MANUEL JOÃO RAMOS
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Em defesa do direito à romaria

8/1/2022

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Durante o séc. XIX, o estudo das sociedades e culturas era determinado por uma intenção manifestamente etnocêntrica. Supunha-se uma linha de evolução justificativa da superioridade civilizacional e intelectual do Ocidente, e equacionava-se a variedade cultural com uma incomprovada graduação das capacidades mentais. A “primitividade” dos costumes de certas sociedades era entendida como manifestação de pobreza de espírito, como estupidez colectiva. Ao longo do séc. XX, a crítica desta visão auto-centrada conduziu à valorização da riqueza e complexidade de culturas antes vistas como frustres e incivilizadas. O pressuposto anterior foi substituído por um novo, o da inteligência colectiva, como fonte da qual emanava harmonia social e criatividade cultural. Consequentemente, pressupor a existência de uma “estupidez colectiva” tornou-se tabu, particularmente entre antropólogos.
E, no entanto... quando olhamos em nossa volta, sentimos por vezes que o velho ditado castelhano sobre as bruxas se aplica a este tópico: “Yo no creo en estupidez colectiva, pero que la hay, la hay”. Isto poderia vir a propósito da aparente fatalidade do destino suicidário do ser humano actual, irremediavelmente decidido a destruir o equilíbrio ambiental que lhe assegura a sobrevivência. Mas prefiro não erguer tão alto a minha arrogância reprobatória, e ficar-me por um bem mais modesto exemplo: o da relação difícil que os portugueses parecem ter com o debate intelectual no que respeita ao tema, a uma vez jurídico, patrimonial e económico, dos “comuns” (a própria estranheza lexical do termo, tradução literal do inglês commons, sugere já ausência de reflexão e debate público sobre o assunto). Os “comuns” constituem-se como o terceiro e muito desdenhado pilar da teoria do Direito, habitando um espaço ambíguo entre o público e o privado. Em Portugal, o Direito dos “comuns” reporta-se explicitamente à gestão comunitária de terrenos incultivados, ou “baldios”. Herança de formas de auto-organização local, o comunitarismo é, no entanto, muito mais que simples gestão colectiva de terrenos de pasto por comunidades locais. É uma antiga instituição cultural que, desde a alta Idade Média, insinua uma importante brecha na concepção dualista que reduz as relações jurídicas e sociais à antinomia entre público e privado, no Direito romano.
Se olharmos em volta com um pouco de atenção, percebemos que os “comuns” não se limitam aos “baldios”. Por exemplo: a caça e a pesca são, em grande medida, usos individuais de bens comuns; assim também a vivência colectiva em espaços urbanizados, a gastronomia, e as múltiplas formas de conhecimento, tanto analógico como digital. O ar que respiramos, o mar onde nos banhamos e a terra que cheiramos são bens comuns, não públicos ou privados. Mais ainda, a própria ausência de reflexão sobre este assunto é manifestação de um outro direito comum: a estupidez colectiva (também lhe poderíamos chamar de “burrice comunitária”).
Reparei que a Quinta de El Carmen, na falda ocidental da Serra da Arrábida, se encontra à venda, pelo valor milionário de 12 milhões de euros, mas nada vem dito sobre o direito de romaria à sua ermida, nem ninguém parece querer preocupar-se com o assunto. A ermida foi privatizada pela 2ª Duquesa de Aveiro, a espanhola D. Madalena Girón, em 1560, que a ampliou e lhe atribuiu o nome presente, em honra de Nossa Senhora do Carmo (ou Del Carmen). Construída num ermo ou “baldio” que as comunidades locais usavam para a pastorícia e a obtenção de lenha e, em particular a aristocracia residente, como couto de caça, a ermida era anteriormente dedicada a Nossa Senhora da Pinha. Como a ermida do Cabo Espichel ou a do convento da Arrábida, é um antigo local de romaria local, como atesta a lenda do marido ciumento que Nossa Senhora impede de matar a mulher, atirando-lhe uma pinha à cabeça. Foi construída pelos mordomos da zona de Azeitão e paga por esmolas das comunidades. Atestam-se, ao longo dos séculos, bailes e representações dramáticas no adro da ermida. Em 1714, há notícia de que o Cabido de Lisboa mandou afixar uma nota pastoral na porta da igreja, suspendendo as festividades, sob pena de excomunhão, já que, aparentemente, não eram “tão honestas como era razão que fossem”. Os habitantes dos Casais da Serra e das Pedreiras fazem anualmente romarias à Capela de El Carmen, uns na quinta-feira de Ascensão e os outros a 18 de Agosto. Sendo parca a documentação histórica, comprova ainda assim a antiguidade das missas cantadas, dos sermões, dos arraiais com baile, e das refeições comensais.
Entalado entre o Direito público, que gere as relações entre os cidadãos e o Parque Natural da Arrábida, e o Direito privado que define os direitos e deveres de propriedade da Quinta de El Carmen, o Direito dos “comuns”, nomeadamente aquele que rege romarias, procissões, e até a apanha de pinhas, ervas aromáticas e caracóis nas faldas da serra, definha porque não encontra quem perceba a sua importância como garantia de sobrevivência de valores culturais. A estupidez colectiva é uma importante causa da "tragédia dos comuns".
 
