MANUEL JOÃO RAMOS
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MARODERS e Pelourinhos

6/10/2022

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​Em 26 de Outubro de 2019, durante uma mediática visita à frente de batalha no Donbass, o recentemente eleito presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, envolveu-se numa dura troca de palavras com Denys Yantar, um veterano do Batalhão Azov, na vila de Zolote, no Oblast de Luhansk. O Batalhão, que nessa altura estava em vias de ser incorporado na estrutura regular de defesa territorial, lançou a campanha pública “Não à capitulação”, com o declarado objectivo de sabotar as incipientes iniciativas de pacificação entre o governo ucraniano e os revoltosos de Donetsk e Luhansk.
 
O momento em que Zelensky, surgindo pela primeira vez perante as câmaras em uniforme militar, implorava a Yantar que depusesse as armas foi mostrado na televisão nacional ucraniana, e causou uma tempestade de comentários e ameaças nas redes sociais do país. Yantar tinha previamente insinuado perante Zelensky que uma rebelião estava a ser preparada caso ele não desistisse de buscar soluções negociadas para o fim dos combates no Donbass, a promessa eleitoral que lhe tinha garantido a eleição, meses antes. Este episódio enterrou simbolicamente os chamados Acordos de Minsk, e esteve na origem de uma viragem de 180 graus na postura política de Zelensky. Mais tarde, o batalhão Azov acabou por se retirar de Zolote e concentrar-se em Mariupol, mas, como os então revoltados os meios de comunicação ocidentais não deixaram de notar, a guerra no Donbass intensificou-se dramaticamente.
 
Os discursos dos nacionalistas contra o jovem presidente tornaram-se cada vez mais inflamatórios. No seu canal Youtube, Andriy Biletsky, o líder do Batalhão Azov e do seu ramo político, o Corpo Nacional, jurou levar para Zolote milhares de militantes caso o presidente tentasse recuar a linha da frente, como previsto. Sofia Fedyna, deputada do Partido Solidariedade Europeia, ameaçou o presidente de morte. Poder-se-ia dizer que o estado de graça de Zelensky tinha terminado, mas na verdade ele nunca tinha chegado a existir. Em 27 de Maio de 2019, apenas uma semana após a investidura de Zelensky na Rada, Dmytro Yarosh, fundador do Sector Direito e comandante do Exército Voluntário Ucraniano, em entrevista ao Obozrevaltel, reafirmou a tese do anterior presidente, Petro Porochenko, de que os Acordos de Minsk não eram para ser cumpridos mas para ganhar tempo e preparar a ofensiva final contra o Donbass e a Crimeia e, que se o presidente não concordasse com este plano e “traísse a Ucrânia”, não seria demitido mas morto: “ele perderá a vida. Será atado contra uma árvore em Khreschatyk (a principal avenida de Kiev)”.

A riqueza de sentido desta expressão pode facilmente passar despercebida a quem não esteja familiarizado com as especificidades da tradição de punição extra-judicial – a chamada justiça popular – na Ucrânia, e com a sua progressiva politização nos últimos anos. É notável, desde o início da operação de cobertura mediática internacional da guerra da Ucrânia, como os correspondentes das inúmeras televisões e jornais ocidentais nas cidades ucranianas têm passado em silêncio a muito visível forma de punição pública dos chamados maroders (“pilhadores”, “ladrões”). A menos que um jornalista nunca saia do seu hotel, dificilmente deixará de se confrontar com exemplos desta prática, em que pessoas são atadas a árvores e postes com fita cola ou, mais recentemente com película aderente, as calças ou saias baixadas, as nádegas fustigadas com chibatas ou varas, e a cara pintada com tinta verde indelével. Habitualmente, este castigo público, aplicável tanto a homens como a mulheres, a idosos e a adolescentes, era sobretudo direccionado a ladrões que se aproveitavam da ausência de policiamento para pilhar comida ou pequenos objectos de consumo. A partir do momento em que o uso da língua russa foi proibido no país, e as tensões contra os habitantes do Donbass aumentaram de intensidade, esta forma de punição pública começou a ser dirigida contra quem fosse suspeito de ser russófilo, ou simplesmente quem fosse ouvido a, por exemplo, falar ao telemóvel em russo. Se originalmente a punição era praticada de forma espontânea por populares para castigar marginais, a partir de 2014 as milícias nacionalistas adoptaram esta forma de punição como meio de perseguição política. A violência dos actos aumentou, e o sadismo foi como que normalizado. Não é, portanto, difícil de entender o sentido das palavras ameaçadoras do Comandante Yarosh contra Zelensky: tendo este sido eleito em parte graças ao voto  das populações russófonas da Ucrânia, e sendo ele próprio russófono (como admitiu, apenas aprendeu a falar ucraniano dois anos antes da sua candidatura à presidência do país), ameaçar atá-lo a uma árvore na avenida principal de Kiev foi uma forma colorida de o identificar como potencial traidor ao ideal nacionalista ucraniano.
 
