MANUEL JOÃO RAMOS
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MARODERS e Pelourinhos

6/10/2022

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​Em 26 de Outubro de 2019, durante uma mediática visita à frente de batalha no Donbass, o recentemente eleito presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, envolveu-se numa dura troca de palavras com Denys Yantar, um veterano do Batalhão Azov, na vila de Zolote, no Oblast de Luhansk. O Batalhão, que nessa altura estava em vias de ser incorporado na estrutura regular de defesa territorial, lançou a campanha pública “Não à capitulação”, com o declarado objectivo de sabotar as incipientes iniciativas de pacificação entre o governo ucraniano e os revoltosos de Donetsk e Luhansk.
 
O momento em que Zelensky, surgindo pela primeira vez perante as câmaras em uniforme militar, implorava a Yantar que depusesse as armas foi mostrado na televisão nacional ucraniana, e causou uma tempestade de comentários e ameaças nas redes sociais do país. Yantar tinha previamente insinuado perante Zelensky que uma rebelião estava a ser preparada caso ele não desistisse de buscar soluções negociadas para o fim dos combates no Donbass, a promessa eleitoral que lhe tinha garantido a eleição, meses antes. Este episódio enterrou simbolicamente os chamados Acordos de Minsk, e esteve na origem de uma viragem de 180 graus na postura política de Zelensky. Mais tarde, o batalhão Azov acabou por se retirar de Zolote e concentrar-se em Mariupol, mas, como os então revoltados os meios de comunicação ocidentais não deixaram de notar, a guerra no Donbass intensificou-se dramaticamente.
 
Os discursos dos nacionalistas contra o jovem presidente tornaram-se cada vez mais inflamatórios. No seu canal Youtube, Andriy Biletsky, o líder do Batalhão Azov e do seu ramo político, o Corpo Nacional, jurou levar para Zolote milhares de militantes caso o presidente tentasse recuar a linha da frente, como previsto. Sofia Fedyna, deputada do Partido Solidariedade Europeia, ameaçou o presidente de morte. Poder-se-ia dizer que o estado de graça de Zelensky tinha terminado, mas na verdade ele nunca tinha chegado a existir. Em 27 de Maio de 2019, apenas uma semana após a investidura de Zelensky na Rada, Dmytro Yarosh, fundador do Sector Direito e comandante do Exército Voluntário Ucraniano, em entrevista ao Obozrevaltel, reafirmou a tese do anterior presidente, Petro Porochenko, de que os Acordos de Minsk não eram para ser cumpridos mas para ganhar tempo e preparar a ofensiva final contra o Donbass e a Crimeia e, que se o presidente não concordasse com este plano e “traísse a Ucrânia”, não seria demitido mas morto: “ele perderá a vida. Será atado contra uma árvore em Khreschatyk (a principal avenida de Kiev)”.

A riqueza de sentido desta expressão pode facilmente passar despercebida a quem não esteja familiarizado com as especificidades da tradição de punição extra-judicial – a chamada justiça popular – na Ucrânia, e com a sua progressiva politização nos últimos anos. É notável, desde o início da operação de cobertura mediática internacional da guerra da Ucrânia, como os correspondentes das inúmeras televisões e jornais ocidentais nas cidades ucranianas têm passado em silêncio a muito visível forma de punição pública dos chamados maroders (“pilhadores”, “ladrões”). A menos que um jornalista nunca saia do seu hotel, dificilmente deixará de se confrontar com exemplos desta prática, em que pessoas são atadas a árvores e postes com fita cola ou, mais recentemente com película aderente, as calças ou saias baixadas, as nádegas fustigadas com chibatas ou varas, e a cara pintada com tinta verde indelével. Habitualmente, este castigo público, aplicável tanto a homens como a mulheres, a idosos e a adolescentes, era sobretudo direccionado a ladrões que se aproveitavam da ausência de policiamento para pilhar comida ou pequenos objectos de consumo. A partir do momento em que o uso da língua russa foi proibido no país, e as tensões contra os habitantes do Donbass aumentaram de intensidade, esta forma de punição pública começou a ser dirigida contra quem fosse suspeito de ser russófilo, ou simplesmente quem fosse ouvido a, por exemplo, falar ao telemóvel em russo. Se originalmente a punição era praticada de forma espontânea por populares para castigar marginais, a partir de 2014 as milícias nacionalistas adoptaram esta forma de punição como meio de perseguição política. A violência dos actos aumentou, e o sadismo foi como que normalizado. Não é, portanto, difícil de entender o sentido das palavras ameaçadoras do Comandante Yarosh contra Zelensky: tendo este sido eleito em parte graças ao voto  das populações russófonas da Ucrânia, e sendo ele próprio russófono (como admitiu, apenas aprendeu a falar ucraniano dois anos antes da sua candidatura à presidência do país), ameaçar atá-lo a uma árvore na avenida principal de Kiev foi uma forma colorida de o identificar como potencial traidor ao ideal nacionalista ucraniano.
 
O simbolismo do atar alguém a uma árvore ou poste como punição de um acto de traição política tem uma imensa profundidade histórica nos imaginários ucraniamo e russo. Foi desta forma que em 945 D.C., de acordo com a Crónica Primária do Rus, o Príncipe Igor de Kiev, marido de Olga, a santa padroeira da Ucrânia, foi punido e morto pelos eslavos drevilianos, em revolta contra a colecta de impostos por parte do Rus de Kiev. Este episódio – assim como a chamada vingança de Olga –, sendo praticamente desconhecido no Ocidente, é, no entanto, informação tão normativa na Ucrânia quanto a putativa bofetada de Afonso Henriques à sua mãe. A corrente punição pública dos maroders na Ucrânia tem assim um efeito de actualização ritual de uma história milenar complexa e fortemente contestada por russos e ucranianos, e que se reporta à reclamação nacionalista das origens do Rus, e à miscigenação entre eslavos, vikings e tártaros.
 
Uma boa parte das cidades e vilas portuguesas ostenta, orgulhosamente preservados, postes de punição pública medieval: os pelourinhos. Não nos ocorre presentemente recorrer a eles para castigar delinquentes, mas, à força de nos convencerem que a solidariedade com a Ucrânia é um passo essencial na defesa dos valores tradicionais europeus, não é difícil imaginar que os pelourinhos venham a ser reactivados. Um dia destes.
 
