MANUEL JOÃO RAMOS
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​Azeitolândia

16/6/2021

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Se bem me lembro... foi há 15 anos, mais ano menos ano, que me sentei no gabinete do vereador da mobilidade da Câmara Municipal de Setúbal para lhe expor entusiasmado revolucionárias ideias de pedonalização da Rua José Augusto Coelho, o principal eixo viário de Vila Nogueira de Azeitão. Falei-lhe da importância de atender aos utentes frágeis na regeneração urbana, da urgência de melhorar a qualidade dos espaços públicos, da necessidade de revivificação do centro da vila. Citei-lhe, como se deve quando se pretende impressionar políticos portugueses, exemplos de grande sucesso vindos de fora, do estrangeiro. E saí da reunião certo de que tudo o que eu lhe tinha dito havia entrado por um ouvido e saído pelo outro, intocado por qualquer sinal de actividade neuronal. Na altura, admito, movia-me o fervor missionário e civilizador do arauto pregando a sustentabilidade urbana e a bondade da mudança de paradigma na gestão dos espaços públicos viários.
 
Alguns anos depois, por volta de 2012, começou a falar-se de planos de reabilitação urbana para Azeitão, com voluntariosas exposições na Casa do Povo por parte de políticos e técnicos camarários. Em 2013, a Assembleia Municipal aprovou uma deliberação definindo a área de reabilitação urbana de Azeitão (isto é, a área a intervencionar), passo prévio necessário para ser alterado o PDM e criar o plano estratégico da ORU (Operação de Reabilitação Urbana), o que veio a acontecer em 2016. O diagnóstico apresentado no preâmbulo do documento diz o óbvio para quem conhece um pouco a vila: população envelhecida, imobiliário degradado e 24% do casario devoluto. E ancora claramente toda a operação de reabilitação, não em preocupações com a melhoria da qualidade de vida da população, mas nas virtudes da promoção turística da região. Ou seja, o casco antigo da vila é olhado como isso mesmo: um casco. Um casco que, convenientemente esvaziado através de incentivos fiscais à transmissão imobiliária – nomeadamente por via da isenção do IMI e do IMT – poderá ser objecto de “reabilitação” para fazer do centro da vila uma Disneylândia para usufruto das turbas de turistas em busca do “produto Arrábida” (sic) e dos aromas de Baco. Toda a intervenção está pensada para fazer de Azeitão uma máquina de moedas. Para tal, há que lançar mão ao “património”, para o pôr a render: embelezar fontes, polir brasões, limpar fachadas, e decorar tudo a arvoredo e calçada “à portuguesa”. E lá está, preto no branco do plano estratégico, a inevitável referência à pedonalização da área.
 
O que o vereador da mobilidade não quis ouvir vindo de mim em 2005, vem agora o plano apregoar triunfantemente. Mas o entendimento do que é a função da pedonalização de espaços públicos viários alterou-se profundamente: a intervenção, segundo o ORU, não é feita a pensar em quem vive na vila, mas sim em quem a virá visitar; não serve para reter a população da vila, mas para a substituir por outra população mais afluente, provavelmente falante de francês ou de outra língua, europeia ou não. O plano estratégico da Câmara de Setúbal não é um plano de reabilitação mas sim de gentrificação e de turistificação da vila. E o que se passa no pequeno microcosmo de Azeitão, sabemos que se tem passado um pouco por todo o país – um país que pouco produz a não ser sol, que pouco vende a não ser “património”.
 
Vão longe os tempos em que, ingenuamente, me batia por melhor qualidade dos espaços públicos crendo que a pedonalização de ruas podia ser entendida pelos políticos portugueses como a atribuição (ou melhor, a reposição) dos direitos dos peões à rua. Na gíria da política nacional, a palavra “pedonalização” está intimamente ligada a visões de cifrões ganhos à custa do tolo turista que, sem ter aprendido as valiosas lições da pandemia do Covid19 e da necessidade de reduzir as emissões carbónicas das viagens aéreas, insiste em vir cá apanhar sol, afugentando dos centros urbanos os habitantes locais a que eles parecem achar tanta graça.
 