O simbolismo do atar alguém a uma árvore ou poste como punição de um acto de traição política tem uma imensa profundidade histórica nos imaginários ucraniamo e russo. Foi desta forma que em 945 D.C., de acordo com a Crónica Primária do Rus, o Príncipe Igor de Kiev, marido de Olga, a santa padroeira da Ucrânia, foi punido e morto pelos eslavos drevilianos, em revolta contra a colecta de impostos por parte do Rus de Kiev. Este episódio – assim como a chamada vingança de Olga –, sendo praticamente desconhecido no Ocidente, é, no entanto, informação tão normativa na Ucrânia quanto a putativa bofetada de Afonso Henriques à sua mãe. A corrente punição pública dos maroders na Ucrânia tem assim um efeito de actualização ritual de uma história milenar complexa e fortemente contestada por russos e ucranianos, e que se reporta à reclamação nacionalista das origens do Rus, e à miscigenação entre eslavos, vikings e tártaros.
 
Uma boa parte das cidades e vilas portuguesas ostenta, orgulhosamente preservados, postes de punição pública medieval: os pelourinhos. Não nos ocorre presentemente recorrer a eles para castigar delinquentes, mas, à força de nos convencerem que a solidariedade com a Ucrânia é um passo essencial na defesa dos valores tradicionais europeus, não é difícil imaginar que os pelourinhos venham a ser reactivados. Um dia destes.
 
O Público, 27 Agosto 2022
L'Accent, 28 Agosto 2022
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O Princípio de Eleutério

11/11/2021

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O Menino Eleutério é, nas “habilitações necessárias para ser ministro”, uma d’As Farpas de Eça Queiroz e Ramalho Ortigão, o jovem promissor que, ao falhar sucessivamente na escola primária, no liceu, na universidade, consegue atrair a atenção do “poder moderador”, vendo a sua incompetência premiada com vários cargos governamentais até finalmente chegar a primeiro-ministro. Ao contrário do “princípio de Peter”, segundo o qual uma pessoa competente no seu trabalho é elevada a posições para as quais é incompetente, o muito mais radical “princípio de Eleutério” enunciado por Eça de Queirós estipula que a incompetência demonstrada por uma pessoa  no seu trabalho é critério essencial para a sua promoção.

Os analistas políticos mais cínicos têm avançado a tese de que o ainda primeiro-ministro António Costa, ao despoletar a crise do chumbo do orçamento e a consequente dissolução do parlamento, tinha na mira pensar primeiro em si, depois no PS, e finalmente no país, e que há muito se prepara para dar o salto para novas paisagens. Com o balanço de seis anos de convívio com a política internacional, especula-se até quão longe conseguirá pular e onde irá aterrar. Parlamento europeu, Comissão Europeia, Nações Unidas? Sabemos apenas que esta modalidade de trampolim está há muito instituída nas olimpíadas da política nacional. Os casos mais mediáticos do “princípio de Eleutério” são os de António Guterres e de Durão Barroso. Tendo falhado na sua função governativa, durante a qual acumularam contactos telefónicos de Peters externos, catapultaram-se para lugares de grande responsabilidade na política internacional. O país ficou não apenas aliviado, mas reconhecido por este exercício de ginástica individual, por estes golos dignos de botas de ouro contribuírem para a ilusão de que Portugal é mais que um irrelevante e marginal pedaço de terra infértil encravado entre a Europa e o mar salgado.