O Público, 27 Agosto 2022
L'Accent, 28 Agosto 2022
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O Princípio de Eleutério

11/11/2021

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O Menino Eleutério é, nas “habilitações necessárias para ser ministro”, uma d’As Farpas de Eça Queiroz e Ramalho Ortigão, o jovem promissor que, ao falhar sucessivamente na escola primária, no liceu, na universidade, consegue atrair a atenção do “poder moderador”, vendo a sua incompetência premiada com vários cargos governamentais até finalmente chegar a primeiro-ministro. Ao contrário do “princípio de Peter”, segundo o qual uma pessoa competente no seu trabalho é elevada a posições para as quais é incompetente, o muito mais radical “princípio de Eleutério” enunciado por Eça de Queirós estipula que a incompetência demonstrada por uma pessoa  no seu trabalho é critério essencial para a sua promoção.

Os analistas políticos mais cínicos têm avançado a tese de que o ainda primeiro-ministro António Costa, ao despoletar a crise do chumbo do orçamento e a consequente dissolução do parlamento, tinha na mira pensar primeiro em si, depois no PS, e finalmente no país, e que há muito se prepara para dar o salto para novas paisagens. Com o balanço de seis anos de convívio com a política internacional, especula-se até quão longe conseguirá pular e onde irá aterrar. Parlamento europeu, Comissão Europeia, Nações Unidas? Sabemos apenas que esta modalidade de trampolim está há muito instituída nas olimpíadas da política nacional. Os casos mais mediáticos do “princípio de Eleutério” são os de António Guterres e de Durão Barroso. Tendo falhado na sua função governativa, durante a qual acumularam contactos telefónicos de Peters externos, catapultaram-se para lugares de grande responsabilidade na política internacional. O país ficou não apenas aliviado, mas reconhecido por este exercício de ginástica individual, por estes golos dignos de botas de ouro contribuírem para a ilusão de que Portugal é mais que um irrelevante e marginal pedaço de terra infértil encravado entre a Europa e o mar salgado.

Do que faz Durão Barroso hoje em dia, à sombra de Bill Gates, não temos muita informação. Já Guterres não passa um dia sem estar nas bocas do mundo. No passado dia 5 de Novembro, ao fim de um ano de desentendimentos internos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou finalmente uma tíbia declaração conjunta apelando ao cessar-fogo na Etiópia. Esta declaração surge na sequência da publicação de um relatório conjunto do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e da Comissão Etíope dos Direitos Humanos sobre múltiplos massacres, execuções sumárias, violações em série e intenções de extermínio étnico, que evidenciam práticas constantes de atentado aos direitos humanos e configuram crimes contra a humanidade. O relatório foi parcialmente aceite pelo governo etíope, mas liminarmente recusado pelos rebeldes da região do Tigré, que alegam que a participação de um órgão dependente do governo na sua redacção lhe retira legitimidade e neutralidade. As Nações Unidas alegam que, sem a participação da comissão etíope, não teriam tido possibilidade de acesso à informação, mas passam sobre silêncio o facto de a investigação ter descartado totalmente o contributo do governo regional tigrino e cedido à pressão do governo federal etíope para estender aos rebeldes as acusações de crimes praticados essencialmente pelas tropas etíopes e eritreias, e retirar do texto quaisquer palavras que possam sugerir intenções genocidas.

Durante um ano, a mortífera e brutal guerra civil na Etiópia desenrolou-se longe dos olhares do mundo, conduzida por uma figura enigmática: Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro do governo federal, saudado internacionalmente como democrata reformador, nomeado prémio Nobel da paz em 2019, doutorado em resolução de conflitos, coronel do exército federal, ex-responsável pelos serviços de “inteligência” etíopes, muçulmano convertido ao evangelismo milenarista, ex-guerrilheiro de um grupo aliado dos tigrinos que tomaram o poder em 1991, após a deposição do regime militar comunista liderado por Mengistu Haile Maryam. Poucas pessoas para além do júri de doutoramento leram a sua tese, segundo a qual o “capital social” de uma população sai reforçado através da guerra contra o inimigo interno ou externo. E por isso ainda menos pessoas perceberam por que razão, no último ano, ele se tinha aliado com o vizinho inimigo, o regime eritreu, para eliminar os rebeldes tigrinos, segundo ele as “ervas daninhas”, o “cancro”, que invade a Etiópia e ameaça a sua destruição.

Muitas responsabilidades pela dramática situação e pela enorme crise humanitária na Etiópia têm sido assacadas aos diversos intervenientes internos. Mas as responsabilidades das Nações Unidas e, em última análise, as que cabem ao seu secretário-geral só pontualmente têm sido referidas publicamente. A relação das várias agências das Nações Unidas a operar no país com o governo federal tem sido, no mínimo, tumultuosa: em certos casos cúmplice, noutros irresponsável e autofágica, noutros ainda submissa aos interesses de certas grandes potências. A sua acção tem sido minada pelo governo etíope, posta em causa por desentendimentos entre quem opera no terreno e quem decide em Genebra e em Nova Iorque, paralisada por ausência de autoridade central e de financiamento local. Entre os vários escândalos reportados conta-se o da incapacidade de providenciar ajuda humanitária e alimentar a várias regiões afectadas pela guerra, a evidência de caos e desregulamento nas operações de logística e transporte, conflitos internos, desautorizações e suspeitas de inconfidencialidade que resultaram na expulsão de vários altos funcionários, etc. Num país tão habituado à presença de organizações internacionais, este caos não pode deixar de ter um responsável máximo: o secretário-geral das Nações Unidas, que, sempre vestido com o manto da moralidade missionária católica, não admite a sua pusilanimidade face a uma situação interna complexa que lhe é opaca, nem o facto de que a displicência com que se permitiu uma resposta falhada ter contribuído para o agravar do conflito e para colocar aquela organização sob a suspeita de estar a ser manipulada pelos interesses de certas potências ocidentais.
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Gostamos de acreditar que a incompetência de Eleutério se transforma magicamente em competência além-fronteiras. É um pouco como acreditar em unicórnios. Pena é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão não estejam hoje disponíveis para nos elucidar sobre as habilitações necessárias para roçar ombros com as elites internacionais – para ser secretário-geral, presidente de comissão, administrador de banco, director de fundação ou alto representante. Estou certo de que nos ajudariam a adivinhar em que prateleira estrangeira iremos em breve encontrar António Costa.
 
 O Público, 9 Novembro 2021
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Etiópia: uma nova página na guerra civil

6/9/2021

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Lamento vir perturbar-vos a rentrée, os dramas das lojas do cidadão, das lanchas da GNR encalhadas em Carcavelos, e dos cartões amarelos de Cristiano Ronaldo.

