava imitar as maneiras da capital; “piroso” é a adjectivização de “pires” e poderá ter começado por se referir ao uso pretensioso, pela pequena burguesia de finais do séc. XIX, de pequenos pratinhos para suportar chávenas, imitando as maneiras das classes aristocráticas.
De certa forma, é um pouco parolo, piroso, possidónio e foleiro, usar estrangeirismos como kitsch, pastiche ou pechisbeque, para designar de forma pejorativa certos objectos, acções ou pessoas a quem pretendemos atribuir qualificativos como “superficial”, “imitador” e “pretensioso”.
Nos últimos anos, têm proliferado nos espaços públicos azeitonenses intervenções profundamente foleiras, parolas, pirosas e possidónias. Morangos e cachos de uvas gigantes em fibra de vidro, ovelhas em cimento, arcos pseudo-setecentistas em betão,  oliveiras ajeitadas à maneira de bucho, ciclovias em curvas de guitarra e fontanários pintados a acrílico têm sido depositados em rotundas, esquinas e parques como dejectos de pombo. Ou melhor, como adereços de um cenário de opereta imitadora, alindamentos superficiais – boçais, mesmo - que resultam numa mescla desinspirada de estilos e parasitam de forma primária, pretendendo ser homenagem, elementos patrimoniais da vila e da região.
Diga-se com todas as palavras: os espaços públicos de Azeitão têm sido capturados por uma coligação de interesses de mau gosto e pior ética – os interesses de uma administração local ávida de “obra feita” e dependente das chamadas “contrapartidas” (resultantes da cedência de bens públicos a entidades privadas), e os interesses de autopromoção de certos empresários que, plagiando o super-kitsch, super-pastiche, super-pechisbeque Donald Trump, assentam as suas pseudo-beneméritas doações em mesquinhos programas de fuga aos impostos.
Diga-se numa só palavra, que compila todas as outras: a freguesia de São Lourenço foi berardizada.
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 Jornal de Azeitão, Julho 2021
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​Azeitolândia

16/6/2021

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Se bem me lembro... foi há 15 anos, mais ano menos ano, que me sentei no gabinete do vereador da mobilidade da Câmara Municipal de Setúbal para lhe expor entusiasmado revolucionárias ideias de pedonalização da Rua José Augusto Coelho, o principal eixo viário de Vila Nogueira de Azeitão. Falei-lhe da importância de atender aos utentes frágeis na regeneração urbana, da urgência de melhorar a qualidade dos espaços públicos, da necessidade de revivificação do centro da vila. Citei-lhe, como se deve quando se pretende impressionar políticos portugueses, exemplos de grande sucesso vindos de fora, do estrangeiro. E saí da reunião certo de que tudo o que eu lhe tinha dito havia entrado por um ouvido e saído pelo outro, intocado por qualquer sinal de actividade neuronal. Na altura, admito, movia-me o fervor missionário e civilizador do arauto pregando a sustentabilidade urbana e a bondade da mudança de paradigma na gestão dos espaços públicos viários.
 
Alguns anos depois, por volta de 2012, começou a falar-se de planos de reabilitação urbana para Azeitão, com voluntariosas exposições na Casa do Povo por parte de políticos e técnicos camarários. Em 2013, a Assembleia Municipal aprovou uma deliberação definindo a área de reabilitação urbana de Azeitão (isto é, a área a intervencionar), passo prévio necessário para ser alterado o PDM e criar o plano estratégico da ORU (Operação de Reabilitação Urbana), o que veio a acontecer em 2016. O diagnóstico apresentado no preâmbulo do documento diz o óbvio para quem conhece um pouco a vila: população envelhecida, imobiliário degradado e 24% do casario devoluto. E ancora claramente toda a operação de reabilitação, não em preocupações com a melhoria da qualidade de vida da população, mas nas virtudes da promoção turística da região. Ou seja, o casco antigo da vila é olhado como isso mesmo: um casco. Um casco que, convenientemente esvaziado através de incentivos fiscais à transmissão imobiliária – nomeadamente por via da isenção do IMI e do IMT – poderá ser objecto de “reabilitação” para fazer do centro da vila uma Disneylândia para usufruto das turbas de turistas em busca do “produto Arrábida” (sic) e dos aromas de Baco. Toda a intervenção está pensada para fazer de Azeitão uma máquina de moedas. Para tal, há que lançar mão ao “património”, para o pôr a render: embelezar fontes, polir brasões, limpar fachadas, e decorar tudo a arvoredo e calçada “à portuguesa”. E lá está, preto no branco do plano estratégico, a inevitável referência à pedonalização da área.
 
