MANUEL JOÃO RAMOS
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a miopia infantil

8/9/2023

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O capítulo 35 do livro 3 das Viagens de Marco Polo, onde se descreve o Reino de Abash (Abissínia, a antiga Etiópia), refere que aí os cristãos, para se distinguirem dos vizinhos muçulmanos, exibem uma cruz na testa, marca que seria feita com ferro em brasa no acto do baptismo. Ainda que possamos duvidar da informação de que a cruz fosse feita com ferro em brasa, a verdade é que ainda hoje, nas zonas rurais do norte da Etiópia, não é raro encontrar quem a exiba na testa, mas executada como tatuagem.
Também não é rara a existência de outro tipo de marcas na testa de muitos etíopes, mas estas não são sinal de fervor ou adesão religiosa. Muitas mulheres exibem tatuagens ornamentais em volta do pescoço, e é comum observar uma dupla escarificação em cada uma das fontes, tanto em homens como em mulheres: estas são o resultado de sangrias praticadas por médicos tradicionais, que têm como objectivo proteger as crianças de certo tipo de doenças. Para além destas marcas religiosas, ornamentais e rituais, é também muito habitual a existência de cicatrizes na cabeça. A origem destas cicatrizes advém de uma prática educacional curiosa, actualmente em recessão mas à qual eu assisti em diversas ocasiões: para castigar crianças desobedientes ou insolentes, os familiares mais velhos atiram-lhes pedras à cabeça. O efeito pavloviano deste castigo é tal que as mais das vezes basta fazer o gesto de apanhar uma pedra e ameaçar atirá-la para que a criança obedeça à ordem dada.
Não pretendo discutir a bondade ou perversidade desta forma de castigo corporal, tal como não venho aqui comentar a publicitação de correctivos radicais (como, por exemplo, submergir uma filha na água fria de uma piscina) contra birras infantis como forma de angariar seguidores em redes sociais. Pretendo apenas dar conta do meu pasmo permanente face aos comportamentos públicos de crianças e adultos na região de Azeitão – microscópico espelho do que, suspeito, acontece um pouco por todo o lado, dentro e fora do rectângulo luso. Não passa um dia em que não observe – seja no restaurante, no café, na loja, no parque, ou na praia – pais, tios e avós a silenciar filhos, sobrinhos e netos pondo-lhes telemóveis ou tablets na mão, para melhor poderem conviver sem interferências infantis. Quando não estão entorpecidos pelas imagens do ecrã, transformam-se em feras ditatoriais e inaturáveis a exigir toda a atenção do mundo, gritando, esperneando e correndo em círculos viciosos.
Ligar uma criança ao ecrã de um telemóvel é uma forma de hipnotismo fácil e prático no imediato, mas é também uma demissão de responsabilidades parentais cujas consequências são temíveis. Esta miopia educacional resulta, por um lado, em efectiva miopia precoce dos jovens – antigamente, havia um “caixa de óculos” na turma da escola; hoje, o elemento de distinção na turma é a cor do aro e a graduação da lente de cada aluno. Por outro lado, e muito mais preocupante, a consequência deste novo hábito é a progressiva miopia mental e emocional da juventude: desabituados do saudável balanço entre manifestação de afecto e a exigência de cumprimento de regras, resvalam para um autismo imoral, para o absoluto desrespeito, não apenas dos pais que não conseguiram fazer-se por eles respeitar, e dos professores que, na escola, com eles se confrontam impotentes, mas de todos quantos se encontram do lado de cá do ecrã. A única autoridade destes novos “meninos selvagens” é o algoritmo que gere as redes sociais e os seus avatares, conhecidos como influencers, youtubers, tiktokers, instakings e instaqueens.
Entrevistado em sua casa pouco tempo antes da sua morte aos 101 anos, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss referiu o seu profundo pesar pelo fim da diversidade cultural da humanidade e a sua repugnância pela monocultura que hoje impera. Terminou a entrevista notando que, agora que a sua existência estava perto do fim, deixava um mundo de que (já) não gostava, habitado por uma humanidade a viver num regime de envenenamento interno.
É, claro, possível duvidar desta visão apocalíptica e supor que a globalização monocultural não passa de um projecto utópico euro-americano em vias de derrapar na sua meta final. Mas não deixo de me perguntar como vão as novas gerações de azeitonenses gerir a pesada herança que vão ter de carregar.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2023​
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Inteligência natural

1/9/2023

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Sentado à mesa do café da aldeia, ouço correr histórias sobre vidas passadas...

