MANUEL JOÃO RAMOS
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O Princípio de Eleutério

11/11/2021

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O Menino Eleutério é, nas “habilitações necessárias para ser ministro”, uma d’As Farpas de Eça Queiroz e Ramalho Ortigão, o jovem promissor que, ao falhar sucessivamente na escola primária, no liceu, na universidade, consegue atrair a atenção do “poder moderador”, vendo a sua incompetência premiada com vários cargos governamentais até finalmente chegar a primeiro-ministro. Ao contrário do “princípio de Peter”, segundo o qual uma pessoa competente no seu trabalho é elevada a posições para as quais é incompetente, o muito mais radical “princípio de Eleutério” enunciado por Eça de Queirós estipula que a incompetência demonstrada por uma pessoa  no seu trabalho é critério essencial para a sua promoção.

Os analistas políticos mais cínicos têm avançado a tese de que o ainda primeiro-ministro António Costa, ao despoletar a crise do chumbo do orçamento e a consequente dissolução do parlamento, tinha na mira pensar primeiro em si, depois no PS, e finalmente no país, e que há muito se prepara para dar o salto para novas paisagens. Com o balanço de seis anos de convívio com a política internacional, especula-se até quão longe conseguirá pular e onde irá aterrar. Parlamento europeu, Comissão Europeia, Nações Unidas? Sabemos apenas que esta modalidade de trampolim está há muito instituída nas olimpíadas da política nacional. Os casos mais mediáticos do “princípio de Eleutério” são os de António Guterres e de Durão Barroso. Tendo falhado na sua função governativa, durante a qual acumularam contactos telefónicos de Peters externos, catapultaram-se para lugares de grande responsabilidade na política internacional. O país ficou não apenas aliviado, mas reconhecido por este exercício de ginástica individual, por estes golos dignos de botas de ouro contribuírem para a ilusão de que Portugal é mais que um irrelevante e marginal pedaço de terra infértil encravado entre a Europa e o mar salgado.

Do que faz Durão Barroso hoje em dia, à sombra de Bill Gates, não temos muita informação. Já Guterres não passa um dia sem estar nas bocas do mundo. No passado dia 5 de Novembro, ao fim de um ano de desentendimentos internos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou finalmente uma tíbia declaração conjunta apelando ao cessar-fogo na Etiópia. Esta declaração surge na sequência da publicação de um relatório conjunto do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e da Comissão Etíope dos Direitos Humanos sobre múltiplos massacres, execuções sumárias, violações em série e intenções de extermínio étnico, que evidenciam práticas constantes de atentado aos direitos humanos e configuram crimes contra a humanidade. O relatório foi parcialmente aceite pelo governo etíope, mas liminarmente recusado pelos rebeldes da região do Tigré, que alegam que a participação de um órgão dependente do governo na sua redacção lhe retira legitimidade e neutralidade. As Nações Unidas alegam que, sem a participação da comissão etíope, não teriam tido possibilidade de acesso à informação, mas passam sobre silêncio o facto de a investigação ter descartado totalmente o contributo do governo regional tigrino e cedido à pressão do governo federal etíope para estender aos rebeldes as acusações de crimes praticados essencialmente pelas tropas etíopes e eritreias, e retirar do texto quaisquer palavras que possam sugerir intenções genocidas.

Durante um ano, a mortífera e brutal guerra civil na Etiópia desenrolou-se longe dos olhares do mundo, conduzida por uma figura enigmática: Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro do governo federal, saudado internacionalmente como democrata reformador, nomeado prémio Nobel da paz em 2019, doutorado em resolução de conflitos, coronel do exército federal, ex-responsável pelos serviços de “inteligência” etíopes, muçulmano convertido ao evangelismo milenarista, ex-guerrilheiro de um grupo aliado dos tigrinos que tomaram o poder em 1991, após a deposição do regime militar comunista liderado por Mengistu Haile Maryam. Poucas pessoas para além do júri de doutoramento leram a sua tese, segundo a qual o “capital social” de uma população sai reforçado através da guerra contra o inimigo interno ou externo. E por isso ainda menos pessoas perceberam por que razão, no último ano, ele se tinha aliado com o vizinho inimigo, o regime eritreu, para eliminar os rebeldes tigrinos, segundo ele as “ervas daninhas”, o “cancro”, que invade a Etiópia e ameaça a sua destruição.