 Jornal de Azeitão, Junho 2021
 

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A NAQBA DO PORTINHO

10/5/2021

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O mundo lá fora oferece-nos tantos espectáculos contrastantes que temos por vezes dificuldade em perceber as linhas que os ligam. Para lá do Canal da Mancha, um primeiro ministro justifica post est facto a decisão britânica de “libertar” o país da União Europeia com o “inequívoco sucesso” do processo de vacinação nacional contra a Covid19. Mais longe, nas margens orientais do Mediterrâneo, outro primeiro ministro vangloria a “esperteza” do Estado israelita, que garantiu, oferecendo a sua população como cobaia de testagem em larga escala da eficácia das vacinas anti-Covid19, um programa de vacinação rápida e quase universal dos seus cidadãos. Ainda mais longe, no subcontinente banhado pelas águas do Índico, o país que se posicionou como o principal produtor mundial dos componentes primários da polémica vacina da AstraZeneca afunda-se numa tragédia colectiva nutrida pela propagação fulgurante de variantes ultra-contagiosas do Coronavírus, pela imensa fragilidade do seu sistema hospitalar e por uma baixíssima taxa de vacinação da segunda maior população do mundo.
É fascinante verificar o actual grau de imbricamento profundo das cadeias globais de produção de vacinas, a interrelação dos fluxos de circulação internacional de humanos e de vírus, e a sucessão de políticas-barreira tendencialmente isolacionistas adoptadas por uma multitude de estados nacionais para prevenir a expansão da doença e o colapso dos sistemas de saúde. Mas é igualmente fascinante – e deprimente - observar as assimetrias profundas entre países ricos e países pobres, e a concorrente normalização de posturas de egoísmo nacionalista. Israel, o Reino Unido e os Estados Unidos contam-se entre os países onde a vacinação de prevenção da Covid19 se encontra mais avançada. Isto quer dizer, no fundo, que cada vida salva nesses países se faz à custa de vidas perdidas noutros países, devido às desigualdades profundas no sistema de distribuição mundial de vacinas. Suprema ironia deste estado de coisas é que o país que garante o sucesso da vacinação dos países ricos (e também pobres – porque o programa Covax dele depende igualmente) o faz à custa da sua própria população. Histórias tristes que os laços coloniais teceram...
É de egoísmo e ironia que quero falar. Como é sabido, o Estado Israelita nasceu e consolidou-se graças à expulsão de centenas de milhar de palestinianos para os países árabes vizinhos (conhecida como a Naqba) e à concentração em duas faixas territoriais estreitas (Gaza e Cisjordânia) da restante população palestiniana. Actualmente, a população que de acordo com a nova lei da nacionalidade israelita não tem direito de cidadania por não ser “judia” – os palestinianos e os árabes – não beneficiam senão marginalmente, por esmola, do programa de vacinação “universal” israelita.
Este egoísmo nacionalista, na medida que é uma resposta política imediatista e oportunista, contém riscos graves a longo termo porque sedimentam percepções externas que se tornam indeléveis.
Passemos agora do macro para o micro: o desassoreamento da praia do Portinho da Arrábida que levou ao desaparecimento da areia e à dissolução da duna elevada do Creiro. O Portinho ganhou fama de lugar paradisíaco quando alguma burguesia lisboeta o começou a tomar de assalto nos anos 50-60 do século passado. Sucedeu-se a construção de discretas moradias “de arquitecto”, de legalidade mais que duvidosa. É verdade que não havia ali, como na Palestina, uma população autóctone a ser expulsa. Mas o ambiente de ghetto privilegiado era manifesto. Os “palestinianos” vieram depois, nos anos posteriores ao 25 de Abril de 1974. “Palestinianos” era o termo pejorativo que os “asquenazes” lisboetas usavam para se referir à população de veraneantes que construíram as muitas dezenas de casebres clandestinos sobre a praia e no interior da mata do Creiro, e que assim destruíram o ambiente exclusivista do local. A sua reacção enojada perante o cheiro da sardinha assada nos grelhadores e a insalubridade que advinha da ausência de saneamento do casario clandestino, aliada à sua capacidade de influenciar os corredores do poder legislativo e executivo, foi premiada pelo famoso “Engenheiro Pimenta” com a erradicação de todo o casario ilegal na orla da praia. As casas “de arquitecto”, bem disfarçadas no matagal da arriba sobre a (desaparecida) Praia dos Pilotos, ficaram convenientemente excluídas do programa de limpeza das construções ilegais da Praia do Portinho.
Mas a construção da barra da Figueirinha e do molhe do Outão, no início dos anos 70, assim como a multiplicação de barcos de recreio no Portinho (era tão chique, nessa altura, mostrar aos vizinhos o último modelo de fora-de-borda...) que com as suas âncoras destruíram o manto vegetal submerso que retinha as areias, muito contribuíram para o progressivo desassoreamento da praia. É verdade que a subida do nível médio das águas do mar, a redução dos depósitos sedimentares do estuário do Sado e as dragagens constantes para manter aberto o canal para navios de grande porte, tiveram também a sua quota-parte de responsabilidade. Mas tenho para mim que o egoísmo imediatista dos burgueses privilegiados de Lisboa, que os levou a imaginar uma barreira de classe para se distinguir dos “palestinianos” – os clandestinos que reclamavam ineptamente o seu direito ao paraíso de veraneio –, foi compensação de curta duração. Os clandestinos foram-se, as autoridades do Parque continuam a proibir no Verão a circulação automóvel entre a Figueirinha e o Portinho, sempre com o pretexto de uma esperada calamidade de queda de rochas, mas o Portinho deixou de ter areia. Os “asquenazes” estiram agora as suas toalhas sobre calhaus lamacentos.

