MANUEL JOÃO RAMOS
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Falemos sobre as publicações académicas

17/10/2021

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O “caso Raquel Varela” é um fait-divers sobre o qual não tenho intenção de me pronunciar, senão na medida em que é uma rara decorrência pública de um imenso escândalo religiosamente escondido do conhecimento geral.
 
Num artigo publicado há alguns anos no The Guardian, George Monbiot referiu-se a este escândalo nos seguintes termos:
 
“Quem são os capitalistas mais implacáveis do mundo ocidental, cujas práticas monopolistas fazem o Walmart parecer uma loja de esquina e Rupert Murdoch um socialista? (...) Não obstante os muitos candidatos, o meu voto vai, não para os bancos, para as companhias petrolíferas ou para as seguradoras, mas para os editores académicos. Este sector pode soar recôndito e insignificante, mas é tudo menos isso. De todos os esquemas fraudulentos, o que eles protagonizam é o que precisa mais urgentemente de ser denunciado às autoridades de concorrência.”
 
O negócio dos editores académicos é multimilionário e as suas margens de lucro líquido anual chegam a ultrapassar os 35%. Três editores controlam praticamente 50% do mercado mundial: a Elsevier, a Springer e a Wiley. E que negócio predatório é esse? Controlando a larga maioria das revistas científicas de acesso fechado, que são aquelas que maior “factor de impacto académico” têm (isto é, as que são mais reputadas), recebem a título gratuito ou até a troco de somas variáveis os artigos provenientes da rede mundial de universidades e laboratórios de investigação. Em seguida,  alugam a leitura desses artigos de novo às universidades e laboratórios, retendo em perpetuidade os direitos de autor. Um artigo científico é o resultado palpável de uma investigação que, em certos casos, pode envolver milhares ou milhões de euros (pense-se, por exemplo, nos recentes programas de investigação sobre o SARS-Cov2). A publicação de artigos científicos é o critério primordial de avaliação universitária em todo o mundo, e a leitura de artigos científicos é o principal mecanismo de transmissão de conhecimento científico em todo o mundo. O público universitário mundial é apreciável: 250 milhões de alunos, 15 milhões de docentes, 10 milhões de investigadores, estudando, ensinando e investigando em mais de 28 mil universidades. Este público leitor, voraz consumidor, é o alvo dos editores académicos, e simultaneamente a força de trabalho produtora do produto que eles captam e redistribuem – como disse acima, retendo sempre os direitos de propriedade intelectual.
 
A transformação das universidades, de edifícios corporativos no sentido medieval em empresas geradoras de lucros, todas elas directa ou indirectamente assentes no modelo anglo-saxónico, contribuiu para estandardizar não apenas estruturas organizacionais e de conhecimento, mas sistemas ideológicos e comunicacionais. Neste modelo, os estudantes deixaram de ser estudantes e passaram a ser clientes pagantes, os graus e certificados transformaram-se em produtos, os docentes foram proletarizados, e as administrações plasmaram as das companhias comerciais e industriais. Proliferaram os  CEOs e FCEOs, instituiu-se a contabilidade analítica com vista ao aumento de margens de lucro, à redução de passivos e à eliminação de sectores não competitivos, numa lógica declaradamente concorrencial.
 
Esta proliferação de universidades e institutos públicos, semi-públicos e privados, geridos como empresas certificadoras de “conhecimento”, é o pano de fundo sobre o qual o negócio dos editores académicos medra imparável. As universidades e laboratórios gastam parte substancial do seu capital na produção de artigos científicos que oferecem gratuitamente aos editores para que estes, após catalogação e bibliometrização, lhos aluguem, seja individualmente ou em pacotes. Face à evidência da fraude, várias universidades norte-americanas e europeias procuraram reagir, ameaçando deixar de adquirir estes pacotes de revistas científicas e procurando promover a publicação em acesso aberto. A resposta dos editores foi adaptativa: renovaram o ataque à reputação das publicações em acesso aberto, consolidaram a imagem de qualidade dos seus produtos e, no caso da Elsevier, pressionaram a União Europeia de forma a tornarem-se o instrumento gestor e certificador dessas publicações que ameaçavam o seu monopólio.
 
A certificação de um artigo ou de uma revista (o seu “factor de impacto”) é feita por mecanismos informáticos, através de algoritmos medidores da quantidade de citações geradas, e não da avaliação interna da qualidade dos argumentos e da sua refutabilidade. Nesta corrida, os falantes de inglês têm uma vantagem indiscutível, já que esta se tornou a língua de comunicação mundial no mundo universitário: uma publicação em inglês “vale” três a cinco vezes mais que em quaisquer outras línguas na avaliação interna anual de um docente ou investigador. E a publicação em revistas de “quartil” superior – geralmente, as que são propriedade do cartel Elsevier-Springer-Wiley – é a única forma de assegurar empregabilidade e progressão na carreira.
 
São as propinas, os subsídios estatais e o chamado mecenato académico, que pagam a investigação científica e consequentemente a elaboração dos artigos académicos. Mal sabem os pais que, encarecidamente, se esbulham para que os seus filhos cheguem à universidade e que se sacrificam para lhes pagar propinas cada vez mais elevadas, que o seu dinheiro serve para alimentar uma das mais rentáveis máquinas de moedas da actualidade. Não admira que uma multidão de milhões de docentes e investigadores faça tudo por tudo para que as suas publicações se multipliquem e cheguem ao topo da colossal e sempre crescente pilha de dados informáticos sobre a qual se ergue o império dos editores académicos.
 
 ​O Público, 5/10/2021

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