MANUEL JOÃO RAMOS
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A suportável irrealidade da guerra

4/6/2024

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Mais quilómetro, menos quilómetro, a Faixa de Gaza tem uma extensão equivalente ao território que, de norte a sul, vai do estuário do Tejo à linha de costa da Arrábida e, de oeste para leste, dos areais da Costa da Caparica ao curso da Ribeira de Coina. Mais ou menos os mesmos 365 quilómetros quadrados. Não é difícil imaginar que dois milhões de pessoas possam viver nesta fatia da Margem Sul do estuário do Rio Tejo. Têm ambas uma longa linha de praias, a mesma hidrografia escassa, e uma orografia parecida – se exceptuarmos as arribas sedimentares da serra da Arrábida. E, claro, a sul, Gaza confina com o vasto deserto do Sinai e não a imensidão do oceano Atlântico.
 
Imaginemos que eram largadas, em três semanas, 30 mil bombas e mísseis sobre esta faixa da Margem Sul, que era mobilizado em seu redor um número de soldados equivalente à capacidade de cinco estádios do Benfica, mortas 10 mil pessoas e feridas outras 20 mil. Independentemente das emoções políticas, do horror ético e da mobilização social que um tal acontecimento catastrófico suscitaria, não custa pensar que as rotinas da vida em Lisboa ou em Alcoentre – a escassos quilómetros da fronteira da Ribeira de Coina –, continuariam a decorrer com normalidade. Malgrado o incómodo ruído dos bombardeamentos e o desagradável cheiro da pólvora, dos incêndios e dos corpos calcinados, os cafés e restaurantes para além dessa faixa continuariam abertos, as escolas continuariam a funcionar, e o combustível continuaria disponível nas estações de serviço.
 
O sentimento de irrealidade da guerra não seria muito distinto daquele que um europeu sente hoje face à tragédia de Gaza. Seria também um sentimento de impotência e de alheamento, independentemente da solidariedade, ou ausência dela, para com as vítimas do desastre humanitário. Não se trata de uma questão de insensibilidade porque “não é nada comigo”, mas de necessária compartimentação mental entre, por um lado, difusas emoções e racionalizações políticas e, por outro, as prementes necessidades de prover o dia-a-dia.
 
Estive, há anos, a poucos quilómetros de uma frente de batalha no norte da Etiópia. Vi hospitais sobrelotados, gente mutilada, mobilizações apressadas de milhares de jovens arrancados das famílias, e o crocitar das armas para além do horizonte. E, aí, confrontei-me com esta mesma irrealidade e com esta mesma dissonância cognitiva entre a terrível violência da guerra e a normalidade possível da vida do lado de fora do perímetro da batalha. As crianças continuavam a ir para a escola, as lojas continuavam abertas, e as rotinas diárias adaptavam-se às inúmeras restrições impostas – dos blackouts aos cortes de água, das estradas cortadas à penúria de mantimentos, do choro e da raiva individual à lavagem cerebral colectiva levada a cabo pela propaganda governamental.
 
Quem, em Lisboa, no Cairo ou em Reiquiavique, se emociona hoje com a tragédia de Gaza porque ela entra pelos olhos dentro graças à profusão de notícias provenientes de múltiplas plataformas de comunicação social, tem normalmente a quase certeza de que ela não altera os seus ciclos de vida diária (pelo menos, até ao dia em que sim). Poderá racionalizar e emitir opiniões, manifestar a sua indignação ou não, mas, não havendo transbordar do perímetro ritual da guerra para a sua zona de conforto, não deixará de estar atento às promoções do supermercado da sua vizinhança.
 
Tal como podemos duvidar que uma folha de árvore tenha caído se ninguém a vir cair, desdenhamos das tragédias que ocorrem todos os dias quando a comunicação social não nos oferece num prato de morbidez o testemunho da sua violência. Por extraordinário passe de magia, o horror de Gaza (complementado pelo horror menor da Cisjordânia) eclipsou nas nossas mentes o horror da Ucrânia. Mas esses horrores existem para nós porque no-los injectam. Todos os outros simultâneos horrores que pontuam a vida humana no planeta não têm direito à nossa comiseração ou sequer ao nosso reconhecimento.
 