O que o vereador da mobilidade não quis ouvir vindo de mim em 2005, vem agora o plano apregoar triunfantemente. Mas o entendimento do que é a função da pedonalização de espaços públicos viários alterou-se profundamente: a intervenção, segundo o ORU, não é feita a pensar em quem vive na vila, mas sim em quem a virá visitar; não serve para reter a população da vila, mas para a substituir por outra população mais afluente, provavelmente falante de francês ou de outra língua, europeia ou não. O plano estratégico da Câmara de Setúbal não é um plano de reabilitação mas sim de gentrificação e de turistificação da vila. E o que se passa no pequeno microcosmo de Azeitão, sabemos que se tem passado um pouco por todo o país – um país que pouco produz a não ser sol, que pouco vende a não ser “património”.
 
Vão longe os tempos em que, ingenuamente, me batia por melhor qualidade dos espaços públicos crendo que a pedonalização de ruas podia ser entendida pelos políticos portugueses como a atribuição (ou melhor, a reposição) dos direitos dos peões à rua. Na gíria da política nacional, a palavra “pedonalização” está intimamente ligada a visões de cifrões ganhos à custa do tolo turista que, sem ter aprendido as valiosas lições da pandemia do Covid19 e da necessidade de reduzir as emissões carbónicas das viagens aéreas, insiste em vir cá apanhar sol, afugentando dos centros urbanos os habitantes locais a que eles parecem achar tanta graça.
 
 Jornal de Azeitão, Junho 2021
 

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o desastre da desordem

1/3/2021

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Impressionam, as muitas dezenas de fotografias do livro A Rua da Estrada, do geógrafo Álvaro Domingues. Não é que não conheçamos todos a deprimente realidade das bermas das estradas nacionais e municipais transformadas em mostruários de todo o tipo de comércio, como se o país fosse um gigantesco shopping que se visita de carro. Mas a profusão e concentração de imagens absurdas, página após página, torna evidente o carácter caótico do “ordenamento” urbanístico português, e faz certamente desesperar quem alguma vez pense aventurar-se a procurar uma solução para ele. Funerárias, stands automóveis, lojas de cerâmica, exposições de mobiliário, restaurantes, bordéis e sex shops, montras de piscinas... há de tudo um pouco no contínuo festival processional que é a rede viária portuguesa.
O casario comercial dos Brejos, da Quinta do Conde e de Fernão Ferro estão bem representados no livro, embora não cheguem a ser tão exuberantes como certas bordas de estrada minhotas ou durienses.
São conhecidas as razões deste surreal estado de coisas. Após a revolução de 1974, o sistema jurídico e administrativo português alterou-se profundamente, replicando as estruturas do Estado central a nível autárquico e criando um sistema de dois poderes de governação que as mais das vezes competem em vez de cooperar. Um cínico diria que esta bem intencionada duplicação de poderes, além de fornecer instrumentos de representatividade a nível local, ofereceu uma oportunidade dourada para criar uma hidra de clientelismo político-partidário e fortalecer, sobretudo através das derramas, redes de influência entre autarcas e empresários – em particular os da construção civil.
O certo é que o licenciamento imobiliário cedo se tornou a principal fonte de financiamento municipal e uma espiral de construção desenfreada se verteu sobre todo o país, sem controlo, regras ou dever de obediência a (já de si lacunares) planos de ordenamento do território.
O resultado, sabemos, está à vista: basta olhar em volta para a notável criatividade arquitectónica e variedade decorativa do casario nacional – em si, interessante contraponto do urbanismo britânico, marcado pela estrita e, admitamos, aborrecida homogeneidade construtiva e ornamental.
O que me parece mais interessante retirar da lição das nossas “ruas da estrada” são as semelhanças fundacionais com a situação sanitária presente do país, em plena e desastrosa pandemia viral. O desordenamento territorial, e o complementar desordenamento do sistema de mobilidade, são evidência de uma curiosa aversão ao planeamento e à gestão metódica de recursos. Prever e prevenir são verbos tratados com púdico desprezo, como se significassem o mesmo que “agoirar”. Organizar é um verbo do qual a parte de “racionalizar criticamente” é convenientemente expurgada. Pelos interstícios desta mentalidade e deste permissivismo colectivos, onde os pequenos interesses individuais criam pactos de conveniência com pequenos e grandes interesses corporativos, escorrem rios de laxismo, fatalismo e oportunismo.
Tal como o momento e modo da sua chegada foi imprevisível, também os efeitos da pandemia são difíceis de descortinar – seja em termos sociais, culturais, económicos ou políticos. Olhando para trás, para os efeitos da gripe espanhola, vimos surgir em diversos países europeus regimes autoritários que a crise financeira de 1929 ajudou a empurrar para o totalitarismo e para os horrores da 2ª Guerra Mundial. Seria hoje bom começarmos a olhar para a frente de forma crítica, aberta e abrangente. E começar a planear, a prever e a prevenir. Sabendo também que a história das epidemias esteve sempre ligada a fugas populacionais dos insalubres centros urbanos para as periferias mais arejadas, e que a actual revolução do teletrabalho pode vir a suscitar uma alteração profunda nos padrões de mobilidade centro-periferia, seria racional criar meios de planificar o futuro de Azeitão sem as fragilidades que o desordenamento passado produziu no seu presente. Mas, para que tal milagre organizacional possa acontecer será talvez melhor chamar cá uma meia dúzia de peritos alemães da Budeswehr (exército alemão), para prevenir a construção de novos dormitórios nas margens da vila.
 
