MANUEL JOÃO RAMOS
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A escura, enigmática, Arrábida

4/2/2022

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O Dunkles rätselhaftes Österreich (“A Escura, enigmática, Áustria”), de 1994, é a segunda parte de série pseudo-documental Das Fest des Huhnes ("O banquete do frango”) de Walter Wippersberger. Trata-se de uma sátira mordaz ao tradicional género do documentário cultural, em que o antropólogo (europeu ou norte-americano) visita e dá a conhecer ao público (europeu ou norte-americano) os costumes exóticos de populações tradicionais africanas ou ameríndias. Um antropólogo africano fictício, Kayonga Kagame, apresenta o programa Fremde Länder, Fremde Sitten (“Terras estrangeiras, costumes estranhos”) na fictícia estação de televisão AllAfricanTele. O antropólogo dá a conhecer ao seu público (supostamente africano) os exóticos costumes dos povos selvagens do Tirol austríaco, entrevistando os habitantes locais e explicando os seus estranhos hábitos ancestrais. Na parte final do filme, procura entender o enigmático ritual tirolês de subir em perigosa peregrinação ao topo das altas montanhas dos Alpes para depois, colocando pedaços de madeira nos pés, as voltar a descer aproveitando as encostas nevadas, e finalmente engorgitar generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio. É uma divertida visão das práticas do alpinismo e do esqui de montanha, olhadas de um imaginário ponto de vista africano que revela o absurdo do esforço e do risco físico de subir montanhas a pulso para depois, com não menos risco, as descer esquiando em grande velocidade.
 
Hoje em dia, não só há inúmeros sites na internet anunciando percursos pedestres nos trilhos da Serrra da Arrábida mas proliferam as micro-empresas oferecendo caminhadas guiadas através dos variados pontos cénicos do parque natural, de Azeitão ao Creiro pela Serra do Risco, do Castelo de Sesimbra às pegadas de dinossauro do Cabo Espichel, de Palmela à contracosta. Graças às benesses do aquecimento climático, têm-se multiplicado os fins de semana ensolarados, mesmo em pleno inverno, o que constitui irrecusável magnete para que uma cada vez mais apreciável franja da população citadina, lusa ou estrangeira, venha calcorrear os ancestrais trilhos arrabidinos. Uma destas propostas caminhadas é a que, saindo do Rossio de Vila Nogueira, ou da vizinha Fonte dos Pasmados, ruma a sul ziguezagueando pela inicialmente suave inclinação das faldas da Serra do Risco, para finalmente enfrentar os contrafortes do Alto do Formosinho, ou Monte do Alvide, e visitar o chamado “Castelo dos Mouros” (antes também conhecido como o “Jogo dos Mouros”), o local de um antigo povoado fortificado da Idade do Bronze alcandorado na crista norte da serra, no esporão calcário bem visível para quem, sem precisar arriscar-se na prática montanhista da Serra do Risco, mira a paisagem a partir das esplanadas dos cafés da Rua José Augusto Coelho.
 
Ora, se bem que os anúncios dos percursos pedestres refiram habitualmente que o trilho do “Castelo dos Mouros” segue o traçado ancestral dos acessos proto-históricos ao topo da serra, geralmente pouco se estendem sobre a história que medeia entre a Idade do Bronze e a época actual. No fundo, a história da carochinha que os sites e anúncios contam tem uma leveza narrativa muito símil à dos condutores de tuk-tuks que oferecem visitas guiadas ao casco histórico da cidade de Lisboa. São constituídos por pedaços de frases rapinadas de outros sites ou de documentos em formato PDF facilmente encontráveis numa busca por palavras-chave num qualquer browser. Nem se lhes pede mais, nem os clientes caminheiros querem saber mais. Pouco interessa, para a prática do alpinismo arrabidino, saber que a passagem do Alto do Formosinho é um os marcos mais pregnantes do antigo Círio da Nossa Senhora da Arrábida, e que a sua memória se tem diluído na consciência histórica das autoridades locais azeitonenses, a tal ponto que a romaria, que antes era realizada no Dia do Espírito Santo, em finais de Maio, acabou por ser deslocada para o mês de Julho, para coincidir com as recentemente fabricadas “Festas da Arrábida e Azeitão”. Também pouco ou nada interessa, aos caminheiros urbanos e aos seus guias turísticos, saber que na sexta-feira de Páscoa os mais ousados preferem deixar o carro em casa e sobem os trilhos da serra até ao Alto do Formosinho, para depois descer a encosta sul até à praia do Creiro onde engorgitam generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio, não a acompanhar um banquete de frango como os tiroleses, mas preferivelmente uma feijoada de choco.
 
O final do filme de Wippersberger foca-se na invasão estival do Tirol por exércitos motorizados de turistas alemães e na relação subserviente que os tiroleses, por um lado tão ciosos da sua cultura independente, mantêm com os invasores endinheirados, abrindo-lhes as portas das suas casas e banqueteando-os com pratos da culinária local. Esta cínica referência aos efeitos perversos do turismo austríaco encontra, como bem sabemos, ecos óbvios na forma como o poder local e os empreendedores da vila abraçam os cifrões que pingam do irreversível e acrítico processo de turistificação da “Arrábida e Azeitão”.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2022
 
 
 
 
 
 
 
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