No passado dia um de Setembro, uma mudança de fase ocorreu na tremenda guerra civil que grassa na Etiópia. O presidente do estado regional Amhara declarou oficialmente o recrutamento dos jovens a partir dos 13 anos (sim, 13 anos – não é uma gralha do jornal), para lutar contra o exército da Frente de Libertação da região vizinha do Tigré, que lançou em Julho um movimento de cerco à região Amhara e um ataque na direcção da capital do país, Adis Abeba. Enquanto por aqui nos queixávamos do verão pouco cálido e do incómodo das máscaras faciais, um sem número de batalhas sangrentas dilacerava o norte da Etiópia. Esta ofensiva militar dos rebeldes tigrinos foi lançada após o humilhante desbaratamento do exército do governo federal às mãos dos rebeldes, em início de Junho, num súbito e devastador contra-ataque que interrompeu o curso de oito meses de massacres e violações em massa perpetrados pelos militares e milícias etíopes e eritreias sobre a população do Tigré.

Incapaz de suster o ataque tigrino, o governo federal apelou às regiões para que recrutassem centenas de milhares de jovens e os jogassem praticamente sem treino contra as balas inimigas nas várias frentes de batalha. O resultado tem sido um morticínio não reportado porque as cadeias de televisão internacionais se encontram impedidas de filmar o horror. Nenhum dos beligerantes pode hoje alegar inocência perante a evidência de massacres, violações, e assaltos à ajuda humanitária internacional. Enquanto os rebeldes avançam, o governo etíope lança-se na compra apressada de armamento e munições junto de velhos e novos parceiros. Na impossibilidade de fazer cumprir acordos de vendas de armas com os países ocidentais, apelou a russos, iranianos, azerbaijanos e sobretudo turcos, esperando que o uso de enxames de drones letais possa alterar o destino de uma guerra que parece não poder parar antes da derrota total do adversário.

Nem a União Africana nem o IGAD têm instrumentos diplomáticos para encontrar soluções mediadas para o conflito. E o Conselho de Segurança das Nações Unidas encontra-se de tal maneira dividido que nem um projecto de resolução chega a tomar forma. Os Estados Unidos, tradicional aliado da Etiópia, deixaram de ter capacidade de pressão desde que se posicionaram do lado egípcio no surdo conflito regional em torno da barragem etíope no Nilo Azul, presentemente em curso de enchimento. O colapso afegão teve como efeito imediato um pusilânime retraimento da administração Biden no que toca ao Corno de África, no que é acompanhado – obedientemente - pela União Europeia. Até onde a Turquia puxará a corda, enviando operadores de drones para a Etiópia, é assunto que as próximas semanas poderão vir a esclarecer. Para já, esta influente presença no Corno de África é motivo de regozijo para Erdogan, averbando vitórias importantes sobre egípcios e árabes.

A guerra civil foi internacionalizada no momento em que o exército eritreu entrou secretamente em solo etíope, a 3 de Novembro último. Neste momento, ameaça a fragilíssima estabilidade do Sudão, da Somália e do Djibuti. A intervenção indirecta de turcos, azerbaijanos e russos aumenta exponencialmente a espiral de volubilidade geostratégica em torno da margem ocidental do principal canal de circulação do comércio internacional que é o Mar Vermelho. Os desafios são importantes e os europeus – e por maioria de razão, os portugueses – enfiam inconvenientemente a cabeça da areia.

A evidência dos massacres e das violações em massa no norte da Etiópia está documentada. As suspeitas de acção genocidária por parte dos exércitos e milícias etíopes e eritreias amontoam-se – a crueza das directivas dos comandos é arrepiante: exterminar quem urina contra a parede (matar os homens) e eliminar a semente nas mulheres (através da violação). Os crimes de uns são justificados pelos crimes anteriores dos outros, numa voragem suicidária. Mas a um de Setembro, uma nova página foi virada: se antes, quem queria saber sabia que todas as forças militares usam jovens e crianças na guerra, agora este nefando crime foi oficialmente admitido. Um leitor português não fará nada porque não pode. Mas um euro-deputado ou um governante podem fazer a diferença. Infelizmente, em Portugal a ideia de que um cidadão eleitor pode pressionar o seu representante eleito na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu não chega sequer a ser uma ficção.
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Se eu venho incomodar-vos a rentrée, é talvez por egoísmo. Silenciando-me, sinto-me cúmplice de um imenso crime. Falando dele, imagino pelo menos que estou a lançar um pouco desta pesada responsabilidade sobre os ombros do eventual leitor.
 
 O Público, 4/09/2021
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O assunto lamentável

6/9/2021

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Não! Não me é possível conceder ao primeiro-ministro António Costa o benefício da dúvida nem a presunção de desconhecimento. No final do último congresso do partido socialista, em entrevista ao canal televisivo SIC, António Costa referiu-se ao atropelamento mortal causado pela viatura oficial em que viajava o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, corrido na tarde de 18 de Junho passado na A6. Afirmou então que:

“O único assunto lamentável aqui é a vida humana que se perdeu. Se houvesse respeito, aguardava-se que as autoridades apurassem o que aconteceu e não se aproveitasse uma perda humana para fazer um ataque político a uma pessoa que era um passageiro num automóvel”. E rematou , dizendo que: “É das coisas mais revoltantes e desprezíveis que tenho assistido”.

Esta foi a primeira vez que, após dois meses a evadir perguntas dos jornalistas, António Costa se referiu ao trágico atropelamento na A6. E fê-lo da pior maneira possível: tratando uma morte como se fosse equivalente à perda de um molho de chaves e isentando Eduardo Cabrita da exigível assunção de responsabilidade.

Vejamos, por partes: será que “o único assunto lamentável aqui” é mesmo a vida humana que se perdeu? Tenho para mim, e presumo que tenha também a viúva de Paulo Santos e os seus filhos, que a vida humana que se perdeu não é um assunto lamentável, mas um assunto trágico. O adjectivo “lamentável” não serve para qualificar a realidade da morte do trabalhador, mas sim do que aconteceu a seguir: o silêncio prolongado de Eduardo Cabrita, os ataques políticos da oposição, o silêncio ainda mais prolongado do primeiro-ministro. Lamentável é António Costa não ter publicamente confrontado o facto de o ministro responsável pela gestão da segurança rodoviária no país ter, indirectamente, causado uma morte na estrada, e igualmente lamentável é o facto de ele próprio, três semanas depois do atropelamento, ter sido detectado a circular, na sua viatura oficial, a 200 km/h na A1. Lamentável é que o caso esteja em segredo de justiça e que o advogado da viúva da vítima não tenha acesso ao processo de investigação.