Jornal de Azeitão, Maio 2021
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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O palácio hiper-real

1/2/2021

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“Se ainda fosse precisa prova, o novo mamarracho do Berardo mostra mesmo que há uma lei para os grandes e uma lei para os pequenos. Eu, para fazer um telheiro, tive de pedir a um arquitecto para me fazer o projecto, tive de meter os papéis na Câmara e pagar a licença. Estive seis meses à espera da autorização, que agora por causa do Covid dizem que está tudo parado. O Berardo fez o que quis e ninguém parou a obra.”
 
Testemunhos como o deste meu vizinho são comuns, em Azeitão. Tenho-os ouvido um pouco por todo o lado. A percepção de uma justiça desigual mistura-se a sentimentos de inveja difusa, mas deixa habitualmente em silêncio quaisquer juízos estéticos ou de carácter patrimonial. O que é a razão maior da disputa entre o Estado e o empresário – a proximidade entre a histórica Quinta da Bacalhoa e a antiga estação rodoviária dos Belos, em área classificada do Parque Natural da Arrábida – não tem transparecido como preocupação válida nos desabafos que tenho recolhido. É um pouco como se, para “os pequenos”, o empresário, o governo, o ICNF e a câmara fossem faces da mesma entidade que invejam e condenam: são todos “os grandes”, ligados por laços imaginados de corrupção e abuso de que “os pequenos” se sentem excluídos.
 
O discurso anti-nepotista é fruste mas revelador. Sobretudo pelo seu pesado silêncio, é revelador do estado das ideias populares sobre ordenamento territorial e da frágil apreensão dos valores patrimoniais da região. Conceitos como “histórico”, “tradicional”, “autêntico”, que tendem a ser usados e abusados como parte de argumentos justificativos pelas diversas autoridades, soam a ocos e desgastados, e são apenas percebidos como intrusos impeditivos pela população. Vale a pena perceber porquê.
 
No já longínquo ano de 1975, Umberto Eco escreveu o ensaio Viagens à hiper-realidade no qual relatava o fascínio do imaginário norte-americano pelo simulacro. Segundo o escritor, este fascínio conduziu a uma obsessão nacional pela reprodução hiperbólica, em que o falso se conforma melhor à ideia de real que o próprio real. Se Eco tivesse escrito o seu ensaio mais recentemente, teria certamente adicionado a figura de Donald Trump ao seu catálogo de simulacros made in USA. Mais que empresário, Trump representa ser empresário; mais que milionário, ele ostenta ser milionário; e mais que político, ele finge ser político. Eco teria certamente visto grandes semelhanças entre Trump e o crocodilo robótico com o qual se confrontou ao percorrer de barco um simulacro de rio selvagem, numa das atracções da Disneylandia, na Flórida.
 
