MANUEL JOÃO RAMOS
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Sonhos, ilusão e outras virtualidades

29/3/2025

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Em Fevereiro de 2014, a chamada “revolução da dignidade”, centrada na Praça Maydan, em Kiev, dominava os noticiários em todo o mundo ocidental. Mas na Índia, onde eu me encontrava a dar aulas, as televisões não reportavam nada sobre o que se estava a passar na Ucrânia. Estava-se no início da campanha eleitoral que viria a dar a vitória ao Bharatiya Janata Party (BJP), um partido nacionalista hindu, e consagrar como primeiro-ministro o ex-governador do Gujarate, Narendra Modi. Falava-se sobretudo dos projectos de construção de um templo dedicado a Rama em Ayodhya sobre as ruínas da mesquita Babri, destruída por hindus em 1992, e da destruição de todos os exemplares de um livro The Hindus, an Alternative History, da indianista norte-americana Wendy Doniger. A editora, a Penguin India, fê-lo para evitar ser condenada judicialmente na sequência de uma queixa criminal apresentada pelo “Movimento para Salvar a Educação” (Shiksha Bachao Aandolan Samiti, SBAS), um grupo fundamentalista hindu. 
O relativamente obscuro livro foi imediatamente pirateado, ganhando muitos milhares de leitores a partir do momento em que foi banido e a sua leitura proibida ao abrigo de uma lei de 1988 que proíbe a divulgação de conteúdos que ofendam a fé religiosa na Índia (promulgada por altura da publicação dos Versos Satânicos, de Salmon Rushdie). A tese central do livro é que o hinduísmo é historicamente uma religião tolerante e permissiva, argumento que ofendeu os fundamentalistas hindus do SBAS, que reclamavam o seu direito à intolerância religiosa. 
Uma outra obra da autora, Sonhos, Ilusão e outras Realidades, estuda a importância do paradoxo na construção do pensamento filosófico indiano, em particular no que respeita à relação, que ela vê como não-binária, entre o sonho e a realidade (ilusória) desperta. Ela vê este não-binarismo como oposto ao binarismo do pensamento ocidental, não se apercebendo, aparentemente, de que o seu ponto de vista é inerentemente ocidental, incapaz de relacionar o pensamento indiano, que ela toma por não-binário, com o ocidental, que ela assume como binário, sem recorrer ela própria a uma visão binarista e opositiva. 
Uma das histórias que ela reporta é a de um monge que imagina que um homem adormece e sonha com um brâmane que adormece e sonha que é um príncipe que sonha que é um rei que sonha que é uma mulher que sonha que é uma pomba que sonha que é uma vinha que sonha que é um elefante que sonha que é uma abelha que sonha que é um ganso que sonha que é um cisne que sonha que é o deus Rudra (mais conhecido como Shiva), o qual se surpreende por estar a ser sonhado por mortais, que ele próprio criou sonhando o mundo. 
Eu também poderia contar uma história assim, e não tem de se passar na Índia de há três mil anos:

Conheci há algum tempo o Fernando, um jovem de Brejos, que se perdeu no mundo das redes sociais. O Fernando éconhecido como um rapaz tranquilo, tímido, algo ensimesmado. Aparententemente, criou um perfil no Instagram, onde se transformou em "O Manel_da_Vila". Na pele de Manel, começou a viver uma vida completamente diferente, cheia de aventuras online. Mostrava viagens que nunca fez, partilhava fotos retocadas de lugares onde nunca esteve. Era fácil. Ninguém desconfiava do embuste. 
Cansado desta identidade, Manel decidiu criar uma nova persona. Inscreveu-se no Facebook como "Doutor Luís", um intelectual erudito, que gostava de se envolver em debates políticos e discussões filosóficas. Luís era quem Fernando nunca fora na vida real — alguém com opiniões fortes, admirado por outros utilizadores pela sua perspicácia. Com o tempo, o Doutor Luís cansou-se também dessa vida digital de debates sem fim. E foi assim que nasceu "#PríncipeDiogo", a nova identidade de Fernando no Twitter, onde se apresentava como um jovem vaidoso, extravagante, ligando a sua conta à de vários de influenciadores e conseguindo assim muitos seguidores. 
#PríncipeDiogo conquistou rapidamente o mundo do Twitter, divulgando frases motivacionais e mostrando uma vida de aparente glamour. Passado algum tempo, a personagem evoluiu novamente. No TikTok, Fernando tornou-se "MariLux", uma influenciadora que partilhava vídeos de dança e dicas de beleza. MariLux brilhava em vários feeds, acumulava likes, mas depois de longas horas a postar vídeos de 5 segundos, também ela começou a sentir-se esgotada. 
MariLux decidiu, então, fazer uma pausa. Desligou-se do TikTok e, ao regressar à vida fora das redes, passou a olhar as vinhas e os campos em torno de Azeitão com um novo olhar. Abriu um canal anónimo no YouTube onde partilhava vídeos de paisagens locais com mensagens poéticas sobre a vida pastoral. "MariLux" começou depois a partilhar os vídeos anónimos numa nova conta do Instagram. Reencontrou aí o "#PrincipeDiogo", um velho conhecido de outras redes, que a começou a seguir. O seu reencontro foi silencioso, sem diálogos, sem comentários, trocavam simplesmente emojis e corações. Partilhavam mutuamente os vídeos anónimos do Youtube. 
No entanto, não há para Fernando possibilidade de retorno definitivo à "vida real". Cada pausa que ele faz no mundo da internet leva-o a criar novas personagens, novas aventuras, novas plataformas. Fernando e as suas criações continuam hoje a flutuar entre a vida rotineira em Azeitão e as infinitas realidades possíveis das redes sociais. O paradoxo de viver entre o analógico e o digital não se resolve — apenas se multiplica. Fernando está virtualmente perdido. 
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Em resumo: o paradoxo não tem de ser visto como um atentado à racionalidade, mas como um instrumento criativo de conectar o nosso cérebro com o(s) mundo(s). De outra maneira, como compreender que a Criatura deu à luz o Criador, ou que o azeitonense Fernando possa estar, simultaneamente, a falar comigo no café e imaginar-se numa rede social da internet? 