“Se houvesse respeito”, lamenta o primeiro-ministro, não se fazia um “ataque político”. Num mundo ideal (ou idealizado por filósofos gregos antigos), talvez fosse possível que a política se entrosasse com a ética, e o respeito imperasse. Mas o respeito não é uma concessão de partida, é efeito de um atributo. O respeito ganha-se como resultado, não se exige como condição. Ora, é do conhecimento público que a prática da circulação das viaturas oficiais nas ruas e estradas do país assenta no recurso discricionário e sistemático da chamada “marcha urgente de interesse público”. São inúmeros os “casos e casinhos” em que detentores de cargos públicos se envolvem, directa ou indirectamente, em práticas rodoviárias que, para a generalidade da população, são matéria de sanção criminal. É, no entanto, justo lamentar que opositores políticos condenem práticas rodoviárias sem primeiro fazerem o seu próprio mea culpa. Em particular, é para mim embaraçante ouvir Rui Rio praticar um “ataque político” a Eduardo Cabrita sem antes se retratar dos seus próprios actos rodoviários e das suas palavras publicadas (“a menos de 120 km/h adormeço ao volante”, “riscos contínuos ou velocidade máxima na auto-estrada são obrigações que já risquei da minha lista”, “[atropelei três peões na A1] mas sem consequências de maior”).

“Uma pessoa que era um passageiro num automóvel”: na tarde de 18 de Junho, Eduardo Cabrita não ia, de facto, a conduzir o BMW. Mas, à luz da lei, não era um simples passageiro. E António Costa sabe-o, por ser jurista, ex-deputado, ex-ministro da justiça e ex-ministro da administração interna, e por ele próprio ter estado envolvido, em 2009, num caso de excesso de velocidade na A2 tendo então alegado que a sua viatura circulava em marcha urgente de interesse público quando se dirigia ao estádio do Algarve como presidente da Câmara de Lisboa, para assistir a um jogo que só se iniciaria quatro horas depois. Para todos os efeitos judiciais, Eduardo Cabrita era, naquela situação e naquele momento, mandante do motorista que atropelou o trabalhador. Tal não lhe confere automaticamente, como é natural, o estatuto de responsável pelo atropelamento porque essa responsabilidade deve primeiro ser investigada e julgada. Essa é matéria para o departamento de investigação rodoviária da GNR, que – lamentavelmente – se encontra sob a sua tutela directa; e essa é matéria para o ministério público e para os juízes. Mas deve ficar claro que Eduardo Cabrita, naquela situação, estava longe de ser apenas “uma pessoa que era um passageiro num automóvel”. O motorista estava a agir a mando do ministro e este, por acção ou omissão, foi o responsável pelo seu comportamento rodoviário.
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Lamentável é fingir que assim não foi, porque desrespeita o facto da morte de Paulo Santos. E lamentável é que o primeiro-ministro desresponsabilize o seu ministro para dessa forma não ter de assumir as suas próprias responsabilidades.
 
 O Público, 2/09/2021

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O crime da condução anti-social

24/7/2021

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Assim, de repente, lembro-me de Paulo Portas a esmagar um Mercedes contra o carro de uma copy-desk do Expresso parada num semáforo da Av. Fontes Pereira de Melo; de Garcia Pereira a vangloriar-se por conduzir o carro como um fórmula um em campanha eleitoral; de Rui Rio a experimentar um BMW na A1 a 220km/h e a admitir que a menos de 120km/h adormecia ao volante; de Jorge Sampaio a dizer nunca circular a mais de 120km/h em autoestrada mas os seguranças irem a 140km/h  para o poder acompanhar e os jornalistas terem de acelerar até aos 160k/h para não o perderem de vista; de Mário Soares a ser apanhado a 200km/h, a insultar os agentes da GNR e a dizer que o Estado é que ia pagar a multa; de Marcos Perestrello a desfazer um Mercedes oficial quando fazia dele uso pessoal. E depois há episódios como do motorista de Manuel Pinho que alegou ir em marcha urgente de interesse público quando apanhado a 212km/h na A1 (sem que o ministro tirasse os olhos do jornal, dentro da viatura); o episódio em que o motorista de António Costa alegou marcha urgente ao ser apanhado a 160km/h na A2, quando conduzia o então presidente da CML para um jogo de futebol no Estádio do Algarve; ou aquele em que o motorista de Mário Mendes, ex-secretário-geral de segurança interna, alegou marcha urgente após chocar com o carro do presidente da AR, ao descer a Av. Liberdade a 120km/h em hora de ponta sem parar em nenhum semáforo. E há o caso recente em que o motorista de Eduardo Cabrita, ainda Ministro da Administração Interna (MAI), atropelou um cidadão na A6 em zona de obra assinalada, circulando a uma velocidade ainda não determinada, em circunstâncias de marcha, urgente ou não, ainda não conhecidas publicamente.
Após uma sucessão de queixas da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (ACA-M), o então Provedor de Justiça Alfredo de Sousa emitiu em 2011 a Recomendação 4-A/2011, de imediato acatada, por despacho, pelo então MAI, Rui Pereira. A Recomendação versa sobre as condições em que os veículos oficiais utilizam a “marcha de urgência de interesse público e a forma como as autoridades policiais devem proceder à fiscalização da mesma”. O ponto 3 esclarece que “nem todo o serviço público justifica a inobservância das regras e dos sinais de trânsito”. O ponto 6 estipula que “cabe em exclusivo à Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) a apreciação dos casos de serviço urgente de interesse público, a fazer no âmbito da instrução dos processos de contra-ordenação. (...) Às forças policiais compete levantar os autos de contra-ordenação rodoviária sempre que presenciem situações de inobservância das regras e os sinais de trânsito”. A recomendação que como disse foi acatada pelo MAI, indica que a GNR, a PSP e a ANSR devem organizar e manter actualizados registos de entidades do Estado cujos veículos e condutores foram fiscalizados e invocaram ou suscitaram o serviço urgente de interesse público, e devem divulgar anualmente tais registos.
A ACA-M pugna há mais de 20 anos pela pacificação das relações sociais em meio rodoviário e considera que os detentores de cargos públicos têm um dever especial de cuidado e se encontram obrigados a oferecer-se publicamente como exemplo irrepreensível de boa conduta rodoviária, enquanto mandantes dos motoristas que lhes estão assignados nas suas deslocações oficiais. É sabido que os motoristas de viaturas do Estado se encontram numa situação de particular fragilidade contratual, sentindo-se compelidos a obedecer a ordens - explícitas ou implícitas - dos seus mandantes, mesmo quando estas contravêm os deveres acima referidos. Na nossa perspectiva, qualquer violação por parte de um detentor de cargo público a esse dever de suma isenção em meio rodoviário, seja por acção ou por omissão, é atentatória do contrato social estabelecido entre o Estado e os cidadãos, e reveste a forma de comportamento anti-social especialmente gravoso. Por outro lado, a percepção pública dos comportamentos rodoviários de detentores de cargos públicos, enquanto mandantes, é a de que, com demasiada frequência, não reflectem essa obrigação de conduta rodoviária exemplar. Em diversas ocasiões, no passado recente, detentores de cargos públicos ou os seus motoristas invocaram circular em “marcha urgente”, quando fiscalizados e autuados pelas forças de segurança por se encontrarem em inobservância das regras e sinais de trânsito.
Passados dez anos sobre a Recomendação do PJ e do Despacho do MAI, continuamos sem ter qualquer informação sobre o que se passa no universo cinzento das relações entre governantes, motoristas e entidades fiscalizadoras. A ANSR nunca publicou a lista anual das infrações dos motoristas de governantes ou das alegações de “marcha urgente”, as forças policiais nunca divulgaram os autos de infração, o MAI nunca tomou medidas contra a cultura de impunidade rodoviária que se vive a bordo das viaturas oficiais, e sobretudo nenhum governante surgiu perante as câmaras de televisão para fazer o necessário e urgente mea culpa prévio ao combate à corrupção colectiva que faz com que governados aceitem comportamentos rodoviários anti-sociais da parte dos governantes para assim poder justificar, perante a sua consciência, os seus próprios actos anti-sociais na estrada.
É por isso urgente saber a que velocidade circulava o BMW atribuído a Eduardo Cabrita na A6, a 18 de Junho, e se o seu motorista alegou ir em “marcha urgente”. E é ainda mais urgente, porque se trata de comportamentos perigosos posteriores àquele mediático atropelamento mortal, saber a que velocidade circulavam nos dias 5 e 12 de Julho as viaturas:
- Do primeiro-ministro António Costa na A1
- Do ministro do ambiente na A2
- De pelo menos duas secretárias de estado na A1
É igualmente imprescindível saber se os seus motoristas irão alegar ter conduzido em “marcha urgente”. Um mea culpa colectivo vinha mesmo a calhar.
 