Mas desengane-se quem pensar que este fascínio pelo simulacro é, hoje em dia, um exclusivo americano. Pode ser que, numa sociedade de abundância capitalista, seja mais fácil produzir simulacros hiperbólicos e espectaculares. Mas se deslocarmos a lupa, das luzes intensas de Orlando, Hollywood ou Las Vegas para a microscópica região de Azeitão, situada no interstício de duas áreas metropolitanas de um país pobre e periférico, encontramos curiosas semelhanças. Encontramo-las não apenas no novo “palácio” Berardo ou nos reclames azuis que são o pelotão de pedra dos soldados chineses guardando a entrada da Bacalhoa. Os sinais estão por todo o lado, na linha de palmeiras entre o vinhedo da quinta, no arco falso à entrada da vila, no lettering das casas comerciais anunciando doçaria regional, nos beirados e na traça das vivendas   desenhadas à “antiga portuguesa”, nos muretes de pedra a fazer parecer casario antigo, nos azulejos industriais modernos que se fazem passar por artesanais e antigos. Mas também nas palavras que preenchem os discursos de promoção turística da região: “velho”, “antigo”, “senhorial”, “tradicional”. E, claro, nos esforços de embelezamento da área do Parque. A “Arrábida” é manto mágico que encobre, como simulacro de si mesma, toda uma gama de acções humanas que modificam, degradam e desfeiam o espaço natural da serra. A cimenteira e as pedras são os mais evidentes arguidos, mas a multitude de casinhas e casarões que pontuam a área protegida, convenientemente apetrechados de telha cónica e lintéis em pedra talhada, são outros tantos objectos transformadores: confortáveis imitações da vida rural para repouso temporário de urbanitas que, mais que os crimes ambientais da Secil, revelam o paradoxo de pretender “preservar” valores patrimoniais numa área “natural” protegida quando os modos de vida “tradicionais” que lhes davam sentido dali desapareceram para sempre.
 
Nem poderia ser de outra forma, talvez. Pintar Azeitão com cores da “tradição”, da “história” e do “autêntico” parece ser a última linha de defesa da identidade de uma vila e de uma região que há muito deixou de ser um mundo de ruralidade para se tornar um dormitório periurbano, alojamento dos “pequenos” sem posses para habitar a cidade e alojamento dos “grandes” com posses para sair da cidade. Uns e outros irão acabar por visitar um dia o simulacro que é o “palácio” Berardo.

Jornal de Azeitão, Janeiro 2021

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Uma história para esquecer

29/11/2020

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Como alguém uma vez lembrou, as sociedades humanas não conseguem apreender a História com letra maiúscula – quer dizer, a história em toda a sua plenitude e complexidade. A História está para além do entendimento humano. A história é, por isso, sempre “história para alguém”. Há, por isso, multitudes de histórias, ou seja, de selecções possíveis de pontos e eventos do passado vertidas em forma narrativa, para cada grupo, país e tempo. Contar ou escrever história é sempre escolher entre memórias, esquecendo umas e valorizando outras. Por exemplo, há uma história nacional preferida para o final da monarquia (a de Oliveira Martins); há uma para o período salazarista (a Damião de Peres); há uma para o interlúdio marcelista (a de Oliveira Marques); há uma história para o pós-25 de Abril (a de José Matoso). São tanto histórias para entender o passado a que se reportam como entender o momento para o qual foram escritas.

As histórias de Portugal espelham, sem as ler, as histórias de Espanha. As histórias locais divergem das histórias nacionais e estas das histórias gerais ou universais. As histórias liberais catalãs opõem-se às histórias conservadoras castelhanas. As histórias de Lisboa escritas por portugueses distinguem-se das histórias de Lisboa contadas por ingleses. Etecetera. Vem isto a propósito de uma entrevista lida há ano e meio no periódico Setúbal Mais, em que a presidente da Junta de Freguesia de Azeitão anunciava que “o palácio dos Duques de Aveiro foi vendido para se transformar num hotel de charme”. Lida hoje, após os extraordinários acontecimentos despoletados pela pandemia do Covid19, esta é uma memória em relação à qual é difícil decidirmos se vale a pena lembrá-la ou esquecê-la. É possível que o projecto esteja suspenso, adiado ou arquivado. Não faço qualquer ideia da situação actual, mas há duas reflexões que merecem ser feitas a propósito da informação disponibilizada.