 
Jornal de Azeitão, Fevereiro 2021
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O palácio hiper-real

1/2/2021

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“Se ainda fosse precisa prova, o novo mamarracho do Berardo mostra mesmo que há uma lei para os grandes e uma lei para os pequenos. Eu, para fazer um telheiro, tive de pedir a um arquitecto para me fazer o projecto, tive de meter os papéis na Câmara e pagar a licença. Estive seis meses à espera da autorização, que agora por causa do Covid dizem que está tudo parado. O Berardo fez o que quis e ninguém parou a obra.”
 
Testemunhos como o deste meu vizinho são comuns, em Azeitão. Tenho-os ouvido um pouco por todo o lado. A percepção de uma justiça desigual mistura-se a sentimentos de inveja difusa, mas deixa habitualmente em silêncio quaisquer juízos estéticos ou de carácter patrimonial. O que é a razão maior da disputa entre o Estado e o empresário – a proximidade entre a histórica Quinta da Bacalhoa e a antiga estação rodoviária dos Belos, em área classificada do Parque Natural da Arrábida – não tem transparecido como preocupação válida nos desabafos que tenho recolhido. É um pouco como se, para “os pequenos”, o empresário, o governo, o ICNF e a câmara fossem faces da mesma entidade que invejam e condenam: são todos “os grandes”, ligados por laços imaginados de corrupção e abuso de que “os pequenos” se sentem excluídos.
 
O discurso anti-nepotista é fruste mas revelador. Sobretudo pelo seu pesado silêncio, é revelador do estado das ideias populares sobre ordenamento territorial e da frágil apreensão dos valores patrimoniais da região. Conceitos como “histórico”, “tradicional”, “autêntico”, que tendem a ser usados e abusados como parte de argumentos justificativos pelas diversas autoridades, soam a ocos e desgastados, e são apenas percebidos como intrusos impeditivos pela população. Vale a pena perceber porquê.
 
No já longínquo ano de 1975, Umberto Eco escreveu o ensaio Viagens à hiper-realidade no qual relatava o fascínio do imaginário norte-americano pelo simulacro. Segundo o escritor, este fascínio conduziu a uma obsessão nacional pela reprodução hiperbólica, em que o falso se conforma melhor à ideia de real que o próprio real. Se Eco tivesse escrito o seu ensaio mais recentemente, teria certamente adicionado a figura de Donald Trump ao seu catálogo de simulacros made in USA. Mais que empresário, Trump representa ser empresário; mais que milionário, ele ostenta ser milionário; e mais que político, ele finge ser político. Eco teria certamente visto grandes semelhanças entre Trump e o crocodilo robótico com o qual se confrontou ao percorrer de barco um simulacro de rio selvagem, numa das atracções da Disneylandia, na Flórida.
 