O Público, 17/07/2021
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O estado de Pastel

25/5/2021

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Em 1947, a Assembleia das Nações Unidas, inspirada pela máxima de que soluções simples são as melhores para resolver problemas complexos, aprovou a divisão do território da Palestina então sob mandato britânico em duas entidades nacionais: Palestina e Israel. O pós-guerra foi prolífico em soluções simples: Coreia do Norte e Coreia do Sul, China e Taiwan, Índia e Paquistão, Iémen do Norte e Iémen do Sul, Somália e Somalilândia, Etiópia e Eritreia, Chipre turco e Chipre grego... ah, e Alemanha de Leste e Alemanha Ocidental.
 
O que se passou a seguir tem sido fonte de maravilha para os amantes de enigmas insolúveis: os recém-criados estados árabes não aceitaram a solução, seguiu-se uma guerra, a expulsão de quase um milhão de palestinianos do território israelita, e a progressiva anexação de terras em volta, até à caricata situação actual em que, na sequência dos acordos de Oslo, a então reafirmada “solução dos dois estados” é impossível de concretizar dado que não passa pela cabeça de nenhum palestiniano viver numa fatia de queijo suíço.
 
Um dos estados juridicamente mais xenófobos do planeta, que assenta o princípio da cidadania numa interpretação híper-restritiva do ius sanguinis e na exclusividade de pertença religiosa, tem ao longo das décadas aperfeiçoado uma versão nativa do sistema sul-africano do apartheid, tanto no interior do país como nos territórios palestinianos ocupados, de forma a prevenir que a população não-judia possa algum dia ser numericamente superior à judia – ou seja, o que podemos chamar de democracia hútu.
 
Herdeiro da lógica simplista da guerra fria, o novo presidente norte-americano reafirmou agora, no quente do mais recente cessar-fogo entre palestinianos e israelitas, a validade da “solução dos dois estados” como a única via possível para a paz na região. Contam-se pelos dedos de uma mão os políticos locais (todos do cada vez mais diminuto campo “laico”) que acreditam na viabilidade da “solução”, hoje em dia. O extremismo fundamentalista judaico alimenta-se do extremismo fundamentalista islâmico e vice-versa. Uns e outros são a inesperada (e complicada) consequência da decisão “simples” de dividir o território em dois, um para judeus e outro para muçulmanos. Nesta espiral descendente e radicalizante, a eternização do conflito violento pontuado por momentos de cessar-fogo parece a única solução possível. Não será assim de admirar que a “única democracia do Médio Oriente” passe rapidamente a oligarquia ou a autocracia quando finalmente a população não-judaica (muçulmana e cristã) no interior de Israel se tornar maioritária.
 
Ora, se os radicais judaicos não admitem a existência de uma Palestina independente, e se os radicais islâmicos não admitem a existência de um estado judaico, e nenhum aceita a viabilidade da “solução dos dois estados”, a melhor alternativa a este contínuo mais-do-mesmo com sete décadas é procurar soluções criativas, como propõe Paul Watzlawick: há que reenquadrar o problema de forma que as velhas soluções que não solucionam nada caduquem. Tal como Arquímedes teve o seu eureka no banho, eu tive o meu numa pastelaria, esta manhã. Se o problema é mesmo que israelitas não querem uma Palestina e os palestinianos não querem um Israel, e nenhum quer a “solução simples” de 1948, então basta criar um novo país com um novo nome onde uns e outros vivam sem chatear o resto do planeta. Se os sul-africanos conseguiram, porque não voltar a tentar? Até tenho um nome para o país: comecei por conceber Palestiriel, mas achei mais graça a Pastel – afinal, já há países que se chamam Camarões e Perus, e há até um que resolveu o conflito entre galegos e portenhos inventando a palavra Portugal.
 