Muitas responsabilidades pela dramática situação e pela enorme crise humanitária na Etiópia têm sido assacadas aos diversos intervenientes internos. Mas as responsabilidades das Nações Unidas e, em última análise, as que cabem ao seu secretário-geral só pontualmente têm sido referidas publicamente. A relação das várias agências das Nações Unidas a operar no país com o governo federal tem sido, no mínimo, tumultuosa: em certos casos cúmplice, noutros irresponsável e autofágica, noutros ainda submissa aos interesses de certas grandes potências. A sua acção tem sido minada pelo governo etíope, posta em causa por desentendimentos entre quem opera no terreno e quem decide em Genebra e em Nova Iorque, paralisada por ausência de autoridade central e de financiamento local. Entre os vários escândalos reportados conta-se o da incapacidade de providenciar ajuda humanitária e alimentar a várias regiões afectadas pela guerra, a evidência de caos e desregulamento nas operações de logística e transporte, conflitos internos, desautorizações e suspeitas de inconfidencialidade que resultaram na expulsão de vários altos funcionários, etc. Num país tão habituado à presença de organizações internacionais, este caos não pode deixar de ter um responsável máximo: o secretário-geral das Nações Unidas, que, sempre vestido com o manto da moralidade missionária católica, não admite a sua pusilanimidade face a uma situação interna complexa que lhe é opaca, nem o facto de que a displicência com que se permitiu uma resposta falhada ter contribuído para o agravar do conflito e para colocar aquela organização sob a suspeita de estar a ser manipulada pelos interesses de certas potências ocidentais.
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Gostamos de acreditar que a incompetência de Eleutério se transforma magicamente em competência além-fronteiras. É um pouco como acreditar em unicórnios. Pena é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão não estejam hoje disponíveis para nos elucidar sobre as habilitações necessárias para roçar ombros com as elites internacionais – para ser secretário-geral, presidente de comissão, administrador de banco, director de fundação ou alto representante. Estou certo de que nos ajudariam a adivinhar em que prateleira estrangeira iremos em breve encontrar António Costa.
 
 O Público, 9 Novembro 2021
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Etiópia: uma nova página na guerra civil

6/9/2021

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Lamento vir perturbar-vos a rentrée, os dramas das lojas do cidadão, das lanchas da GNR encalhadas em Carcavelos, e dos cartões amarelos de Cristiano Ronaldo.

No passado dia um de Setembro, uma mudança de fase ocorreu na tremenda guerra civil que grassa na Etiópia. O presidente do estado regional Amhara declarou oficialmente o recrutamento dos jovens a partir dos 13 anos (sim, 13 anos – não é uma gralha do jornal), para lutar contra o exército da Frente de Libertação da região vizinha do Tigré, que lançou em Julho um movimento de cerco à região Amhara e um ataque na direcção da capital do país, Adis Abeba. Enquanto por aqui nos queixávamos do verão pouco cálido e do incómodo das máscaras faciais, um sem número de batalhas sangrentas dilacerava o norte da Etiópia. Esta ofensiva militar dos rebeldes tigrinos foi lançada após o humilhante desbaratamento do exército do governo federal às mãos dos rebeldes, em início de Junho, num súbito e devastador contra-ataque que interrompeu o curso de oito meses de massacres e violações em massa perpetrados pelos militares e milícias etíopes e eritreias sobre a população do Tigré.

Incapaz de suster o ataque tigrino, o governo federal apelou às regiões para que recrutassem centenas de milhares de jovens e os jogassem praticamente sem treino contra as balas inimigas nas várias frentes de batalha. O resultado tem sido um morticínio não reportado porque as cadeias de televisão internacionais se encontram impedidas de filmar o horror. Nenhum dos beligerantes pode hoje alegar inocência perante a evidência de massacres, violações, e assaltos à ajuda humanitária internacional. Enquanto os rebeldes avançam, o governo etíope lança-se na compra apressada de armamento e munições junto de velhos e novos parceiros. Na impossibilidade de fazer cumprir acordos de vendas de armas com os países ocidentais, apelou a russos, iranianos, azerbaijanos e sobretudo turcos, esperando que o uso de enxames de drones letais possa alterar o destino de uma guerra que parece não poder parar antes da derrota total do adversário.