A primeira é mais ou menos óbvia: a pandemia provocou um cataclismo na indústria turística mundial. Portugal é (ou era) um dos países do mundo mais dependentes deste sector – e por isso mais sensíveis às suas vicissitudes. Em termos estritamente económicos, as actividades turísticas contabilizaram 19,1% do PIB nacional em 2019, fazendo de Portugal o quinto país do mundo em que o turismo mais impacto tem (tinha) em termos de riqueza produzida. Hoje, penso que há razão para nos perguntarmos se faz sentido fingir que “vai ficar tudo bem” e fazer como se a pandemia fosse apenas um pesadelo passageiro após o qual podemos voltar ao “normal”. Um dos mais visíveis, relevantes – e malbaratados – patrimónios monumentais da região é o “palácio dos Duques de Aveiro”, enquadrando e encimando, com o “convento de São Domingos”, o rossio de Vila Nogueira. A trágico-cómica história do seu progressivo estado de abandono merece ser evocada para ajudar a pensar o seu futuro e o da vila. A pergunta fica aqui a aguardar resposta: valerá a pena destiná-lo à iniciativa privada hoteleira numa era pós-Covid?
 
A segunda, e complementar, reflexão é a seguinte: porque designamos ainda hoje ao arruinado edifício de “palácio dos Duques de Aveiro”? Não tivesse havido pandemia, estaríamos já hoje talvez a contemplar o arranque das obras de um “Palácio-Hotel” no centro histórico da vila. Mas o “palácio” foi durante mais séculos “ruína de palácio” que “palácio”, um aspecto da história local que parece preferível manter sob silêncio. E, antes disso, o “palácio” foi durante setenta anos “fábrica real de estamparia e tecidos de Azeitão”, que precedeu a hoje mais conhecida fábrica de chitas de Alcobaça. E antes da cedência do terreno para a construção do “palácio” em 1521, terá sido terreno de horta dos frades dominicanos desde a construção do convento em 1435. Porque se prefere chamar ao monumento “palácio” e não “fábrica”, “horta” ou “ruína”? Não tenho resposta, mas compreendo que seja mais conveniente para quem procura promover o turismo regional – mesmo em país republicano – polir pergaminhos aristocráticos que expor chagas patrimoniais ou valorizar histórias industriais.

Mesmo silenciando o bárbaro acto punitivo de um Marquês de Pombal utopista e nivelador contra a alta nobreza que resultou na destruição das propriedades dos Távoras e dos Aveiros (mas ainda assim preservou a de Azeitão), é “charmoso” falar da ruína como “palácio dos Duques de Aveiro” – é uma forma de contar a história local que valoriza a sua ligação à corte real e oblitera a sua ligação à emergente (e abortiva) economia industrial do país. E é também um silenciamento da incómoda tendência portuguesa para ceder património público a privados sem quaisquer garantias de que ele seja convenientemente preservado. Foi isso mesmo que aconteceu em 1775, com a atribuição de um alvará de cedência do “palácio” a empresários aventureiros que quiseram fazer uma fábrica de estamparia sem se preocuparem com os problemas logísticos causados pela ausência de estruturas para a importação de algodão e sua fiação. Foi isso mesmo que aconteceu quando a Fazenda Pública decidiu leiloar o “palácio” em 1846 sem procurar garantir a sua preservação futura. É possível que daqui a uns anos alguém esteja nestas páginas a discutir o charme decadente de um “Palácio-Hotel” desocupado.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2020
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A morte da aldeia

12/10/2020

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Primeiro, foi a carrinha do peixe. Costumava chegar às aldeias pelas dez da manhã, com o chicharro, a chaputa e o sargo ainda frescos da lota de Sesimbra. Tocava a buzina, abria a porta traseira e o peixe era arrematado logo ali pela mulher da casa, para o almoço da família. Com o passar dos anos, o velho peixeiro deixou de chegar todos os dias à mesma hora. Três dias por semana, depois dois dias, depois um dia. E depois, deixou de aparecer. Agora, os filhos ou os netos que foram viver para a vila ou para a cidade trazem uma vez por outra duas ou três postas congeladas do super ou do híper.