Jornal de Azeitão, Outubro 2024 ​ ​
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As fronteiras da torta

4/6/2024

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Falemos de doces. E falemos de tradições. E de invenção. É, penso, incontroverso que a torta de Azeitão, que foi erigida em ícone gastronómico da vila, terá nascido das mãos de Maria Albina, mulher de Manuel Rodrigues, o “cego”, e de sua filha, no início do séc. XX. O aguadeiro Manuel Rodrigues abriu uma hospedaria na Rua Direita, e a sua mulher e filha, ambas de afamado dedo para a doçaria, começaram a cozer as agora famosas tortas de ovo no forno da padaria de João Alface para vender à porta da hospedaria aos viajantes que passavam pela vila. A receita da torta terá origem na vila de Fronteira, no Alentejo, e não custa imaginar que tenha começado por ser servida nas casas ricas da vila, em cujas cozinhas Maria Albina teria trabalhado inicialmente.
Hoje em dia, não há café, pastelaria ou supermercado da vila e arredores que não sirva tortas de Azeitão, e o passa-palavra diário vai alimentando o ranking informal do top ten das tortas “genuínas”. Os critérios degustativos mesclam preferência pessoal e estereótipo social: há as desclassificadas por serem “industriais”, e as preferidas por parecerem “caseiras”. Como quem as fabrica não explicita que ovos usa, e se são ou não em pó, qual a qualidade da farinha e do açúcar, ou qual o método de cozedura ou o nível de higiene da produção, fica à responsabilidade do cliente testar, apreciar, e compartilhar o seu juízo sobre a qualidade da torta. É um processo difuso e em permanente mutação. Pessoalmente, não desdigo da “verdadeira” torta, a do “Cego”, mas na verdade prefiro uma outra, que me é vendida como não contendo glúten e mais baixo teor de açúcar.
Quando falamos de tradições, gostamos de as imaginar como provindo da noite dos tempos, de hábitos e saberes cuja origem se perde em brumas de ancestrais memórias. No caso da torta de Azeitão, pelo contrário, temos uma origem relativamente bem estabelecida e moderadamente recente. Se pensarmos mais genericamente na doçaria portuguesa, parece óbvio que resulta da congregação de técnicas culinárias de origem múltipla e incerta com matérias-primas historicamente disponíveis no território (a farinha, a amêndoa, o ovo, o azeite, manteiga ou sebo) ou buscadas em lugares longínquos (a canela, o açúcar). Que a doçaria portuguesa é muito distinta da vizinhança espanhola, marroquina, ou francesa, é mais que certo, como certo é que o gosto se aprende, consolida e perdura ao longo de décadas e séculos. A torta de Azeitão é uma variante particular de um tipo de doçaria que reconhecemos facilmente como “tipicamente” portuguesa. A sua aceitabilidade, o seu sucesso, advém da consistência química que resulta da mescla da farinha com o açúcar, a canela, e o ovo (e também da ausência da amêndoa na sua composição).
Vale a pena notar que a torta de Azeitão (ou de Fronteira) se encontra no polo oposto ao pastel de nata. A torta é um doce regional que facilmente se acomoda a um gosto nacional. Já o pastel de nata tem uma tipologia e evolução muito distintas. Não se sabe ele se está na origem do custard pie ou se é uma adaptação nacional desse pastel inglês. Mas o seu sucesso internacional está, definitivamente, ligado às heranças do império britânico na Ásia: o interesse do mundo pelo pastel de nata vem do facto de se ter espalhado – como pastel ocidental – no sudeste asiático (Hong Kong, Bangkok, Singapura). A sua origem mítica numa pastelaria de Belém não contradiz a sua natureza de ícone da expansão ocidental no mundo.
E vale a pena notar também que, falando em termos ainda mais gerais, o açúcar, ingrediente indispensável na doçaria nacional – e mundial – é porventura, para o melhor e para o pior, o mais importante contributo histórico de Portugal para a humanidade. O método de produção do açúcar terá sido inventado na Índia e era já conhecido na Europa medieval (sobretudo com usos medicinais), mas a sua produção em larga escala iniciou-se nas Canárias e na Madeira, em finais do séc. XV. A paixão que causou nos europeus levou a que o modelo dos engenhos madeirenses fosse transportado, primeiro para São Tomé, e depois para o Brasil.
Quando como uma torta de Azeitão, mesmo com baixo teor de açúcar, não me consigo abstrair do facto de, como português, ter uma cota, ainda que mínima, de responsabilidade histórica, ancestral, na tragédia secular do comércio de escravos africanos para o “novo mundo”, e na terrível pandemia de diabetes e obesidade que afecta grande parte da população mundial.

