MANUEL JOÃO RAMOS
  • Home
    • English >
      • Blog
      • Publications
      • Graphics
      • Videos
      • About Me
      • Contact
    • Português >
      • Publicações
      • Arte Gráfica
      • Vídeos
      • Sobre Mim
      • Contacto
      • Politica de privacidade

A subida da serra

29/4/2021

0 Comments

 
Picture
É possível que eu tivesse estado distraído até então, mas a primeira memória que tenho de manifestações colectivas em que os carros (e as suas buzinas) se tornaram protagonistas em Portugal foi em Setembro de 1999, em Lisboa, durante o movimento popular de apoio à independência de Timor-Leste. Não desvalorizando os cordões humanos e as concentrações em frente à sede da ONU e da embaixada dos EUA, as imagens que mais me impressionaram então foram as dos buzinões na Praça do Marquês do Pombal e na Av. Fontes Pereira de Melo. Pela primeira vez, o automóvel era usado pela população para se exprimir colectivamente. Nada de extraordinário, claro. No final do século, o carro tinha-se finalmente tornado ubíquo e a mobilidade automóvel tornou-se predominante. Em dez anos, de 1985 a 1995, o parque de viaturas ligeiras tinha passado de 400 mil para mais de 4 milhões, o que correspondeu a uma igual decuplicação do número de condutores encartados no país.
Outra imagem forte desta transformação, nas minhas memórias desse período, é a da presença nas televisões da figura anafada, inchada, obesa do campeão maratonista Carlos Lopes, antes um magrinho escanzelado.
O final do séc. XX correspondeu em Portugal, não apenas a uma transformação nos modos de mobilidade e transporte, mas a uma alteração profunda dos corpos: mais velhos, porque o país envelheceu à custa de uma diminuição drástica da natalidade, e mais gordos. Portugal tornou-se país de nómadas sedentários, circulando como nunca até então, mas permanentemente sentados no banco de automóveis.
Com esta preponderância simbólica, esfumou-se a noção de mortificação do corpo, que tinha sido tão emblemática na construção da figura do maratonista franzino vencedor dos jogos olímpicos ou no esforço do ciclista da Volta a Portugal, subindo e descendo as íngremes fragas nortenhas. A mortificação do corpo pela redenção da alma é o sedimento da peregrinação que tem, como sabemos, na marcha até Fátima o seu epítome em termos de expressão colectiva nacional. Na minha memória, pelo menos, os buzinões por Timor-Leste tiveram o condão de ser um dos primeiros – mas certamente não os últimos – actos de absurdização dos rituais milenares de glorificação comunal da mortificação. A peregrinação colectiva é antitética da busca do prazer imediato individual, sendo o automóvel uma das expressões mais conseguidas do individualismo (isto é, até à chegada do telemóvel). Uma manifestação – ou uma peregrinação – feita a partir do confortável assento do automóvel pareceu-me na altura – e parece-me ainda hoje – um total contrassenso.
Embora infinitamente mais modestas que Fátima ou Santiago de Compostela como expressões comunais desta intenção de redenção (e também de expiação) por via da marcha flageladora, os círios da Arrábida merecem ser aqui relevadas, numa altura em que, evocados os motivos de saúde pública em período pandémico, estão proibidas. É verdade que há muito que a peregrinação à ermida de Nª Senhora do Cabo Espichel deixou de ser praticada a pé a partir das freguesias saloias, mas, até ter sido proibidas no ano passado, a romaria de Sexta-feira Santa até à praia do Portinho e o Círio de Nª Senhora da Arrábida, em Julho continuavam a ser praticadas a pé (embora reconheça que parte substancial dos peregrinos, por mil razões individuais, já prefira fazê-la de carro). O galgar a serra até ao topo e descer depois o penhasco íngreme da face sul, integrado num ritual de devoção mariana, é árduo e doloroso. Mas nos dias de hoje, em que o diabo é o sedentarismo e a obesidade, merecem ser evocadas como importantes exemplos de redenção não apenas das almas, mas também da saúde pessoal e pública.

Jornal de Azeitão, Abril 2021

Tags:
0 Comments

DO queijo da Azóia

7/4/2021

0 Comments

 
Picture


A história do queijo de Azeitão já foi pisada e repisada vezes sem conta: por volta de 1830, o “ratinho” Gaspar Henriques de Paiva, traz para a região de Azeitão ovelhas de raça bordalesa e, com ajuda de um queijeiro de Castelo Branco, inicia a produção de queijos, inicialmente de peso e tamanho semelhantes ao queijo da Serra, mas depois reduzido para 330gr e finalmente para os actuais 250gr. Menos se fala do queijo da Azóia e quase nada se fala das diferenças entre um e outro. Pessoalmente, prefiro o da Azóia, de sabor mais intenso e áspero, memória palatal do meio mais árido e intenso do Cabo Espichel e do azevém, da serradela, da tremocilha, da luzema e da baga de aroeira de que compõe o pasto das ovelhas da Azóia.