Depois, foi a carrinha do pão. O papo-seco e o pão da Quinta do Anjo (ou era da Azóia?) chegavam pontualmente ao largo. As mulheres e, vá lá, um ou dois homens chegavam-se à carripana de saco na mão (era de pano, passou a ser de plástico) para levar a encomenda do dia para casa. Um dia, deixou de se lhe ouvir a buzina. Ainda chega, mas sem se fazer anunciar, ao largo da Piedade e algumas das mulheres ainda esperam por ela para comprar o pão no café-mercearia. E enquanto esperam, põem em dia mexericos e chocalhices: tal parece que vai um neto, tal foi ao centro de saúde com a maleita de sempre, tal zangou-se com o marido ontem à tardinha.

Depois, foram os raros moços de fretes que deixavam panfletos publicitários nas caixas de correio da aldeia. Eram os anúncios disto e daquilo, que por vezes ficavam amarelos do sol porque não eram recolhidos ou se arrastavam pelo asfalto a golpes de vento. Um dia, desapareceram os panfletos – à excepção, claro, dos cartões de visita dos angariadores das agências imobiliárias, à coca de tragédias familiares para almoedar casario à consideração de lisboetas endinheirados ou reformados franceses.
O carteiro ainda aparece uma vez por semana, agora montado numa motoreta em substituição da bicicleta, a deixar aqui e ali os envelopes da segurança social e da caixa geral de aposentações. Mas até quando?

Este ano, à conta do Covid, os voluntários da coletividade escusaram-se a tocar às campainhas e badalos das aldeias para pedir contribuições para a festa da Senhora da Conceição. Até porque nem se sabia se podia haver ou não festa. Talvez no próximo ano, se as coisas melhorarem. Talvez por MbWay, ou contactless card. Talvez a generosidade interesseira da Secil cubra os gastos e não seja preciso bater às portas que ainda se vão abrindo aqui e ali.

E depois veio a quarentena. O café-mercearia esteve meses fechado, e o negócio levou um grande rombo. Como abre às oito para servir a clientela feminina que precisa do pão e dos mais ingredientes para preparar almoços antes de se meter ao caminho do seu ofício, os tendeiros não puderam recorrer aos subsídios do estado – são os grandes que conseguem estender a mão e arrecadar as benesses; os pequenos são como o mexilhão que se lixa, preso entre a onda e a rocha. E depois ele há tantos clientes que já não querem frequentar o café porque há outros tantos que entram sem máscara e ainda não se desabituaram de falar alto e expelir reais ou imaginários miasmas. Os miúdos já não vêm jogar nos matraquilhos, os crescidos já não se interessam pelos prémios da caixa de furos. Para mais, o senhorio não quer renovar o aluguer e assim nem se pode pensar no trespasse. O comércio vai mesmo fechar no final do ano.

Vai mesmo fechar o único ponto de encontro das gentes das aldeias, o sítio onde as histórias são contadas e as novidades são repetidas, onde se ainda se pode tomar o café, a mini ou o bagaço, e gozar um momento de paz entre limpezas de terreno ou mudanças de pasto das ovelhas. Pouco importa, dirão os endinheirados lisboetas e os reformados franceses. Por nós, preferimos pegar no SUV e sentar-nos na esplanada da vila a empanturrar-nos de tortas e capuchinos. As compras, fazemo-las no super ou no híper, e de preferência via online com envio para a residência, que até dá descontos especiais.

Quanto aos cada vez mais idosos aldeãos, que perderam o direito ao peixe, ao pão e à convivência no sítio do costume, fiquem lá com as memórias do que a aldeia foi e de como morreu. Excluídos, marginalizados, esquecidos, a olhar desconfiados para o embonecrado caramanchão florido e sempre vazio de gente que a Junta mandou instalar ali no largo, para se convencer a si própria de que fez qualquer coisa pela terra. Ah, sim, é verdade: o caramanchão é um bom postal turístico para seduzir endinheirados lisboetas e reformados franceses a comprar o que resta do casario por “restaurar”.
 
