O casario comercial dos Brejos, da Quinta do Conde e de Fernão Ferro estão bem representados no livro, embora não cheguem a ser tão exuberantes como certas bordas de estrada minhotas ou durienses.
São conhecidas as razões deste surreal estado de coisas. Após a revolução de 1974, o sistema jurídico e administrativo português alterou-se profundamente, replicando as estruturas do Estado central a nível autárquico e criando um sistema de dois poderes de governação que as mais das vezes competem em vez de cooperar. Um cínico diria que esta bem intencionada duplicação de poderes, além de fornecer instrumentos de representatividade a nível local, ofereceu uma oportunidade dourada para criar uma hidra de clientelismo político-partidário e fortalecer, sobretudo através das derramas, redes de influência entre autarcas e empresários – em particular os da construção civil.
O certo é que o licenciamento imobiliário cedo se tornou a principal fonte de financiamento municipal e uma espiral de construção desenfreada se verteu sobre todo o país, sem controlo, regras ou dever de obediência a (já de si lacunares) planos de ordenamento do território.
O resultado, sabemos, está à vista: basta olhar em volta para a notável criatividade arquitectónica e variedade decorativa do casario nacional – em si, interessante contraponto do urbanismo britânico, marcado pela estrita e, admitamos, aborrecida homogeneidade construtiva e ornamental.
O que me parece mais interessante retirar da lição das nossas “ruas da estrada” são as semelhanças fundacionais com a situação sanitária presente do país, em plena e desastrosa pandemia viral. O desordenamento territorial, e o complementar desordenamento do sistema de mobilidade, são evidência de uma curiosa aversão ao planeamento e à gestão metódica de recursos. Prever e prevenir são verbos tratados com púdico desprezo, como se significassem o mesmo que “agoirar”. Organizar é um verbo do qual a parte de “racionalizar criticamente” é convenientemente expurgada. Pelos interstícios desta mentalidade e deste permissivismo colectivos, onde os pequenos interesses individuais criam pactos de conveniência com pequenos e grandes interesses corporativos, escorrem rios de laxismo, fatalismo e oportunismo.
Tal como o momento e modo da sua chegada foi imprevisível, também os efeitos da pandemia são difíceis de descortinar – seja em termos sociais, culturais, económicos ou políticos. Olhando para trás, para os efeitos da gripe espanhola, vimos surgir em diversos países europeus regimes autoritários que a crise financeira de 1929 ajudou a empurrar para o totalitarismo e para os horrores da 2ª Guerra Mundial. Seria hoje bom começarmos a olhar para a frente de forma crítica, aberta e abrangente. E começar a planear, a prever e a prevenir. Sabendo também que a história das epidemias esteve sempre ligada a fugas populacionais dos insalubres centros urbanos para as periferias mais arejadas, e que a actual revolução do teletrabalho pode vir a suscitar uma alteração profunda nos padrões de mobilidade centro-periferia, seria racional criar meios de planificar o futuro de Azeitão sem as fragilidades que o desordenamento passado produziu no seu presente. Mas, para que tal milagre organizacional possa acontecer será talvez melhor chamar cá uma meia dúzia de peritos alemães da Budeswehr (exército alemão), para prevenir a construção de novos dormitórios nas margens da vila.
Jornal de Azeitão, Fevereiro 2021