Agora que o ano de 2023 se aproxima do seu termo, o inefável manto da irrealidade desce sobre várias outras guerras e conflitos violentos silenciados e, por isso, desconhecidos dos europeus. Não é concedido nem um momento de pânico moral pelos mais de 10 mil mortos em Myanmar, no Magrebe e no Sahel, no México, na Etiópia ou no Sudão; nem para os menos de 10 mil mortos na Colômbia, no Afeganistão, na Somália, na Nigéria, no Congo, no Iraque, no Sudão do Sul, na Síria, no Iémen ou no Haiti. Tudo porque morreram sem reportagens em directo, e longe da tribalização geoestratégica.
 
O Público, 6 Novembro 2023

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O cheiro da pólvora

4/6/2024

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Mais quilómetro, menos quilómetro, a Faixa de Gaza tem a mesma extensão que o território que, de norte a sui, vai do estuário do Tejo à linha de costa da Arrábida e, de oeste para leste, dos areais da Costa da Caparica ao curso da Ribeira de Coina. Mais ou menos os mesmos 365 quilómetros quadrados. Não é difícil imaginar dois milhões de pessoas nesta fatia da Margem Sul. Mesma linha de praias, mesma hidrografia, e mesma orografia – se exceptuarmos as arribas sedimentares da serra da Arrábida. Para sul, num caso, a vastidão do deserto do Sinai e, no outro, a imensidão do oceano Atlântico.
 
Imaginemos que eram largadas, em três semanas, 30 mil bombas e mísseis sobre esta faixa da Margem Sul, mobilizado em seu redor um número de soldados equivalente à capacidade de cinco estádios do Benfica, mortas 10 mil pessoas e feridas outras 20 mil. Independentemente das emoções políticas, do horror ético e da mobilização social que um tal acontecimento catastrófico teria, não custa pensar que as rotinas da vida em Azeitão – a escassos quilómetros da fronteira da Ribeira de Coina –, continuariam a decorrer com normalidade. Malgrado o incómodo ruído dos bombardeamentos e o cheiro da pólvora, dos incêndios e dos corpos calcinados, os cafés e restaurantes para cá dessa faixa continuariam abertos, as escolas continuariam a funcionar, e o combustível continuaria disponível nas estações de serviço.
 
O sentimento de irrealidade da guerra não seria muito distinto daquele que um azeitonense sente hoje, face à tragédia de Gaza. Seria igualmente um sentimento de impotência e alheamento, independentemente da solidariedade ou ausência dela perante as vítimas e o desastre humanitário. Não se trata de uma questão de “não é nada comigo”, mas de necessária compartimentação mental entre difusas emoções e racionalizações políticas e prementes necessidades de prover o dia-a-dia.
 
Estive, há anos, a poucos quilómetros de uma frente de batalha no norte da Etiópia. Vi hospitais sobrelotados, gente mutilada, mobilizações apressadas de milhares de jovens arrancados das famílias, e o crocitar das armas para lá do horizonte. E, aí, confrontei-me com esta mesma irrealidade e esta mesma dissonância cognitiva entre a terrível violência da guerra e a normalidade possível da vida do lado de fora do seu perímetro. As crianças continuavam a ir para a escola, as lojas continuavam abertas, e as rotinas diárias adaptavam-se às inúmeras restrições impostas – dos black-outs aos cortes de água, das estradas cortadas à penúria de mantimentos, do choro e da raiva individual à lavagem cerebral colectiva da propaganda governamental.
 
Quem, em Azeitão, no Cairo ou em Reiquiavique, se emociona hoje com a tragédia de Gaza – seja a poucos ou a muitos quilómetros de distância –, porque ela entra pelos olhos dentro graças à profusão de notícias provenientes de múltiplas plataformas de comunicação social, tem normalmente a quase certeza de que ela não altera os seus ciclos de vida diária. Poderá racionalizar e emitir opiniões, manifestar a sua indignação ou não, mas, não havendo transbordar do perímetro ritual da guerra para a sua zona de conforto, não deixará de estar atento às promoções do supermercado da sua vizinhança.
 
Tal como podemos duvidar que uma folha de árvore tenha caído se ninguém a vir cair, desdenhamos das tragédias que ocorrem todos os dias quando a comunicação social não nos oferece num prato de morbidez o testemunho da sua realidade. Por extraordinário passe de magia, o horror de Gaza (complementado pelo horror menor da Cisjordânia) eclipsou nas nossas mentes o horror da Ucrânia. Mas esses horrores existem para nós porque no-los injectam. Todos os outros simultâneos horrores que pontuam a vida humana no planeta não têm direito à nossa comiseração ou sequer ao nosso reconhecimento.
 
