Não é só o título que chama a atenção do leitor. A primeira frase é também crucial. É um apelo à imaginação, uma indicação do tom, do género e do estilo da escrita. E é também a presença material da intencionalidade criativa do autor. Ele há muitas maneiras de começar a contar uma história. Há o “Era uma vez, há muitos, muitos anos...” dos contos tradicionais, e o “No tempo em que os animais falavam...” das fábulas infantis. A partir daqui a literatura tornou possíveis infinitas variantes. O “Chamem-me Ishmael”, do Moby Dick de Melville, e o camusiano “A minha mãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não tenho a certeza”, anunciam relatos pseudo-autográficos. O pressagiante “Era um dia frio de Abril, e os relógios batiam as treze” do 1984 de Orwell, contrasta com o afirmativo “É uma verdade universal que um homem de fortuna necessita uma esposa”, do Orgulho e Preconceito de Jane Austen. O “Quando Gregor Samsa despertou na sua cama uma manhã após uma noite de pesadelo, descobriu que se tinha transformado num insecto gigante” oferece logo a chave do que vem a seguir. O “Numa galáxia muito, muito longe...” e o “Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia de irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor...” estabelecem de imediato o contexto temporal e espacial da história que se vai desenrolar.
Imagino que, para muitos urbanos lisboetas, uma viagem a Azeitão possa ter o refrescante sabor do exótico ao lado de casa. É, em pequena escala, equivalente à descoberta dos aromas e cores de Marrocos. Perto, mas ainda assim muito longe. Azeitão, tão plácida e incaracterística, parece, em certas coisas, um minúsculo planeta vogando numa galáxia, muito, muito longínqua. E, nessas certas coisas, evoca também o espírito irredutível dos companheiros de Asterix, o famoso herói da banda desenhada de linha clara franco-belga.
Uma viagem a Marrocos – ou a qualquer outro lugar excêntrico – é sempre um jogo de selecção do olhar e da atenção, um balanço frágil entre o apetecível e o repulsivo, que forma a nossa experiência do lugar. Dependendo do nosso gosto, da nossa tolerância à diferença, da nossa adaptabilidade, é uma experiência que, em casos extremos, pode levar-nos ao êxtase (e ao desejo de eterno retorno) ou ao abismo da repugnância. Mais normalmente, leva-nos ao meio do caminho: um gosto amargo de pessoas e coisas que preferimos esquecer, a tingir o gosto doce das pessoas e coisas que queremos lembrar.
Assim também Azeitão: o urbano lisboeta regressa todos os primeiros domingos do mês ao terreiro da feira porque, mesmo que tenha sido enganado na qualidade da toalha ou na frescura do melão, deseja reinventar a experiência, e voltar a saborear a confusão da mole humana, os gritos do “Três slipes ao preço de um”, e as bifanas mal assadas. Regressa volta e meia à pastelaria que serve “as mais típicas” tortas, e à fonte dos pasmados de água eternamente insalubre. Faz alegre e regularmente o caminho da cruz que, pela serra, leva aos parques de estacionamento sem lugares vagos no Portinho e no Creiro. Se for audaz, aventura-se num trilho pedestre, entre a caruma, as ortigas, as lagartas do pinheiro e as carraças das ovelhas. E depois, ala, regressa à cidade, que não há muito mais que ver na terra que, pensa ele, tem mais fama que proveito.
Há, de facto, em Azeitão algo de aldeia que resiste ainda e sempre ao invasor. E, até certo ponto, tem também algo de galáxia muito, muito longínqua. Explico-me:
Há leis da capital que não têm valor ou obediência na vila, e muito do que lá é apreciado é cá liminarmente rejeitado. Presumo que não seja por isso que os turistas lisboetas fazem por reviver experiências de exotismo, mas ainda assim convido o leitor (e, como se diz agora, num cúmulo de redundância politicamente correcta, a leitora) a passear a pé pelo meandro de ruas onde se alinham moradias de geometria perturbante, versões lusas do sonho suburbano americano. Não é conveniente fazê-lo em dia de feira, porque aí só os loucos o conseguem fazer, tal é a dimensão do engarrafamento automóvel. Nos outros dias, passear a pé obriga a andar pela rua porque os passeios estão em permanência ocupados por uma multitude de carros cujos donos são demasiado preguiçosos para os estacionar nas garagens das suas moradias. É verdade que, ficando escondidos por trás dos portões, não servem como mostra do estatuto económico do morador. Ou, porventura, as garagens estão demasiado atafulhadas de motas de grande cilindrada, para uso nas reuniões do Lavadouro e na estrada do Portinho.
Por outro lado, andar pelo meio da rua, pelo asfalto dessas ruas que, consciente ou inconscientemente, evocam o cenário do Eduardo-Mãos-de-Tesoura, é a melhor garantia de não ficar ensurdecido pelo arraial de cães de guarda das mesmas moradias, que se lançam raivosamente contra as grades e frestas dos portões, ameaçando abocanhar pernas, braços e traqueias dos viandantes. Cães que não saem à rua, e que não entram na porta. São uma espécie de imigrantes refugiados que comem e calam – quer dizer, não calam porque o seu trabalho escravo é ladrar e uivar até à loucura ou ensurdecimento da vizinhança.
Azeitão é um minúsculo planeta de uma galáxia de maus costumes que resiste incompreensivelmente às leis da capital. Seja as leis do ruído (obrigado, motoqueiros), as normas do Código da Estrada (obrigado, donos de SUV mal-estacionados), e as regras básicas da protecção dos animais (obrigado, donos de cães abandonados em casa própria). Talvez a razão pela qual os urbanos lisboetas gostem de regressar regularmente a Azeitão seja para ver se conseguem entrever, no topo de uma escada de alumínio, o Eduardo-Mãos-de-Tesoura, ele próprio, a desbastar violentamente as oliveiras da vila. Mas ai deles se se metem a andar a pé pela vila.
Jornal de Azeitão, Março 2023