Do que faz Durão Barroso hoje em dia, à sombra de Bill Gates, não temos muita informação. Já Guterres não passa um dia sem estar nas bocas do mundo. No passado dia 5 de Novembro, ao fim de um ano de desentendimentos internos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou finalmente uma tíbia declaração conjunta apelando ao cessar-fogo na Etiópia. Esta declaração surge na sequência da publicação de um relatório conjunto do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e da Comissão Etíope dos Direitos Humanos sobre múltiplos massacres, execuções sumárias, violações em série e intenções de extermínio étnico, que evidenciam práticas constantes de atentado aos direitos humanos e configuram crimes contra a humanidade. O relatório foi parcialmente aceite pelo governo etíope, mas liminarmente recusado pelos rebeldes da região do Tigré, que alegam que a participação de um órgão dependente do governo na sua redacção lhe retira legitimidade e neutralidade. As Nações Unidas alegam que, sem a participação da comissão etíope, não teriam tido possibilidade de acesso à informação, mas passam sobre silêncio o facto de a investigação ter descartado totalmente o contributo do governo regional tigrino e cedido à pressão do governo federal etíope para estender aos rebeldes as acusações de crimes praticados essencialmente pelas tropas etíopes e eritreias, e retirar do texto quaisquer palavras que possam sugerir intenções genocidas.

Durante um ano, a mortífera e brutal guerra civil na Etiópia desenrolou-se longe dos olhares do mundo, conduzida por uma figura enigmática: Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro do governo federal, saudado internacionalmente como democrata reformador, nomeado prémio Nobel da paz em 2019, doutorado em resolução de conflitos, coronel do exército federal, ex-responsável pelos serviços de “inteligência” etíopes, muçulmano convertido ao evangelismo milenarista, ex-guerrilheiro de um grupo aliado dos tigrinos que tomaram o poder em 1991, após a deposição do regime militar comunista liderado por Mengistu Haile Maryam. Poucas pessoas para além do júri de doutoramento leram a sua tese, segundo a qual o “capital social” de uma população sai reforçado através da guerra contra o inimigo interno ou externo. E por isso ainda menos pessoas perceberam por que razão, no último ano, ele se tinha aliado com o vizinho inimigo, o regime eritreu, para eliminar os rebeldes tigrinos, segundo ele as “ervas daninhas”, o “cancro”, que invade a Etiópia e ameaça a sua destruição.

Muitas responsabilidades pela dramática situação e pela enorme crise humanitária na Etiópia têm sido assacadas aos diversos intervenientes internos. Mas as responsabilidades das Nações Unidas e, em última análise, as que cabem ao seu secretário-geral só pontualmente têm sido referidas publicamente. A relação das várias agências das Nações Unidas a operar no país com o governo federal tem sido, no mínimo, tumultuosa: em certos casos cúmplice, noutros irresponsável e autofágica, noutros ainda submissa aos interesses de certas grandes potências. A sua acção tem sido minada pelo governo etíope, posta em causa por desentendimentos entre quem opera no terreno e quem decide em Genebra e em Nova Iorque, paralisada por ausência de autoridade central e de financiamento local. Entre os vários escândalos reportados conta-se o da incapacidade de providenciar ajuda humanitária e alimentar a várias regiões afectadas pela guerra, a evidência de caos e desregulamento nas operações de logística e transporte, conflitos internos, desautorizações e suspeitas de inconfidencialidade que resultaram na expulsão de vários altos funcionários, etc. Num país tão habituado à presença de organizações internacionais, este caos não pode deixar de ter um responsável máximo: o secretário-geral das Nações Unidas, que, sempre vestido com o manto da moralidade missionária católica, não admite a sua pusilanimidade face a uma situação interna complexa que lhe é opaca, nem o facto de que a displicência com que se permitiu uma resposta falhada ter contribuído para o agravar do conflito e para colocar aquela organização sob a suspeita de estar a ser manipulada pelos interesses de certas potências ocidentais.
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Gostamos de acreditar que a incompetência de Eleutério se transforma magicamente em competência além-fronteiras. É um pouco como acreditar em unicórnios. Pena é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão não estejam hoje disponíveis para nos elucidar sobre as habilitações necessárias para roçar ombros com as elites internacionais – para ser secretário-geral, presidente de comissão, administrador de banco, director de fundação ou alto representante. Estou certo de que nos ajudariam a adivinhar em que prateleira estrangeira iremos em breve encontrar António Costa.
 
 O Público, 9 Novembro 2021
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O assunto lamentável

6/9/2021

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Não! Não me é possível conceder ao primeiro-ministro António Costa o benefício da dúvida nem a presunção de desconhecimento. No final do último congresso do partido socialista, em entrevista ao canal televisivo SIC, António Costa referiu-se ao atropelamento mortal causado pela viatura oficial em que viajava o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, corrido na tarde de 18 de Junho passado na A6. Afirmou então que:

“O único assunto lamentável aqui é a vida humana que se perdeu. Se houvesse respeito, aguardava-se que as autoridades apurassem o que aconteceu e não se aproveitasse uma perda humana para fazer um ataque político a uma pessoa que era um passageiro num automóvel”. E rematou , dizendo que: “É das coisas mais revoltantes e desprezíveis que tenho assistido”.

