MANUEL JOÃO RAMOS
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A traseira

21/3/2023

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O fascínio que os pavões nos causam tem raízes históricas profundas na cultura ocidental, mas não apenas. Faz anos, deu-me para ler uma coisa ou outra sobre pavões orientais. Em particular, os estranhos caminhos percorridos, entre a Síria e a Índia, pela figura do pavão na literatura, no ritual e na arte. O chamado culto do pavão, praticado pelos Iasidis do Curdistão, é como que uma evocação local de um complexo circuito que conecta os antigos cristianismos sírio e sul-indiano. A sua ligação com a veneração de São Tomé, o evangelizador do Kerala, é tornada explícita numa série de textos alegóricos que dão conta da morte do apóstolo, trespassado pela seta de um caçador que o confundiu com um pavão que levantava vôo (ou, em certos relatos, o santo assumiu mesmo a forma da ave). A ligação metafórica entre um e outro é fundada na noção de imputrescibilidade dos corpos de ambos: tal como o cadáver de São Tomé ficou preservado ad eterno devido ao facto de ter tocado a carne de Cristo, no célebre episódio da incredulidade na Ressurreição, relatado em João 20:24–29, à carne de pavão são atribuídas qualidades muito particulares na literatura enciclopédica antiga.
 
Plínio-o-Velho refere, na História Natural, que os pavões eram criados em Roma para serem servidos em banquetes, porque a sua carne não apodrecia (X, 23). Santo Agostinho fala também sobre a carne de pavão, notando que esta tem uma particularidade miraculosa: a de resistir longamente à putrefação depois da morte. O autor da Cidade de Deus pôde comprovar, em Cartago, que mais de um ano depois de ter mandado guardar um pedaço de peito de pavão assado, a carne ainda estava em condições de ser consumida (Cidade de Deus, XXI, IV, 1, 3).
 
Fazendo-se eco das informações dos bestiários medievais sobre o pavão, Brunetto Latini nota que, apesar da sua beleza, o pavão tem um pescoço "serpentino", voz de diabo, e pés de "safira" (i.e., azuis e sem brilho). Ao voltar as costas aos homens, orgulhoso da sua plumagem, mostra a fealdade da sua "parte traseira"; ao contrário da carne da perdiz, a carne do pavão é dura e pouco saborosa (Livro do Tesouro, CLXVIX). Gossouin de Metz sublinha também a dualidade dos sentimentos expressos pelo pavão, correlativa da sua ambiguidade morfológica: olhando para a sua cauda aberta em leque, sente-se um rei, orgulhoso da sua beleza, mas quando olha os seus pés, "que são feios", deixa cair a sua cauda para os cobrir, envergonhado (Image du monde, II, VI, CD). A duplicidade que caracteriza o pavão é tema para uma descrição particularmente eloquente de Hildegard de Bingen, que refere que a carne de pavão não é saborosa, mas não apodrece facilmente (ao contrário da carne de perdiz): a vesícula pode ser conservada e aplicada sobre as escrófulas para assim "fazer sair a putrefacção" da pele; também as plumas podem ser usadas para impedir a putrefacção das queimaduras (Física, VI, III).
 
Existem, portanto, razões óbvias para fazer do pavão um avatar de São Tomé: trata-se de sublinhar o carácter imputrescível da carne morta de um apóstolo que foi tentado pelo pecado do orgulho da sua incredulidade perante a palavra de Cristo.
 
A ideia de que a fealdade se esconde por detrás da beleza, e de que a vergonha vence o orgulho, está bem expressa nas traseiras do edifício das Caves José Maria da Fonseca, em Vila Rica. A sua fachada frontal, que incorpora a Fonte dos Pasmados, encontra-se muito bem cuidada e é legítima fonte de orgulho dos seus proprietários e dos azeitonenses em geral. Mas, se virarmos a esquina da Rua Direita (a Rua José Augusto Coelho) e entrarmos na estreita lateral cujo nome parece maior que ela (a Rua Helena da Conceição dos Santos e Silva), circundando o longo edifício caiado, deparamo-nos a certo momento com uma visão que nos faz lembrar a “parte traseira” de um pavão. Em vez de descrever o pedaço de paisagem, remeto o leitor para a fotografia anexa - porque uma imagem vale mil palavras, que são mais que aquelas que este curto texto pode comportar.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2023

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