John Kegan, no seu reputado livro The History of Warfare, sublinha que não existe um conceito universal de “guerra”, porque a prossecução, percepção e compreensão da guerra é sempre ditada e condicionada culturalmente, apesar de, em si, a “guerra” ser um diálogo intercultural (geralmente violento) de transferência de ideias e tecnologias.
A dado passo da sua obra, apresenta-nos um caso raro de sageza na recusa de uma nova tecnologia militar, em função da preservação de um modo de conceber e fazer a guerra: a introdução de armas de fogo no Japão, no séc. XVI, foi entusiasticamente acolhida e os senhores da guerra japoneses lançaram-se numa verdadeira corrida às armas, produzindo versões cada vez mais aperfeiçoadas de arcabuzes, em quantidades cada vez maiores. O arcabuz mudou a face da guerra no Japão, causando carnificinas tais que, finalmente, levaram os senhores da guerra a reunir-se e decidir proibir a produção e uso de armas de fogo. Regressaram à forma tradicional japonesa de fazer a guerra, com arcos, flechas, sabres e paus, até que, no final do séc. XIX, britânicos e norte-americanos as reintroduziram, quando começaram a interferir na vida política e económica japonesa, em nome da modernização e ocidentalização do país.
Vem isto a propósito de uma nova tecnologia digital e do seu potencial destrutivo: a chamada “inteligência artificial”. Dizem alguns críticos que o termo é enganador porque sugere que os modelos de linguagem artificial são fruto de pensamento consciente. Pouco importa para o caso que quero aqui discutir: o uso cada vez mais generalizado destes modelos, em particular do muito bem-sucedido ChatGPT, na vida quotidiana, e em particular no ensino. Apresentando-se como uma ferramenta neutra e bem-intencionada de suporte informativo, tem, no entanto, duas faces sombrias. Por um lado, está longe de ser um suporte neutro e de valor público, já que os seus algoritmos são de uma companhia privada, sujeitos a instruções e condicionamentos que nos são inacessíveis, e dependentes de uma base de dados que é sobretudo norte-americana. Por outro, coloca o seu utilizador perante um paradoxo de difícil resolução: como simula ser uma entidade pensante, que responde com frases complexas e oferece uma mediana de informações convencionais, oferece-nos a ilusão de que estamos perante uma entidade pensadora que concede, a pedido do utilizador, acesso gratuito a textos organizados, que este pode “roubar”, fazendo-os passar como seus sem ser acusado de plágio.
É possível fazer uso criativo e crítico desta ferramenta, como bem mostra, por exemplo, a poetiza alemã Monika Rinck. Mas, no geral, o que promove é profunda preguiça mental e – o que é particularmente grave no processo de ensino – uma alteração profunda e com consequências imprevisíveis na aprendizagem e uma possível redução das capacidades de construção de textos e argumentos, para além de limitar a compreensão crítica da informação disponibilizada, que se apresenta como sumamente confiável. No estado actual, não prevejo que seja exequível fazer como os senhores da guerra japoneses: decidir por consenso suspender o uso desta tecnologia, cujos malefícios facilmente arriscam ser muito maiores que os benefícios.
O ChatGPT é um novo instrumento de imersão no mundo digital que pode ter efeitos devastadores. Arriscamo-nos a estar a prender as nossas capacidades intelectivas no interior de um batiscafo que se afunda no oceano com uma quantidade limitada de oxigénio e pouca ou nenhuma possibilidade de regresso à superfície.
Por mim, vejo a redenção no desligarmo-nos do mundo digital, como profetiza E. M. Foster no conto The machine stops, e na valorização do que podemos aprender no (que resta do) mundo analógico. Sentado à mesa do café da aldeia, ouço correr histórias sobre vidas passadas: os miúdos que se reuniam junto ao poço a jogar ao berlinde, os bailaricos no Verão e a matança do porco no Outono, os beijos roubados no virar da esquina, o labor nos campos e os tratamentos da bruxa com novelo e agulha para tirar o mau-olhado, o cheiro da urze e do estrume, as queimaduras do ferro de engomar aquecido a carvão, as zangas entre primos, o rapaz que fugiu para ir trabalhar na cidade, a tia que fazia milagres com a máquina Singer e um metro de chita estampada, os burros albardados a passar a ribeira no Porto de Cambas a caminho da feira de Azeitão...
O que vemos e o que imaginamos, o que ouvimos contar, o que cheiramos e saboreamos é essencial para conhecermos o mundo que está para além e para aquém dos “modelos de linguagem”. É parte fundamental da nossa inteligência natural e eficaz vacina contra a estupidez de nos submetermos à “inteligência artificial”.

PS: li agora que, nos céus da Ucrânia, voam drones kamikaze que, graças à “inteligência artificial”, funcionam de forma totalmente autónoma, identificando e destruindo alvos sem intervenção de operadores humanos.
 
Jornal de Azeitão, Julho 2023​
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