Nem a União Africana nem o IGAD têm instrumentos diplomáticos para encontrar soluções mediadas para o conflito. E o Conselho de Segurança das Nações Unidas encontra-se de tal maneira dividido que nem um projecto de resolução chega a tomar forma. Os Estados Unidos, tradicional aliado da Etiópia, deixaram de ter capacidade de pressão desde que se posicionaram do lado egípcio no surdo conflito regional em torno da barragem etíope no Nilo Azul, presentemente em curso de enchimento. O colapso afegão teve como efeito imediato um pusilânime retraimento da administração Biden no que toca ao Corno de África, no que é acompanhado – obedientemente - pela União Europeia. Até onde a Turquia puxará a corda, enviando operadores de drones para a Etiópia, é assunto que as próximas semanas poderão vir a esclarecer. Para já, esta influente presença no Corno de África é motivo de regozijo para Erdogan, averbando vitórias importantes sobre egípcios e árabes.

A guerra civil foi internacionalizada no momento em que o exército eritreu entrou secretamente em solo etíope, a 3 de Novembro último. Neste momento, ameaça a fragilíssima estabilidade do Sudão, da Somália e do Djibuti. A intervenção indirecta de turcos, azerbaijanos e russos aumenta exponencialmente a espiral de volubilidade geostratégica em torno da margem ocidental do principal canal de circulação do comércio internacional que é o Mar Vermelho. Os desafios são importantes e os europeus – e por maioria de razão, os portugueses – enfiam inconvenientemente a cabeça da areia.

A evidência dos massacres e das violações em massa no norte da Etiópia está documentada. As suspeitas de acção genocidária por parte dos exércitos e milícias etíopes e eritreias amontoam-se – a crueza das directivas dos comandos é arrepiante: exterminar quem urina contra a parede (matar os homens) e eliminar a semente nas mulheres (através da violação). Os crimes de uns são justificados pelos crimes anteriores dos outros, numa voragem suicidária. Mas a um de Setembro, uma nova página foi virada: se antes, quem queria saber sabia que todas as forças militares usam jovens e crianças na guerra, agora este nefando crime foi oficialmente admitido. Um leitor português não fará nada porque não pode. Mas um euro-deputado ou um governante podem fazer a diferença. Infelizmente, em Portugal a ideia de que um cidadão eleitor pode pressionar o seu representante eleito na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu não chega sequer a ser uma ficção.
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Se eu venho incomodar-vos a rentrée, é talvez por egoísmo. Silenciando-me, sinto-me cúmplice de um imenso crime. Falando dele, imagino pelo menos que estou a lançar um pouco desta pesada responsabilidade sobre os ombros do eventual leitor.
 
 O Público, 4/09/2021
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A tragédia etíope e o autismo português

6/9/2021

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Em 1984, no pico da fome no norte da Etiópia, contavam-se em Portugal várias anedotas sobre etíopes (do género: “Se uma etíope come um grão de arroz parece que está grávida”). Que me lembre, partilhar anedotas foi a única resposta portuguesa à tragédia. Dado o profundíssimo desconhecimento, neste país, das realidades do Corno de África, estas anedotas tinham por função cristalizar estereótipos veiculados pela comunicação social da altura: a Etiópia como país da fome e da miséria extremas. As transmissões televisivas dos horrores da fome etíope não suscitaram em Portugal outra reacção que não uma chacota desumanizadora. O subtexto que justificava esta reacção era que “coisas destas” aconteciam porque os etíopes são africanos e porque os africanos não são gente como “nós”. As anedotas brotavam, portanto, do fértil terreno do preconceito racial que o processo de descolonização não soube resolver.
 
Do corpus de anedotas de etíopes, uma destacou-se claramente. Dizia o seguinte:

Uma equipa de ajuda humanitária portuguesa visita um campo de refugiados etíopes. Bate à porta de uma tenda para oferecer apoio. Do interior, vem uma voz muito fraca: “quem é?” Um dos voluntários informa: “somos uma missão humanitária portuguesa.” A voz responde, ainda mais fraca: “já demos, já demos...”
 