 Jornal de Azeitão, Setembro 2020
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ir a banhos

30/6/2020

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Lota na praia de Sesimbra, fotografia de Artur Pastor, 1960
Entre as muitas frases memoráveis do filme Lawrence da Arábia, de David Lean, destacam-se duas sobre o deserto. A primeira é do Príncipe Faisal, que acusa Lawrence de não ser de mais que um “inglês amante do deserto”: “Nenhum árabe ama o deserto. Adoramos água e árvores verdes. No deserto não há nada, e ninguém precisa de nada.” A segunda é do próprio Lawrence, respondendo ao jornalista americano que lhe pergunta porque se sente atraído pelo deserto: “porque é limpo”.
 
O que atrai numa praia, pequena amostra de deserto banhada por água não potável? Vale a pena lembrarmos a história desta atracção, agora que, pela primeira vez desde que a polícia marítima do Estado Novo deixou de assediar banhistas de bikini, as autoridades regulamentam acessos e fiscalizam comportamentos a ter nas praias portuguesas, devido ao receio de propagação viral em pleno Verão.
 
Os hábitos balneares nasceram em finais do séc. XIX entre as camadas mais abastadas das populações urbanas europeias. Em Portugal, a ideia de “ir a banhos” para apanhar sol e ar carregado de iodo e sal foi impulsionada pela família real e pela alta burguesia. A urbanização que acompanhou a linha férrea Lisboa-Cascais tornou-se um mostruário das diferenças de classe: veranear não era simplesmente “ir à praia”, mas sim replicar a vida urbana cosmopolita numa atmosfera de lazer, repleta de visitas sociais, festas, jogos e complementar bisbilhotice, construindo em modo acelerado palacetes e “villas” numa orla marítima que nunca antes teria sido considerada viável para urbanização. Enquanto as altas esferas se divertiam no pequeno povoado piscatório de Cascais que tinham tomado de assalto, a pequena burguesia deleitava-se nas praias da Cruz Quebrada e Algés.
 
As diversas vagas de urbanização da orla costeira dão conta da progressiva popularidade destes hábitos, que se foram solidificando à medida que o direito à pausa no trabalho assalariado se implantava nas várias profissões, primeiro do sector terciário, depois secundário, e finalmente primário. As razões de origem eram já aquelas que nos levam hoje às praias no Verão: a limpeza e higiene sanitária. Fugia-se, como hoje, da poluição e dos miasmas das cidades insalubres para recobrar forças vitais para os meses invernais. Tornámo-nos progressivamente “ingleses amantes do deserto”, que suplantámos os “árabes” que o habitavam. Assim foi invadida Sesimbra, depois o Portinho da Arrábida, e mais recentemente a Aldeia do Meco e a Lagoa de Albufeira. Em Sesimbra, a arte da xávega é agora apenas praticada como atracção turística por iniciativa camarária; a lota na praia, dos dois lados do Forte de Santiago, desapareceu no início dos anos setenta; os grupos de pescadores que “desemachuchavam” os aparelhos de espinhel e consertavam as redes de emalhar foram escorraçados do areal (e das ruas da vila) nos anos noventa. As várias “covas” (pequenas enseadas) na costa sul da Serra da Arrábida, do Portinho à Azóia, albergam ainda algumas ruínas dos edifícios das armações de pesca da sardinha, mas os únicos habitantes ocasionais são os veraneantes que chegam por barco ou descem as escarpas a pique. As praias, as tais amostras de deserto que são hoje um bem raro democraticamente cobiçado, eram antes simples espaços funcionais para o trabalho das populações piscatórias (ancoradouros, lotas, etc.) ou então parte de circuitos de peregrinação religiosa: desde a “Pedra Alta” da praia de Sesimbra, onde primeiro apareceu a imagem do Senhor Jesus das Chagas, ao Creiro, onde na Semana Santa as populações rurais de Azeitão se dirigiam em marcha processional, ou às milenares festas da Senhora do Cabo, onde às populações locais se juntavam os peregrinos das freguesias saloias e, até ao séc. XIX, a própria casa real e alta nobreza senhorial... As praias eram locais de culto que, diz-se, antes de serem cristãos tinham sido muçulmanos. Antes de nos tornarmos “ingleses” urbanos, os “árabes” rurais que já fomos não víamos nos areais costeiros muito mais que nada.


Jornal de Azeitão, Junho 2020
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    Manuel joão ramos

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