​Publicado n'O Público, 25 Maio 2021.
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O estatuário luso

27/8/2020

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Dezembro de 1997: Lisboa preparava-se para celebrar a sua reentrada no circuito da globalização; homens e máquinas afadigavam-se nas obras da futura Expo98. Simultaneam­ente, do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, desenrolava-se o episódio final daquela que poderia ser considerada a mãe de todos os derrubes de estátuas. Após um ano de manifestações de protesto, as autoridades do Bairro de Queens decidiram proibir finalmente a ereção de uma portentosa estátua de 15 metros na frente ribeirinha que havia sido criada pela escultora Audrey Flack, graças a uma subscrição pública lançada pela comunidade luso-americana. A estátua de bronze pretendia celebrar a fundadora simbólica do bairro, a rainha Catarina de Bragança que casou com Charles II de Inglaterra, levando no seu enxoval chá, marmelada, garfos, Bombaím e Tanger. Foi o seu cunhado, o Duque de York e futuro sucessor da coroa, com o título James II, que, ao comprar Nova Amsterdão aos holandeses da Geoctrooieerde Westindische Compagnie (GVC), rebaptizou a cidade como Nova Iorque e deu a uma parcela do novo domínio inglês o nome de Queens, em homenagem à consorte lusa, e católica, do irmão.
A justificação explícita para “derrubar” a estátua antes mesmo de ela ter sido implantada foi que Catarina havia sido membro do conselho de administração da Royal African Company, durante séculos protagonista do tráfico de escravos de África para as colónias britânicas no continente americano. Foi uma pequena primeira vitória para os movimentos iconoclásticos anti-racistas norte-americanos, que curiosamente coincidiu com a nomeação de Trump como the Prince of Queens, pela presidente do bairro. De pouco valeram os argumentos da escultora, que defendia que a figura era evidentemente multirracial, dado que Catarina, sendo portuguesa, deveria ter a pele escura; e que os seus caracóis seiscentistas até evocavam rastas africanas. A estátua veio a ser destruída anos mais tarde numa fundição de Boston. Sem que se saiba bem porquê, uma versão miniaturizada da estátua despontou timidamente em data incerta e sem cerimonial público num recanto arredio do Parque das Nações, de onde ainda hoje mira algo atónica o Mar da Palha e a Ponte Vasco da Gama.
A intensa polémica nova-iorquina em torno da estátua de Catarina de Bragança não suscitou à data notícia de relevo em Portugal. Não pôde, portanto, ter motivado uma desejável discussão pública sobre a parte cruel da herança de Portugal no mundo: o tráfico e escravização de milhões de africanos para alimentar as manufacturas de açúcar, a mineração de ouro e produção de café – o casamento inglês de Catarina selou simbolicamente a passagem de testemunho dessa herança, e deu início à hegemonia britânica nesse lucrativo empreendimento intercontinental. Qualquer discurso crítico que menorizasse os feitos lusos em época de comemoração dos Descobrimentos teria de ser colectivamente silenciado e (auto-)censurado.
Um paradoxo salta à vista: no momento em que o país procurava projectar-se no caleidoscópio mundial, fazia-o concentrando-se sobretudo no auto-elogio histórico e alheava-se dos movimentos sociais contemporâneos que dilaceravam, e continuam a dilacerar, os países receptores do tráfico intercontinental de escravos. Exaltavam-se os mares fechando convenientemente os olhos ao sangue africano que por eles correu.
Não há que julgar o à-vontade com que por cá se apagam memórias e silenciam controvérsias. É assim que funcionamos e há razões para desconfiar da eficácia dos decretos que se propõem dissolver hábitos atávicos seculares. Mas, para fomentar uma relação salutar com a história e a política há que estar disponível para interrogar e para tentar compreender as raízes do nosso oblívio militante e do nosso pânico face à eventualidade de crítica.
A total ausência de debate crítico em Portugal sobre o estranho episódio da proibição da estátua de Catarina em Queens evidencia o localismo e a pobreza discursiva das disputas identitárias a que temos assistido recentemente. E, no entanto, é precisamente porque ela não suscita posicionamentos acalorados em Portugal que merece ser trazida para o centro da discussão, na medida em que redefine o contexto dos argumentos e confere profundidade temática ao problema que é reorganizar memórias históricas e procurar compreender e aproximar pontos de vista divergentes. Penso que a ninguém ocorre espichar, derrubar ou defender a Catarina miniaturizada do Parque das Nações. Pois que a atenção se concentre, não necessariamente na estátua em si, mas nas razões históricas e culturais que nos levam a ignorá-la completamente.
A censura do silêncio perante a crítica construtiva pode ser devastadora. É fácil citar vários episódios públicos que contam sempre a mesma história, com o mesmo desenlace: ao contrário da provocação gratuita que suscita emoções fátuas, a expressão de um pensamento crítico é habitualmente recebida com desconfiança e respondida com silêncio. O silenciamento de vozes divergentes, de visões alternativas e de posições fora da norma é um hábito arreigado em Portugal, ao qual quem se encontra em situação de poder decidir recorre sem nunca pestanejar.
Para justificar tal recusa ou incapacidade de debate crítico, cita-se com demasiada frequência a herança do período salazarista, como se ele tivesse surgido ex-nihilo e tivesse havido um antes onde ele teria desabrochado sem censura ou continência. Um cético poderia, no entanto, lembrar que as guerras liberais oitocentistas e o vórtice autofágico da Primeira República pouco mais foram que momentos caceteiros, que em nada lustraram pergaminhos de intelectualidade. Por trás deles estão três séculos de inquisição que causaram no país um trauma indelével e moldaram o modo como nos relacionamos ainda hoje. O Santo Ofício promoveu e generalizou a denúncia sistemática, a opressão e o silenciamento, a discricionariedade sem limite. Induziu um hábito colectivo arreigado: o da censura pelo silêncio e o medo da interrogação. Parafraseando Pe. António Vieira, diria que a Inquisição foi o nosso estatuário:

“Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
​

Faz-se hoje moda provocar soezmente e bater no peito pela defesa de identidades reinventadas. Mas este modo de falar e de fazer não conta como apelo ao diálogo, aniquila-o. Mais são que derrubar ou defender estátuas é não desistir de esculpir consciências. Porque, ao fim e ao cabo, os provocadores cortejos de extremistas mascarados de branco (a esconder a tez morena) frente a organizações anti-racistas, assim como os apelos ao derrube de uma (hedionda) estátua justificados por espúrias acusações de esclavagismo ao Pe. António Vieira são, antes de mais, embaraçantes manifestações de ignorância do que um bom debate pode ser e do que uma forte crítica pode valer.

Publicado n'O Público, 20 Agosto 2020.
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Covid19 : A missed opportunity?