Antes de saber do processo de fabrico do queijo, quis ir ouvir os pastores e saber das agruras da criação de ovelhas. Segue o testemunho de um criador do Cabo:

A ovelha é um animal muito melindroso. Às vezes vou lá abaixo acompanhá-las quando elas vão para o pasto, e começo logo a vê-las: Oh, ontem andava tudo, não andava nada coxo; hoje já comeram – ê já sabia – já comeram qualquer merda que eu tenho de me pôr a pau, que a ovelha é muito melindrosa. Quando elas estão a andar coxas é porque já comeram, porque aquilo come muito, muito, muito, e ópois, quando elas vêm coxas, aquilo ópois passa. Aquilo é uma coxeira que dá e ópois passa. Mas muitas morrem. 

Ê já tive ovelhas, ê sei lá, desde que me conheço. Tenho tido sempre ovelhas. Já tive aí umas coxas mas se é pelo pico das silvas, deixo-as lá ao pasto. Quando andam ali com uma perna no ar, toda inchada, é pelo pico aí das silvas. Quando têm um espetado no casco, quer dizer, no meio dos dois cascos, saco aquilo, desinfecto, meto-lhe um palequezito pequeno, amarradinho e, olha: em três ou quatro dias, se vou curá-la novamente, já está impecável.

Mas agora, se ê as vejo coxas de comerem, fico logo à rasca. Amanhã já não as meto no pasto. Oiça lá, p´ráqui, quando se cepa o trigo, fica lá o restolho e a espiga, um gajo não pode chegar a casa e dar água aos animais. Porque depois aquilo incha e arrebenta com elas. Sabe como é que me morreram umas lá no outro dia, lá na eira? Foi a tremocilha. Eu não sabia, isso é danado. Olhe, meti-as lá nos lotes de terreno, uns gajos semearam para lá tremocilha, e elas engoliram aquilo inteiro. Oh, foi uma limpeza. Morreram-me quatro. E uma vez comprei um borrego e uma borrega ali ao Pinhal Novo, a um primo meu... não duraram quinze dias. Foram para a tremocilha, eu não sabia que havia para lá tremocilha. Morreram logo. 

E há outra. Você, por exemplo, tem ali ovelhas. Estão agora a seco, não é? Semeia para lá cevada e não sei que mais. Quando está bom para largar lá as ovelhas, se as larga lá e as deixa andar à vontade, elas vão-se todas embora. Apanham diarreia e morrem todas. Arrebentam por dentro. E sabe porquê? O animal está feito ao seco e ópois mete-se no verde, come, come, come, enchem-se e ópois chega a um ponto que é que embucha, não remói, e ópois quando ela vem por meio aquilo fica ali uma bola e arrebenta.

Uma pessoa pode largá-las no pasto verde mas é assim: larga hoje, por exemplo, mas é um quarto e hora e tiras. Rua! No outro dia, vai lá, vinte minutos. Tá a ver, vai indo assim. Até que chega a um ponto que já não faz mal, pronto, já pode-se deixar que não lhe faz mal. Agora, se vai para o pasto verde de repente... É que metê-las lá dentro de repente e deixá-las andar até elas quererem, no outro dia está tudo morto. Mas, por exemplo, agora que choveu vão rebentar aquelas ervas. Mas como elas andam por aí à solta, assim não faz mal. Faz mal é a gente tê-las presas a seco e ópois, de repente, metê-las no verde, e deixá-las andar à vontade. Isso, atão, vão-se todas embora. É a frasquilha, cresce à volta da figueira, elas vão atrás dela, mas como a erva está gelada, quando está de gelo, a erva mata-as. Chama-se a isso frasquilha. Mata-as. São melindrosas.

Ê não gosto muito deste rebanho que para aí anda. Isto é gado de carne e eu não gosto disto. Eu gosto de gado é de gado saloio: gado de leite. Nem é para tirar leite: é que a ovelha tem um borrego ou dois e a gente quer matar um borrego ou dois e mata e aquilo é só carne, tá a ver ou não? Mas agora um gajo, com estas ovelhas, atravessadas em França, charolesas e não sei que mais, um gajo mata um borrego e aquilo é só seco, não tem carne nenhuma. Para a gente ter ovelhas desta em casa, elas não prestam. Uma pessoa não se safa.

Agora, a cabra é outra coisa. Come tudo e mais alguma coisa. A cabra é safada. É um animal do diabo.


Seja de ovelha ou de cabra, de animais melindrosos ou do diabo, a verdade é que o queijo artesanal da Azóia é uma pérola quase desconhecida.

Jornal de Azeitão, Março 2021
Tags:
0 Comments

    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

    Archives

    November 2022
    October 2022
    September 2022
    August 2022
    July 2022
    May 2022
    April 2022
    February 2022
    January 2022
    November 2021
    October 2021
    September 2021
    August 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    April 2020
    March 2020

    Categories

    All
    Ambiente
    Arrabida
    Arte
    Censura
    Comuns
    Conflito
    Etiopia
    Gentrificacao
    Historia
    Jornal De Azeitao
    Mobilidade
    Mobility
    O Publico
    Oralidade
    Palestina
    Pandemia
    Pandemic
    Pesca
    Política
    Pollution
    Poluicao
    Portugal
    Risco Rodoviario
    Ritual
    Turismo
    Ucrania
    Universidade
    Urbanismo

    RSS Feed