Mas desengane-se quem pensar que este fascínio pelo simulacro é, hoje em dia, um exclusivo americano. Pode ser que, numa sociedade de abundância capitalista, seja mais fácil produzir simulacros hiperbólicos e espectaculares. Mas se deslocarmos a lupa, das luzes intensas de Orlando, Hollywood ou Las Vegas para a microscópica região de Azeitão, situada no interstício de duas áreas metropolitanas de um país pobre e periférico, encontramos curiosas semelhanças. Encontramo-las não apenas no novo “palácio” Berardo ou nos reclames azuis que são o pelotão de pedra dos soldados chineses guardando a entrada da Bacalhoa. Os sinais estão por todo o lado, na linha de palmeiras entre o vinhedo da quinta, no arco falso à entrada da vila, no lettering das casas comerciais anunciando doçaria regional, nos beirados e na traça das vivendas   desenhadas à “antiga portuguesa”, nos muretes de pedra a fazer parecer casario antigo, nos azulejos industriais modernos que se fazem passar por artesanais e antigos. Mas também nas palavras que preenchem os discursos de promoção turística da região: “velho”, “antigo”, “senhorial”, “tradicional”. E, claro, nos esforços de embelezamento da área do Parque. A “Arrábida” é manto mágico que encobre, como simulacro de si mesma, toda uma gama de acções humanas que modificam, degradam e desfeiam o espaço natural da serra. A cimenteira e as pedras são os mais evidentes arguidos, mas a multitude de casinhas e casarões que pontuam a área protegida, convenientemente apetrechados de telha cónica e lintéis em pedra talhada, são outros tantos objectos transformadores: confortáveis imitações da vida rural para repouso temporário de urbanitas que, mais que os crimes ambientais da Secil, revelam o paradoxo de pretender “preservar” valores patrimoniais numa área “natural” protegida quando os modos de vida “tradicionais” que lhes davam sentido dali desapareceram para sempre.
 
Nem poderia ser de outra forma, talvez. Pintar Azeitão com cores da “tradição”, da “história” e do “autêntico” parece ser a última linha de defesa da identidade de uma vila e de uma região que há muito deixou de ser um mundo de ruralidade para se tornar um dormitório periurbano, alojamento dos “pequenos” sem posses para habitar a cidade e alojamento dos “grandes” com posses para sair da cidade. Uns e outros irão acabar por visitar um dia o simulacro que é o “palácio” Berardo.

Jornal de Azeitão, Janeiro 2021

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Uma história para esquecer

29/11/2020

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Como alguém uma vez lembrou, as sociedades humanas não conseguem apreender a História com letra maiúscula – quer dizer, a história em toda a sua plenitude e complexidade. A História está para além do entendimento humano. A história é, por isso, sempre “história para alguém”. Há, por isso, multitudes de histórias, ou seja, de selecções possíveis de pontos e eventos do passado vertidas em forma narrativa, para cada grupo, país e tempo. Contar ou escrever história é sempre escolher entre memórias, esquecendo umas e valorizando outras. Por exemplo, há uma história nacional preferida para o final da monarquia (a de Oliveira Martins); há uma para o período salazarista (a Damião de Peres); há uma para o interlúdio marcelista (a de Oliveira Marques); há uma história para o pós-25 de Abril (a de José Matoso). São tanto histórias para entender o passado a que se reportam como entender o momento para o qual foram escritas.

As histórias de Portugal espelham, sem as ler, as histórias de Espanha. As histórias locais divergem das histórias nacionais e estas das histórias gerais ou universais. As histórias liberais catalãs opõem-se às histórias conservadoras castelhanas. As histórias de Lisboa escritas por portugueses distinguem-se das histórias de Lisboa contadas por ingleses. Etecetera. Vem isto a propósito de uma entrevista lida há ano e meio no periódico Setúbal Mais, em que a presidente da Junta de Freguesia de Azeitão anunciava que “o palácio dos Duques de Aveiro foi vendido para se transformar num hotel de charme”. Lida hoje, após os extraordinários acontecimentos despoletados pela pandemia do Covid19, esta é uma memória em relação à qual é difícil decidirmos se vale a pena lembrá-la ou esquecê-la. É possível que o projecto esteja suspenso, adiado ou arquivado. Não faço qualquer ideia da situação actual, mas há duas reflexões que merecem ser feitas a propósito da informação disponibilizada.