 Jornal de Azeitão, Novembro 2021
 
 
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A subida da serra

29/4/2021

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É possível que eu tivesse estado distraído até então, mas a primeira memória que tenho de manifestações colectivas em que os carros (e as suas buzinas) se tornaram protagonistas em Portugal foi em Setembro de 1999, em Lisboa, durante o movimento popular de apoio à independência de Timor-Leste. Não desvalorizando os cordões humanos e as concentrações em frente à sede da ONU e da embaixada dos EUA, as imagens que mais me impressionaram então foram as dos buzinões na Praça do Marquês do Pombal e na Av. Fontes Pereira de Melo. Pela primeira vez, o automóvel era usado pela população para se exprimir colectivamente. Nada de extraordinário, claro. No final do século, o carro tinha-se finalmente tornado ubíquo e a mobilidade automóvel tornou-se predominante. Em dez anos, de 1985 a 1995, o parque de viaturas ligeiras tinha passado de 400 mil para mais de 4 milhões, o que correspondeu a uma igual decuplicação do número de condutores encartados no país.
Outra imagem forte desta transformação, nas minhas memórias desse período, é a da presença nas televisões da figura anafada, inchada, obesa do campeão maratonista Carlos Lopes, antes um magrinho escanzelado.
O final do séc. XX correspondeu em Portugal, não apenas a uma transformação nos modos de mobilidade e transporte, mas a uma alteração profunda dos corpos: mais velhos, porque o país envelheceu à custa de uma diminuição drástica da natalidade, e mais gordos. Portugal tornou-se país de nómadas sedentários, circulando como nunca até então, mas permanentemente sentados no banco de automóveis.
Com esta preponderância simbólica, esfumou-se a noção de mortificação do corpo, que tinha sido tão emblemática na construção da figura do maratonista franzino vencedor dos jogos olímpicos ou no esforço do ciclista da Volta a Portugal, subindo e descendo as íngremes fragas nortenhas. A mortificação do corpo pela redenção da alma é o sedimento da peregrinação que tem, como sabemos, na marcha até Fátima o seu epítome em termos de expressão colectiva nacional. Na minha memória, pelo menos, os buzinões por Timor-Leste tiveram o condão de ser um dos primeiros – mas certamente não os últimos – actos de absurdização dos rituais milenares de glorificação comunal da mortificação. A peregrinação colectiva é antitética da busca do prazer imediato individual, sendo o automóvel uma das expressões mais conseguidas do individualismo (isto é, até à chegada do telemóvel). Uma manifestação – ou uma peregrinação – feita a partir do confortável assento do automóvel pareceu-me na altura – e parece-me ainda hoje – um total contrassenso.
Embora infinitamente mais modestas que Fátima ou Santiago de Compostela como expressões comunais desta intenção de redenção (e também de expiação) por via da marcha flageladora, os círios da Arrábida merecem ser aqui relevadas, numa altura em que, evocados os motivos de saúde pública em período pandémico, estão proibidas. É verdade que há muito que a peregrinação à ermida de Nª Senhora do Cabo Espichel deixou de ser praticada a pé a partir das freguesias saloias, mas, até ter sido proibidas no ano passado, a romaria de Sexta-feira Santa até à praia do Portinho e o Círio de Nª Senhora da Arrábida, em Julho continuavam a ser praticadas a pé (embora reconheça que parte substancial dos peregrinos, por mil razões individuais, já prefira fazê-la de carro). O galgar a serra até ao topo e descer depois o penhasco íngreme da face sul, integrado num ritual de devoção mariana, é árduo e doloroso. Mas nos dias de hoje, em que o diabo é o sedentarismo e a obesidade, merecem ser evocadas como importantes exemplos de redenção não apenas das almas, mas também da saúde pessoal e pública.