Esta foi a primeira vez que, após dois meses a evadir perguntas dos jornalistas, António Costa se referiu ao trágico atropelamento na A6. E fê-lo da pior maneira possível: tratando uma morte como se fosse equivalente à perda de um molho de chaves e isentando Eduardo Cabrita da exigível assunção de responsabilidade.

Vejamos, por partes: será que “o único assunto lamentável aqui” é mesmo a vida humana que se perdeu? Tenho para mim, e presumo que tenha também a viúva de Paulo Santos e os seus filhos, que a vida humana que se perdeu não é um assunto lamentável, mas um assunto trágico. O adjectivo “lamentável” não serve para qualificar a realidade da morte do trabalhador, mas sim do que aconteceu a seguir: o silêncio prolongado de Eduardo Cabrita, os ataques políticos da oposição, o silêncio ainda mais prolongado do primeiro-ministro. Lamentável é António Costa não ter publicamente confrontado o facto de o ministro responsável pela gestão da segurança rodoviária no país ter, indirectamente, causado uma morte na estrada, e igualmente lamentável é o facto de ele próprio, três semanas depois do atropelamento, ter sido detectado a circular, na sua viatura oficial, a 200 km/h na A1. Lamentável é que o caso esteja em segredo de justiça e que o advogado da viúva da vítima não tenha acesso ao processo de investigação.

“Se houvesse respeito”, lamenta o primeiro-ministro, não se fazia um “ataque político”. Num mundo ideal (ou idealizado por filósofos gregos antigos), talvez fosse possível que a política se entrosasse com a ética, e o respeito imperasse. Mas o respeito não é uma concessão de partida, é efeito de um atributo. O respeito ganha-se como resultado, não se exige como condição. Ora, é do conhecimento público que a prática da circulação das viaturas oficiais nas ruas e estradas do país assenta no recurso discricionário e sistemático da chamada “marcha urgente de interesse público”. São inúmeros os “casos e casinhos” em que detentores de cargos públicos se envolvem, directa ou indirectamente, em práticas rodoviárias que, para a generalidade da população, são matéria de sanção criminal. É, no entanto, justo lamentar que opositores políticos condenem práticas rodoviárias sem primeiro fazerem o seu próprio mea culpa. Em particular, é para mim embaraçante ouvir Rui Rio praticar um “ataque político” a Eduardo Cabrita sem antes se retratar dos seus próprios actos rodoviários e das suas palavras publicadas (“a menos de 120 km/h adormeço ao volante”, “riscos contínuos ou velocidade máxima na auto-estrada são obrigações que já risquei da minha lista”, “[atropelei três peões na A1] mas sem consequências de maior”).

“Uma pessoa que era um passageiro num automóvel”: na tarde de 18 de Junho, Eduardo Cabrita não ia, de facto, a conduzir o BMW. Mas, à luz da lei, não era um simples passageiro. E António Costa sabe-o, por ser jurista, ex-deputado, ex-ministro da justiça e ex-ministro da administração interna, e por ele próprio ter estado envolvido, em 2009, num caso de excesso de velocidade na A2 tendo então alegado que a sua viatura circulava em marcha urgente de interesse público quando se dirigia ao estádio do Algarve como presidente da Câmara de Lisboa, para assistir a um jogo que só se iniciaria quatro horas depois. Para todos os efeitos judiciais, Eduardo Cabrita era, naquela situação e naquele momento, mandante do motorista que atropelou o trabalhador. Tal não lhe confere automaticamente, como é natural, o estatuto de responsável pelo atropelamento porque essa responsabilidade deve primeiro ser investigada e julgada. Essa é matéria para o departamento de investigação rodoviária da GNR, que – lamentavelmente – se encontra sob a sua tutela directa; e essa é matéria para o ministério público e para os juízes. Mas deve ficar claro que Eduardo Cabrita, naquela situação, estava longe de ser apenas “uma pessoa que era um passageiro num automóvel”. O motorista estava a agir a mando do ministro e este, por acção ou omissão, foi o responsável pelo seu comportamento rodoviário.
​
Lamentável é fingir que assim não foi, porque desrespeita o facto da morte de Paulo Santos. E lamentável é que o primeiro-ministro desresponsabilize o seu ministro para dessa forma não ter de assumir as suas próprias responsabilidades.
 