A primeira é mais ou menos óbvia: a pandemia provocou um cataclismo na indústria turística mundial. Portugal é (ou era) um dos países do mundo mais dependentes deste sector – e por isso mais sensíveis às suas vicissitudes. Em termos estritamente económicos, as actividades turísticas contabilizaram 19,1% do PIB nacional em 2019, fazendo de Portugal o quinto país do mundo em que o turismo mais impacto tem (tinha) em termos de riqueza produzida. Hoje, penso que há razão para nos perguntarmos se faz sentido fingir que “vai ficar tudo bem” e fazer como se a pandemia fosse apenas um pesadelo passageiro após o qual podemos voltar ao “normal”. Um dos mais visíveis, relevantes – e malbaratados – patrimónios monumentais da região é o “palácio dos Duques de Aveiro”, enquadrando e encimando, com o “convento de São Domingos”, o rossio de Vila Nogueira. A trágico-cómica história do seu progressivo estado de abandono merece ser evocada para ajudar a pensar o seu futuro e o da vila. A pergunta fica aqui a aguardar resposta: valerá a pena destiná-lo à iniciativa privada hoteleira numa era pós-Covid?
 
A segunda, e complementar, reflexão é a seguinte: porque designamos ainda hoje ao arruinado edifício de “palácio dos Duques de Aveiro”? Não tivesse havido pandemia, estaríamos já hoje talvez a contemplar o arranque das obras de um “Palácio-Hotel” no centro histórico da vila. Mas o “palácio” foi durante mais séculos “ruína de palácio” que “palácio”, um aspecto da história local que parece preferível manter sob silêncio. E, antes disso, o “palácio” foi durante setenta anos “fábrica real de estamparia e tecidos de Azeitão”, que precedeu a hoje mais conhecida fábrica de chitas de Alcobaça. E antes da cedência do terreno para a construção do “palácio” em 1521, terá sido terreno de horta dos frades dominicanos desde a construção do convento em 1435. Porque se prefere chamar ao monumento “palácio” e não “fábrica”, “horta” ou “ruína”? Não tenho resposta, mas compreendo que seja mais conveniente para quem procura promover o turismo regional – mesmo em país republicano – polir pergaminhos aristocráticos que expor chagas patrimoniais ou valorizar histórias industriais.

Mesmo silenciando o bárbaro acto punitivo de um Marquês de Pombal utopista e nivelador contra a alta nobreza que resultou na destruição das propriedades dos Távoras e dos Aveiros (mas ainda assim preservou a de Azeitão), é “charmoso” falar da ruína como “palácio dos Duques de Aveiro” – é uma forma de contar a história local que valoriza a sua ligação à corte real e oblitera a sua ligação à emergente (e abortiva) economia industrial do país. E é também um silenciamento da incómoda tendência portuguesa para ceder património público a privados sem quaisquer garantias de que ele seja convenientemente preservado. Foi isso mesmo que aconteceu em 1775, com a atribuição de um alvará de cedência do “palácio” a empresários aventureiros que quiseram fazer uma fábrica de estamparia sem se preocuparem com os problemas logísticos causados pela ausência de estruturas para a importação de algodão e sua fiação. Foi isso mesmo que aconteceu quando a Fazenda Pública decidiu leiloar o “palácio” em 1846 sem procurar garantir a sua preservação futura. É possível que daqui a uns anos alguém esteja nestas páginas a discutir o charme decadente de um “Palácio-Hotel” desocupado.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2020
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A morte da aldeia

12/10/2020

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Primeiro, foi a carrinha do peixe. Costumava chegar às aldeias pelas dez da manhã, com o chicharro, a chaputa e o sargo ainda frescos da lota de Sesimbra. Tocava a buzina, abria a porta traseira e o peixe era arrematado logo ali pela mulher da casa, para o almoço da família. Com o passar dos anos, o velho peixeiro deixou de chegar todos os dias à mesma hora. Três dias por semana, depois dois dias, depois um dia. E depois, deixou de aparecer. Agora, os filhos ou os netos que foram viver para a vila ou para a cidade trazem uma vez por outra duas ou três postas congeladas do super ou do híper.