Jornal de Azeitão, Abril 2021

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PEXITOS

9/7/2020

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Fotografia de Luis Carlos Chagas Rodrigues (2006)
É (ainda) comum ouvir às gentes “do campo” arrabidino a expressão “pexito” para identificar um habitante da vila de Sesimbra. É um termo popular que realça, senão antagonismo, pelo menos uma certa diferenciação tradicional entre duas identidades locais.
A tradição popular é um bicho estranho. Passa de geração em geração sem suscitar dúvidas, mesmo quando o seu sentido se fragmenta e a compreensão se vai perdendo. Umas vezes é renovada, outras esquecida. Mas também acontece que os enigmas que nela se acumulam ganhem, com o tempo, o curioso direito de nela subsistir sem ser questionados ou reinterpretados. A tradição é reportada e revivida sem despertar dúvidas: conta-se assim ou faz-se assado porque sim. A falta de curiosidade em relação à razão de ser de um enigma torna-se ela própria parte integrante da tradição.
Tomemos como exemplo o caso da lenda da origem do culto do Senhor Jesus das Chagas, padroeiro da vila de Sesimbra. Não obstante algumas variações pontuais, a história contada pouco tem mudado nos últimos séculos:
 
No período da reforma anglicana, em início do séc. XVI, em que a destruição das imagens dos santos foi ordenada por Henrique VIII, a sua mulher procurou preservá-las colocando-as em caixotes e lançando-as ao mar. Entre elas, contava-se a imagem de Jesus que veio a aparecer milagrosamente erigida sobre a Pedra Alta, no areal de Sesimbra. No entanto, faltava-lhe um braço e nenhuma das tentativas de o substituir vingou.
Certo dia, uma velha que recolhia madeira na serra para a sua lareira encontrou um tronco, possivelmente de zimbro, que ao arder sem se queimar revelou ser o braço que faltava à imagem de Jesus.

 
É estranha a inclusão, na lenda, da imagem de Jesus no catálogo das imagens de santos a destruir pelos iconoclastas ingleses. Seria apressado presumir que ela se deveu a uma deficiente compreensão, por parte dos católicos sesimbrenses, do sentido das reformas protestantes do norte da Europa. Como não podemos chegar a saber o porquê da inclusão, fiquemo-nos pela constatação de que tal inclusão não é problemática para quem conta e ouve a lenda.
Que a imagem tenha aparecido sem braço e que este tenha sido descoberto, não no mar mas na serra, e por uma velha, também não causa perturbação nem origina qualquer explicação – apesar de ser óbvia a analogia com a sarça ardente do episódio da epifania de Moisés na montanha. É, tal como a própria aparição milagrosa da imagem na Pedra Alta, um enigma que se quer enigma – um mistério, propriamente dito. Podemos, claro, imaginar que a velha representa uma figura de curandeira ou mesmo de parteira, dadas as propriedades farmacológicas que eram antigamente atribuídas ao zimbro, mas a verdade é que o episódio não requer interpretação por parte de quem o relata ou o escuta.
A lenda é contada e revivida em Sesimbra durante a festa e procissão do Senhor Jesus das Chagas a cada dia 4 de Maio, dia em que a velha encontrou o braço na serra (este ano, pela primeira vez, celebrada à porta fechada, devido à pandemia). Não requer interpretação nem explicitação. Mas, como o gato que se esconde com a cauda de fora, relembra todos os anos que a imagem do padroeiro é compósita: se o corpo é de origem marítima e migratória, o braço é de local e serrano, e é nele que se concentra a sua força taumatúrgica. O braço enxertado, tal como a distinção popular entre “pexitos” e “gente do campo”, conta uma história que não necessita ser explicitada para ser entendida. Um amador de história local pode, ainda assim, suspeitar que a lenda sesimbrense evoca uma relação secular problemática entre dois modos de produção e de vida que, ao longo de séculos, marcaram a rivalidade entre Azeitão e Sesimbra e acabaram por levar, primeiro, à desanexação da freguesia de São Lourenço do município de Sesimbra (em 1729) e depois, por irracionalidade administrativa do liberalismo oitocentista, à sua diluição no município de Setúbal (em 1855).
 