 O Público, 2/09/2021

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Mentiras e más ideias

27/8/2021

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Fonte: http://oescapemaisrouco.blogspot.com/
Diz o povo que a mentira tem a perna curta, mas sempre me perguntei por que razão o adágio não explica qual das pernas sofre da deficiência. Nunca fui metódico a explorar esta dúvida, até porque me faltam dados empíricos para formular hipóteses credíveis de resposta. Já o historiador das ideias Arthur Lovejoy ensina no seu livro The Great Chain of Being, de 1936, que as más ideias têm a perna longa. Quando uma ideia, boa ou má, passa ao papel (ou, no caso que o ocupou, ao pergaminho), fica indefesa face aos olhos dos leitores. Não pode escolher entre quem a lê e quem a treslê, e quem acha que a leitura o faz atingir a sabedoria sofre da arrogância do ignorante. Terá sido isto que Sócrates disse a Fedro, se acreditarmos que Platão transcreveu fielmente o diálogo, e que eu refiro fielmente Platão. O argumento de Lovejoy é convincente: segundo ele, Platão teve a má ideia de escrever a “alegoria da caverna” no final da República; ao estipular que entre o mundo material e o mundo espiritual há uma barreira intransponível, ditou os termos de uma visão do mundo que se fazem ainda sentir 2.500 anos depois, no chamado mundo ocidental. Foi uma má ideia que, escrita, cedo perdeu o único defensor credível, o seu autor (nem sabemos se a ideia é de Sócrates ou de Platão). Foi uma má ideia que se infiltrou por todo o lado no pensamento euro-americano, da religião à política e à ciência. Segundo Lovejoy, foi mesmo um “monumento à estupidez”.
Temos assim que as expressões que passam por “verdadeiras” podem ter a perna longa (se acreditarmos que 2.500 anos é evidência de lonjura) e as expressões “falsas” perna curta (no sentido em que podem rapidamente ser contraditas).  Entrando pelos ouvidos ou pelos olhos, infectam como um vírus as circunvalações do cérebro e, se entram nele com o selo de “verdade”, podem ter consequências devastadoras.
Como sabemos, as ideias não se transmitem apenas de boca a boca ou da escrita para os olhos. Tomemos os dois seguintes casos:
- uma autarca (digamos, setubalense) vê na possibilidade de trazer para o concelho a mais importante colecção de arte contemporânea em Portugal; fecha os olhos à torrente de ilegalidades urbanísticas que transformaram uma antiga estação rodoviária em réplica absurda de palácio setecentista em Vila Fresca, para assim poder exibir créditos de “obra feita” em eleições locais; o pretenso dono da colecção de arte é apanhado nas teias das suas mentiras e é detido pelo ministério público; a ideia de transformar um edifício dos anos sessenta em pseudo-palácio sobrevive à mentira porque não passa pela cabeça da autarca demolir o edifício ilegal e pedir desculpas públicas à população.
- uma autarca em fim de carreira (digamos azeitonense) vê a possibilidade de deixar impressa no centro da vila a marca da gentrificação (dito de outro modo, da “renovação”) urbana; por motivos que só a burocracia, o subfinanciamento e a pandemia conhecem, a ideia de pedonalização da via principal da vila não se materializa; mas a ideia da executar e mostrar “obra feita” é demasiado tentadora e por isso, em vez de repavimentar a rua com calçada, ordena a repavimentação com asfalto; o resultado é que em vez de dar precedência aos peões e qualidade de vida à gentry que tarda a instalar-se no centro da vila, se cria uma pista automóvel que atemoriza os peões e estraga as noites aos moradores envelhecidos ainda não abandonaram o centro.
As mentiras políticas têm perna curta, mas resistem e infectam a vida dos cidadãos porque as más ideias têm perna longa – venham elas do lado esquerdo ou do lado direito. Daí eu preferir não dar ideias a ninguém por não poder determinar se são boas ou más; daí eu preferir não dizer que o pseudo-palácio ilegal podia ser arrasado e a conta da demolição enviada ao pretenso dono; daí eu preferir não dizer que seria boa ideia instalar medidas de acalmia de tráfego (lombas, etc.) na Rua José Augusto Coelho, em Vila Nogueira, e parar com as corridas nocturnas de motos. É que ninguém quer passar por estúpido, não é?
 
 Jornal de Azeitão, Agosto 2021
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