Nota: no ano de 2023, estes foram os conflitos violentos de que resultaram mais de 10 mil mortes: Myanmar, Magrebe e Sahel, México, Ucrânia, Etiópia e Sudão. Os conflitos de que resultaram até 10 mil mortes foram: Colômbia, Afeganistão, Somália, Nigéria, Congo, Iraque, Sudão do Sul, Síria, Iémen e Haiti.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2023​
 

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O estado de Pastel

25/5/2021

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Em 1947, a Assembleia das Nações Unidas, inspirada pela máxima de que soluções simples são as melhores para resolver problemas complexos, aprovou a divisão do território da Palestina então sob mandato britânico em duas entidades nacionais: Palestina e Israel. O pós-guerra foi prolífico em soluções simples: Coreia do Norte e Coreia do Sul, China e Taiwan, Índia e Paquistão, Iémen do Norte e Iémen do Sul, Somália e Somalilândia, Etiópia e Eritreia, Chipre turco e Chipre grego... ah, e Alemanha de Leste e Alemanha Ocidental.
 
O que se passou a seguir tem sido fonte de maravilha para os amantes de enigmas insolúveis: os recém-criados estados árabes não aceitaram a solução, seguiu-se uma guerra, a expulsão de quase um milhão de palestinianos do território israelita, e a progressiva anexação de terras em volta, até à caricata situação actual em que, na sequência dos acordos de Oslo, a então reafirmada “solução dos dois estados” é impossível de concretizar dado que não passa pela cabeça de nenhum palestiniano viver numa fatia de queijo suíço.
 
Um dos estados juridicamente mais xenófobos do planeta, que assenta o princípio da cidadania numa interpretação híper-restritiva do ius sanguinis e na exclusividade de pertença religiosa, tem ao longo das décadas aperfeiçoado uma versão nativa do sistema sul-africano do apartheid, tanto no interior do país como nos territórios palestinianos ocupados, de forma a prevenir que a população não-judia possa algum dia ser numericamente superior à judia – ou seja, o que podemos chamar de democracia hútu.
 
Herdeiro da lógica simplista da guerra fria, o novo presidente norte-americano reafirmou agora, no quente do mais recente cessar-fogo entre palestinianos e israelitas, a validade da “solução dos dois estados” como a única via possível para a paz na região. Contam-se pelos dedos de uma mão os políticos locais (todos do cada vez mais diminuto campo “laico”) que acreditam na viabilidade da “solução”, hoje em dia. O extremismo fundamentalista judaico alimenta-se do extremismo fundamentalista islâmico e vice-versa. Uns e outros são a inesperada (e complicada) consequência da decisão “simples” de dividir o território em dois, um para judeus e outro para muçulmanos. Nesta espiral descendente e radicalizante, a eternização do conflito violento pontuado por momentos de cessar-fogo parece a única solução possível. Não será assim de admirar que a “única democracia do Médio Oriente” passe rapidamente a oligarquia ou a autocracia quando finalmente a população não-judaica (muçulmana e cristã) no interior de Israel se tornar maioritária.
 
Ora, se os radicais judaicos não admitem a existência de uma Palestina independente, e se os radicais islâmicos não admitem a existência de um estado judaico, e nenhum aceita a viabilidade da “solução dos dois estados”, a melhor alternativa a este contínuo mais-do-mesmo com sete décadas é procurar soluções criativas, como propõe Paul Watzlawick: há que reenquadrar o problema de forma que as velhas soluções que não solucionam nada caduquem. Tal como Arquímedes teve o seu eureka no banho, eu tive o meu numa pastelaria, esta manhã. Se o problema é mesmo que israelitas não querem uma Palestina e os palestinianos não querem um Israel, e nenhum quer a “solução simples” de 1948, então basta criar um novo país com um novo nome onde uns e outros vivam sem chatear o resto do planeta. Se os sul-africanos conseguiram, porque não voltar a tentar? Até tenho um nome para o país: comecei por conceber Palestiriel, mas achei mais graça a Pastel – afinal, já há países que se chamam Camarões e Perus, e há até um que resolveu o conflito entre galegos e portenhos inventando a palavra Portugal.
 
​Publicado n'O Público, 25 Maio 2021.
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