 Jornal de Azeitão, Julho 2020
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ir a banhos

30/6/2020

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Lota na praia de Sesimbra, fotografia de Artur Pastor, 1960
Entre as muitas frases memoráveis do filme Lawrence da Arábia, de David Lean, destacam-se duas sobre o deserto. A primeira é do Príncipe Faisal, que acusa Lawrence de não ser de mais que um “inglês amante do deserto”: “Nenhum árabe ama o deserto. Adoramos água e árvores verdes. No deserto não há nada, e ninguém precisa de nada.” A segunda é do próprio Lawrence, respondendo ao jornalista americano que lhe pergunta porque se sente atraído pelo deserto: “porque é limpo”.
 
O que atrai numa praia, pequena amostra de deserto banhada por água não potável? Vale a pena lembrarmos a história desta atracção, agora que, pela primeira vez desde que a polícia marítima do Estado Novo deixou de assediar banhistas de bikini, as autoridades regulamentam acessos e fiscalizam comportamentos a ter nas praias portuguesas, devido ao receio de propagação viral em pleno Verão.
 
Os hábitos balneares nasceram em finais do séc. XIX entre as camadas mais abastadas das populações urbanas europeias. Em Portugal, a ideia de “ir a banhos” para apanhar sol e ar carregado de iodo e sal foi impulsionada pela família real e pela alta burguesia. A urbanização que acompanhou a linha férrea Lisboa-Cascais tornou-se um mostruário das diferenças de classe: veranear não era simplesmente “ir à praia”, mas sim replicar a vida urbana cosmopolita numa atmosfera de lazer, repleta de visitas sociais, festas, jogos e complementar bisbilhotice, construindo em modo acelerado palacetes e “villas” numa orla marítima que nunca antes teria sido considerada viável para urbanização. Enquanto as altas esferas se divertiam no pequeno povoado piscatório de Cascais que tinham tomado de assalto, a pequena burguesia deleitava-se nas praias da Cruz Quebrada e Algés.
 
As diversas vagas de urbanização da orla costeira dão conta da progressiva popularidade destes hábitos, que se foram solidificando à medida que o direito à pausa no trabalho assalariado se implantava nas várias profissões, primeiro do sector terciário, depois secundário, e finalmente primário. As razões de origem eram já aquelas que nos levam hoje às praias no Verão: a limpeza e higiene sanitária. Fugia-se, como hoje, da poluição e dos miasmas das cidades insalubres para recobrar forças vitais para os meses invernais. Tornámo-nos progressivamente “ingleses amantes do deserto”, que suplantámos os “árabes” que o habitavam. Assim foi invadida Sesimbra, depois o Portinho da Arrábida, e mais recentemente a Aldeia do Meco e a Lagoa de Albufeira. Em Sesimbra, a arte da xávega é agora apenas praticada como atracção turística por iniciativa camarária; a lota na praia, dos dois lados do Forte de Santiago, desapareceu no início dos anos setenta; os grupos de pescadores que “desemachuchavam” os aparelhos de espinhel e consertavam as redes de emalhar foram escorraçados do areal (e das ruas da vila) nos anos noventa. As várias “covas” (pequenas enseadas) na costa sul da Serra da Arrábida, do Portinho à Azóia, albergam ainda algumas ruínas dos edifícios das armações de pesca da sardinha, mas os únicos habitantes ocasionais são os veraneantes que chegam por barco ou descem as escarpas a pique. As praias, as tais amostras de deserto que são hoje um bem raro democraticamente cobiçado, eram antes simples espaços funcionais para o trabalho das populações piscatórias (ancoradouros, lotas, etc.) ou então parte de circuitos de peregrinação religiosa: desde a “Pedra Alta” da praia de Sesimbra, onde primeiro apareceu a imagem do Senhor Jesus das Chagas, ao Creiro, onde na Semana Santa as populações rurais de Azeitão se dirigiam em marcha processional, ou às milenares festas da Senhora do Cabo, onde às populações locais se juntavam os peregrinos das freguesias saloias e, até ao séc. XIX, a própria casa real e alta nobreza senhorial... As praias eram locais de culto que, diz-se, antes de serem cristãos tinham sido muçulmanos. Antes de nos tornarmos “ingleses” urbanos, os “árabes” rurais que já fomos não víamos nos areais costeiros muito mais que nada.


Jornal de Azeitão, Junho 2020
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