 Jornal de Azeitão, Maio 2024
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​Como cozer uma lagosta

4/6/2024

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Eu sei que é egoísta pensar assim, mas esta coisa do aquecimento global tem por vezes efeitos locais simpáticos. Poder disfrutar de céu limpo e temperatura amena às portas do inverno é um deles. Também sei, claro, que as lagostas e as rãs só se dão conta de que estão a cozer quando já é demasiado tarde para espernearem, e que a espécie humana não parece mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos.
 
Assim estou, à beira da época do Natal, a apreciar o burburinho do fim de semana numa esplanada da vila, sem casaco de penas, barrete ou luvas. Como se fora passerelle de um filme de Fellini, vejo desfilar pela rua direita magotes de licrociclistas, enxames de motoqueiros de cabedal, ranchos de enoturistas gringos, e cardumes de SUVs negros. As amitas alfacinhas chilreiam à volta das mesas, os nepotes azeitonenses aborrecem-coçando esquinas, e os pés-descalços aguardam a carreira buzina na paragem do Rossio. Omnipresente nas mãos, nas bolsas e nas orelhas, lá está o rectângulo telemóvel a lembrar que o que vemos é apenas parte do que se passa à nossa volta. A dimensão oculta da matrix conecta tudo e todos, fazendo transbordar o iminentemente pessoal para o globalmente colectivo – através dos servidores que, no Nebraska, lançam ondas de ar quente para as correntes convectivas dos ventos alísios.
 
É uma platitude dizer que o telemóvel entrou nas nossas vidas e que, a par com óbvios benefícios, trouxe uma multitude de novos problemas para os quais não estamos cognitivamente preparados e cuja resolução dependeria de consensos sociais que estão longe de existir – parcialmente porque a discussão pública é, ou mal dirigida, ou demasiado fragmentária. Filhos que são mais filhos do tiktok que dos seus pais naturais, casais que se desunem perante a palavra-passe que interdita o acesso à intimidade do parceiro, gente de costumes suaves que se transforma em turba injuriosa no ventre das “redes sociais”, roubos de identidade, exploração comercial de dados pessoais, espiolhamento por governos estrangeiros... Problemas que as regulamentações estatais e supra-estatais não resolvem, apenas mitigam.
 
Viktor Mayer-Schönberger, um investigador de nome improvável, escreveu há uns anos um livro que marcou o meu olhar sobre o mundo contemporâneo: Delete, the virtue of forgetting in a digital age. Delete é uma palavra inglesa polissémica: significa tanto “apagar”, “suprimir”, “anular” como “cancelar”. O sentido, no contexto do livro, é referência directa à ubíqua tecla de qualquer keyboard de computador, aquela que se encontra no topo direito dos teclados e serve para, precisamente, “apagar” ou “anular” uma acção de digitação. A ideia central do livro é que a humanidade tem vivido há muitos milhares de anos numa idade estritamente analógica, afinando e modelando formas culturalmente variadas para garantir que, das múltiplas acções humanas, algumas possam ser memorizadas e passadas de geração em geração, e outras sejam esquecidas para sempre. Nesta perspectiva, a cultura é vista como um processo de selecção da memória colectiva, de escolha do que cada sociedade prefere lembrar – porque os meios de preservação da memória são (eram) limitados. A invenção dos computadores, da internet, dos telemóveis, etc., inaugurou uma nova idade do Homem: a idade digital, em que o esquecimento deixou de ser possível, ou pelo menos deixou de ser controlado por processos de selecção cultural, e pelos indivíduos-utilizadores. Os servidores não apagam nada, não esquecem nada, a não ser por decisão empresarial discricionária, ordem governamental irrevogável, ou avaria técnica irresolúvel. O passado reverte-se sem controlo sobre o presente, ameaçando a relevância e a sobrevivência da transmissão cultural analógica.
 
Porque a espécie humana não é mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos, quando nos apercebermos da dimensão da tragédia que é o nosso sonambúlico mergulho colectivo na era digital será tarde demais. Vamos cozer em águas de “inteligência artificial”, se é que não grelhamos antes sob o inclemente estio de Dezembro.
 
 Jornal de Azeitão, Dezembro 2023​
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