12/4/2020

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Hôpital de campagne à Camp Fuston, Kansas, pendant l'épidémie de grippe espagnole © Inconu
Most countries’ authorities are keeping silent in the face of the evidence being presented by a growing number of pathologists and epidemiologists linking air pollution with the immunodeficiency conditions of hospital patients with Covid19. To better understand this deafening silence, it is perhaps useful to go back in time and recall the great “forgotten pandemic” of the Spanish flu.
I must admit that I frequently felt puzzled by the way governments, so many years on, still highlight the celebrations of the Armistice of November 11, and by the omnipresence of national and local monuments evoking the soldiers killed during the First World War. In fact, it is only now that I begin to better understand the reasons behind this persistent obsession on the part of many national authorities in putting forth these collective rituals aimed at celebrating the memory of the victims of the Great War.
The construction of historical memories is not limited to the desire of highlighting critical events and give them a narrative structure; it is also done by selecting and by deleting memories which, for one reason or another, are perceived to be in conflict with that desire. The armistice itself was, at the time – unlike what happened on May 8, 1945 – a rather subdued celebration. There was a reason for this: the moment coincided with the tragic second wave of the influenza pandemic. The historiography of this pandemic is quite different from that of the two great wars in that it was not until the second half of the 1970s that it really began to attract the attention of historians. And it is only now, more than one hundred years later, that the general public is starting to understand how tragic it was. It was so obliterated from official records that it is now called the “forgotten pandemic”.
The 1917-1919 influenza pandemic is known as the “Spanish flu” not because it originated in Spain (which remained neutral during WWI) but because the Spanish press was not subjected to government censorship, unlike what happened in combatant countries. Therefore, the deadly outbreak in Spain became a recurring subject in the world press. It is now known that it originated in the US and was spread by American soldiers fighting in the European battlefields.

The governments of the combatant nations were by 1918 immensely discredited by the unnecessary horror of trench warfare. Fearing social upheaval and possible contagion of the Russian popular revolt against the Tsarist regime, they imposed widespread censorship on news relating to the flu pandemic that was by then rampant among the soldiers. The epidemic character of the pulmonary influenza was concealed and therefore preventive measures started to be implemented only when it was already completely out of control and spreading to the general population.
The flu pandemic claimed more victims than both world wars. It caused a drop in national GDPs equal to or greater than that of the First World War. The populations were so traumatized by the millions of deaths that it was partly responsible for the popular appeal of the various European authoritarian and dictatorial regimes which in the twenties and thirties advocated sanitary and hygienic ideologies that promised to build efficient state administrative systems in exchange for the loss of individual rights and freedoms.
The evocation of a memory is often done at the expense of deleting others. That is the reason why so many national authorities still vehemently celebrate Armistice Day: as a silent admission of guilt for their predecessors’ failure to manage the flu pandemic. When several government officials today speak of a “war against the coronavirus”, they are unconsciously re-constructing previous narratives, to make sense of what is, in fact, an absurdity: does the Coronavirus have a will and a conscience to understand that it is “an enemy” and that we are in a “state of war” against it? In insisting in this reductionist narrative, they (and we) are unfortunately obliterating other more meaningful possibilities of understanding the extraordinary events that we are experiencing globally.
We may, therefore, be facing a missed existential opportunity: that of considering the generalized pollution caused by the millions of tons of particulate matter that we humans produce daily as an “enemy that must be defeated”, “whatever the cost”.

TruePublica Editors Note – Air pollution in the UK is a major cause of diseases such as asthma, lung disease, stroke, and heart disease, and is estimated to cause forty thousand premature deaths each year, which is about 8.3% of deaths while costing the NHS around £40 billion each year. In 2017, research by the Lancet Countdown on Health and Climate Change and the Royal College of Physicians revealed that air pollution levels in 44 cities in the UK are above the recommended World Health Organization guidelines. The Royal College of Paediatricians, the Royal College of Physicians and Unicef have all made comment about unsafe air pollution and increased mortality associated with winter and influenza deaths. 

Published in TruePublica, 14 April 2020
Publié à MediaPart, 11 Avril 2020
Publicat a L'Accent, 11 Abril 2020
Publicado n'O Público, 10 Abril 2020

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The diesel pandemic

12/4/2020

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The Big Smoke: that was the name given (another was the ‘great smog’) to the episode of atmospheric temperature inversion (ATI) in London in the winter of 1952-53, which, associated with a viral outbreak, caused the death of 6,000 people and acute respiratory disease in another 100,000. (1)
ATI is when the temperature at ground level is lower than in the upper layers, which creates a cap that prevents the dispersion of urban pollutants in the atmosphere. From the beginning of the industrial era, it was responsible for the notorious London fogs. It was also found to be behind the highly polluted Wuhan smogs. (2)
In January of this year, Lombardy, Piedmont and Veneto were affected by an ATI that led the Italian government to impose strong measures to restrict the circulation of diesel vehicles, ban the burning of domestic fuels and force people to turn down their central heating. In Milan, the fog was so thick and the air so polluted that the fact you could no longer see the Madonnina on the Duomo’s southern façade made national news. In January, pollution levels in the region exceeded 50 micrograms of PM10 and PM2.5 per cubic metre, a situation further aggravated by a strike of the region’s rail workers.
PM10 and PM2.5 are inhalable particles with a diameter of less than 10 µm, known as micro-particles. Among the various air pollutants, they are the ones that cause the greatest health risk because they penetrate deep into the lungs and reach the alveoli, causing not only serious disorders in the respiratory tract but also in other organs, as they infiltrate the bloodstream. The main causes of their formation in the atmosphere are the so-called gas precursors, such as sulphur dioxide and nitrogen oxides. The latter, also known by their acronym, NOx, are produced by the poorly filtered burning of diesel. Their effects on public health are well known: respiratory diseases, diabetes, asthma, coronary and neurological diseases. In 2015, at least 38,000 people died from NOx inhalation. (3) Overall, micro-particles are responsible, or co-responsible, for the deaths of at least 15,000 people in Europe every year.
When an ATI, which prevents the atmospheric dispersion of PM10 and PM2.5, occurs simultaneously with a viral outbreak to which the human body has no immunity, its effects are devastating, especially for those suffering from any of the diseases listed above.
Without wishing to minimise the risks of the Covid19 pandemic, I would nevertheless question the appropriateness of the “war” metaphor that permeates political leaders’ speeches and is duly propagated by the media. It is absurd to declare “war” on a virus, and to call it an “invisible enemy”.  It is understandable to praise the heroism of health care workers but preposterous to compare them to soldiers on a bloody battlefront and to promise total victory “whatever it takes”. The analogy has a goal, of course: that of demanding blind obedience under emergency laws by peddling a holy national communion between the people and their protector governments.
I doubt that the metaphor makes sense if we genuinely want to understand what is really at stake, both socially and in medical terms. But let us momentarily suspend disbelief and accept it as a portrait of reality. If we are indeed at war, we must hence clearly define our strategic goal, identify our enemy and select the best means to combat it effectively. So I would ask: has anyone ever posited that there may be more than one enemy and that we are trying to fight a virus without recognising that diesel combustion is perhaps the more insidious enemy? We could, for instance, start by trying to understand why a total of 24,981 Italians died of “flu” in the winter of 2016-17, when there was no Covid19 around.