Não houve, evidentemente, nenhuma missão humanitária enviada pelo governo português para a Etiópia, pelo que esta anedota, contada já durante o maciço movimento de apoio internacional encabeçado por Bob Geldorf, continha um tom auto-crítico que se dirigia sobretudo à aparente incongruência de Portugal, um país pobre e mergulhado numa perene crise económica, ter sido aceite no clube de países ricos que era a então Comunidade Económica Europeia.
 
Contei várias vezes esta anedota a amigos e conhecidos etíopes, em parte como medida profilática em relação a quaisquer ilusórias esperanças suas de colaboração com as entidades governamentais portuguesas. O período febril da cooperação europeia com África, de 2000 até à crise de 2008, suscitou um inusitado aprofundamento de relações diplomáticas e comerciais dos países do sul da Europa (sobretudo Itália e Espanha) com o continente africano. Portugal procurou – sem ter evidentemente os meios e capacidades para tal – acompanhar este movimento. A aproximação à Etiópia era considerada neste contexto um imperativo, dado que Adis Abeba, albergando a sede da União Africana, era e é o centro da diplomacia internacional no continente. O triunfalismo que acompanhou a organização da segunda cimeira Europa-África em 2007, durante a presidência portuguesa da EU, foi efémero, revelando as autoridades portuguesas clara falta de preparação e um conhecimento muito limitado das realidades africanas que ficam para além do dito “espaço lusófono” (é inesquecível o episódio do almoço de carne de porco oferecido a dignatários muçulmanos).
Nas últimas duas décadas, tomei conhecimento de inúmeras tentativas de colaboração e de intervenção portuguesa na Etiópia, as quais sempre resultaram em estrondosos e expectáveis fracassos, geralmente causados pelo facto de o notável voluntarismo do empenho individual esbarrar sempre com o muro impenetrável da pequenez de visão e do espírito burocrático que marca a diplomacia política, cultural e económica portuguesa. Uma das mais absurdas iniciativas foi – ou é - o das comemorações dos 500 anos de relações diplomáticas entre Portugal e a Etiópia, uma tentativa canhestra de rivalizar com os programas de intervenção espanhola e brasileira naquele país. Este programa foi lançado em 2014 – ano em que (não) se celebrou o meio milénio da chegada do primeiro embaixador etíope à corte real portuguesa – e é previsto terminar em 2026 – quinhentos anos após o regresso da primeira embaixada portuguesa ao reino abissínio. Poderia ter sido uma oportunidade imperdível de lustrar os pergaminhos das relações históricas entre os dois países, e por extensão entre os dois continentes (afinal, foi a primeira troca de embaixadas entre a Europa e África). Em vez disso, este programa de celebrações constitui-se como anedótico e risível símbolo das imensas limitações da diplomacia portuguesa naquele continente.
 
Presentemente, a Etiópia encontra-se mergulhada numa horrenda guerra civil que ameaça transformar-se num desastre comparável ao de 1984. A espiral da escalada militar naquele que é um dos países mais populosos de África coloca em risco o requisito estratégico de estabilidade numa das regiões mais sensíveis para a economia mundial, o Mar Vermelho. São múltiplos os relatos de atrocidades praticadas sobre as populações, e têm proliferado as previsões de uma próxima catástrofe humanitária e de uma eventual fragmentação do país. Fico por isso boquiaberto com o total autismo que, tanto as autoridades como a população portuguesa, têm revelado. Estando a história de Portugal, em particular nos séculos XVI e XVII, ideologicamente tão entretecida com a da Etiópia, este autismo, este alheamento, não é apenas desumanizador em relação ao presente sofrimento de milhões de pessoas. É sinal de uma alienação colectiva que vem comprovar a acuidade da auto-crítica da acima-citada anedota sobre a missão humanitária portuguesa no campo de refugiados etíopes. Fico sem saber o que é pior: se contar anedotas estúpidas sobre gente que morre à fome, se nem sequer dedicar um segundo de atenção para as criar e contar.
 
 O Público, 18/08/2021
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