Depois, foi a carrinha do pão. O papo-seco e o pão da Quinta do Anjo (ou era da Azóia?) chegavam pontualmente ao largo. As mulheres e, vá lá, um ou dois homens chegavam-se à carripana de saco na mão (era de pano, passou a ser de plástico) para levar a encomenda do dia para casa. Um dia, deixou de se lhe ouvir a buzina. Ainda chega, mas sem se fazer anunciar, ao largo da Piedade e algumas das mulheres ainda esperam por ela para comprar o pão no café-mercearia. E enquanto esperam, põem em dia mexericos e chocalhices: tal parece que vai um neto, tal foi ao centro de saúde com a maleita de sempre, tal zangou-se com o marido ontem à tardinha.

Depois, foram os raros moços de fretes que deixavam panfletos publicitários nas caixas de correio da aldeia. Eram os anúncios disto e daquilo, que por vezes ficavam amarelos do sol porque não eram recolhidos ou se arrastavam pelo asfalto a golpes de vento. Um dia, desapareceram os panfletos – à excepção, claro, dos cartões de visita dos angariadores das agências imobiliárias, à coca de tragédias familiares para almoedar casario à consideração de lisboetas endinheirados ou reformados franceses.
O carteiro ainda aparece uma vez por semana, agora montado numa motoreta em substituição da bicicleta, a deixar aqui e ali os envelopes da segurança social e da caixa geral de aposentações. Mas até quando?

Este ano, à conta do Covid, os voluntários da coletividade escusaram-se a tocar às campainhas e badalos das aldeias para pedir contribuições para a festa da Senhora da Conceição. Até porque nem se sabia se podia haver ou não festa. Talvez no próximo ano, se as coisas melhorarem. Talvez por MbWay, ou contactless card. Talvez a generosidade interesseira da Secil cubra os gastos e não seja preciso bater às portas que ainda se vão abrindo aqui e ali.

E depois veio a quarentena. O café-mercearia esteve meses fechado, e o negócio levou um grande rombo. Como abre às oito para servir a clientela feminina que precisa do pão e dos mais ingredientes para preparar almoços antes de se meter ao caminho do seu ofício, os tendeiros não puderam recorrer aos subsídios do estado – são os grandes que conseguem estender a mão e arrecadar as benesses; os pequenos são como o mexilhão que se lixa, preso entre a onda e a rocha. E depois ele há tantos clientes que já não querem frequentar o café porque há outros tantos que entram sem máscara e ainda não se desabituaram de falar alto e expelir reais ou imaginários miasmas. Os miúdos já não vêm jogar nos matraquilhos, os crescidos já não se interessam pelos prémios da caixa de furos. Para mais, o senhorio não quer renovar o aluguer e assim nem se pode pensar no trespasse. O comércio vai mesmo fechar no final do ano.

Vai mesmo fechar o único ponto de encontro das gentes das aldeias, o sítio onde as histórias são contadas e as novidades são repetidas, onde se ainda se pode tomar o café, a mini ou o bagaço, e gozar um momento de paz entre limpezas de terreno ou mudanças de pasto das ovelhas. Pouco importa, dirão os endinheirados lisboetas e os reformados franceses. Por nós, preferimos pegar no SUV e sentar-nos na esplanada da vila a empanturrar-nos de tortas e capuchinos. As compras, fazemo-las no super ou no híper, e de preferência via online com envio para a residência, que até dá descontos especiais.

Quanto aos cada vez mais idosos aldeãos, que perderam o direito ao peixe, ao pão e à convivência no sítio do costume, fiquem lá com as memórias do que a aldeia foi e de como morreu. Excluídos, marginalizados, esquecidos, a olhar desconfiados para o embonecrado caramanchão florido e sempre vazio de gente que a Junta mandou instalar ali no largo, para se convencer a si própria de que fez qualquer coisa pela terra. Ah, sim, é verdade: o caramanchão é um bom postal turístico para seduzir endinheirados lisboetas e reformados franceses a comprar o que resta do casario por “restaurar”.
 
 Jornal de Azeitão, Setembro 2020
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    Manuel joão ramos

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