References:
1) M. Bell et al., “A retrospective assessment of mortality from the London smog episode of 1952: the role of influenza and pollution”. Environmental Health Perspectives, 112, 1: 6-8
2)  B. Liu et al., “Study of continuous air pollution in winter over Wuhan based on ground-based and satellite observations”. Atmospheric Pollution Research, 9: 156-165.
3) S. Anenberg et al., “The global burden of transportation tailpipe emissions on air pollution- related mortality in 2010 and 2015”. Environmental Research Letters. 14 (9): 1-12.
4) A. Rosano et al., “Investigating the impact of influenza on excess mortality in all ages in Italy during recent seasons (2013/14–2016/17 seasons)”. International Journal of Infectious Diseases, 88: 127–134.

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​Publicat a L'Accent, 4 Abril 2020
Published in TruePublica, 2 April 2020
Publié à MediaPart, 27 Mars 2020
Publicado no Público, 23 Março 2020

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A UNIVERSIDADE SEM PROFESSORES

13/3/2020

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Estrela Alpha Orionis (Betelgeuse)
No seu livro Contagious: Cultures, Carriers and the Outbreak Narrative, Priscilla Wald analisa a génese e cristalização de uma fórmula narrativa mundial sobre doenças transmissíveis: a “narrativa do surto”. Não sendo porventura o termo “narrativa” o mais apropriado, já que vem amalgamar “relato”, “representação” e “ritual”, a análise é ainda assim perspicaz: evidencia que, desde o HIV ao SARS, as declarações de pandemia desencadeiam fenómenos de histeria colectiva com estruturas discursivas e agenciais recorrentes: os tipos de personagens e seus posicionamentos, os estágios do drama e as formas vocabulares de um novo surto elaboram-se sobre os do surto anterior.

A “narrativa do surto” começa com a identificação de uma infecção emergente, ilumina mediaticamente casos paradigmáticos de contacto e contágio, espraia-se em definições e descrições de “pacientes zero”, “transmissores” e “sintomas”, debita estatísticas efémeras e contraditórias, e termina em panegírico do trabalho epidemiológico transnacional que a finalmente contém. Merece também atenção a conexão genealógica que a autora estabelece entre a dramatização dos pânicos colectivos despoletados por narrativas de surtos microbianos contemporâneos e aqueles causados, durante o período da Guerra Fria, pelas ameaças alienígenas, os sequestros, as lavagens cerebrais e outras fantasias de ficção científica.

Uma “narrativa” tem sempre um contexto ideológico e uma das consequências – como nos mostrou à saciedade a “guerra contra o terrorismo” – é a instalação de políticas públicas que tendem a aumentar a capacidade de intrusão das autoridades nas esferas privada e comunitária. Uma crise é sempre uma oportunidade de mudança.

O presente drama global – a pandemia do Coronavirus (que está para o COVID19 um pouco como o Terreiro do Paço está para a Praça do Comércio) – tem produzido alterações extraordinárias na normalidade da mobilidade internacional, nacional e local. Os seus efeitos humanitários, sociais, económicos e políticos são ainda incalculáveis. Mas há um domínio em que a sua previsibilidade parece ser já semi-manifesta, e o qual tenho seguido mais de perto: o do ensino, e em particular, o universitário. O cancelamento coercivo de eventos internacionais, a suspensão de aulas e o encerramento de instalações são apenas a face mais imediata e visível da reacção-transformação em curso. O interessante (ou o preocupante, conforme o ponto de vista) é a recorrência com que expressões como “e-learning”, “ensino à distância” e “ferramentas digitais” têm emergido como soluções de aparência paliativa, para precaver quebras na acção lectiva e certificadora das universidades.
Por curiosidade diletante, tenho lido alguma literatura sobre o impacto da peste bubónica no mundo universitário medieval. Por comparação com o conjunto das populações afectadas no séc. XIV, o meio universitário parece ter sido relativamente poupado. Nos casos para os quais há dados quantitativos, os casos fatais mostraram ser bastante reduzidos e os números globais, seja da população estudantil ou docente, não sofreram grandes alterações ao longo do século. Mas há uma correlação temporal entre os anos de ocorrência da “peste negra” e certas transformações (certos autores falam especificamente de “declínio”) na qualidade do ensino, na organização dos curricula e na preparação prévia dos estudantes. É fortemente provável a peste negra ter causado alterações no mercado de trabalho e nas expectativas dos estudantes. É até possível que tenha contribuído para reforçar uma tendência para a reorganização interna das universidades (como aconteceu com a criação dos colleges de Oxford). Mas os dados parecem sobretudo apontar para o facto de a crise interna, relacionada com o seu financiamento, ser anterior à epidemia.

Uma analogia histórica vale o que vale como argumento. Serve para pouco, para além de nos inspirar a reflectir sobre o presente, sem quaisquer pretensões deterministas. Seria difícil argumentar em poucas palavras sobre a realidade da crise em que as universidades se encontram actualmente. Que, de corporações elitistas, se transformaram em empresas certificadoras de massa, parece haver pouca dúvida. Que a desqualificação do estatuto e funções dos docentes e investigadores é generalizada, também é certo. Que a precarização do trabalho universitário serve sobretudo os interesses das gestões empresariais é inquestionável. E já se falava de “e-learning” e de “ensino à distância” muito antes da epifania que o Coronavirus parece estar a provocar nos gabinetes das reitorias e conselhos directivos universitários. Mas não seria de todo inimaginável que o provisório passasse a definitivo, e que uma solução de recurso viesse a ser a porta que esperava ser aberta para uma transformação radical do sistema de ensino universitário. Os gestores já andavam a questionar há muito a racionalidade económica de manter um corpo docente contratado que cria problemas constantes no deve-e-haver das instituições. Mas não há como uma boa “narrativa do surto” para fazer vingar a solução óbvia: a universidade sem professores.

Publicado n'O Público, 12 Março 2020
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    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

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