MANUEL JOÃO RAMOS
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O que está por baixo

24/3/2025

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​“Senhor Manuel! Venha aqui que eu quero comentar uma coisa. Já estava para lhe dizer isto há um tempo... Já reparou que ali depois da curva da oliveirinha foram tapar a boca de incêndio onde os ciclistas costumam parar para beber água na subida? Agora cimentaram aquilo, que deve de ser por causa da nova plantação dos que compraram o terreno baldio, dizem que é para vinha, mas as estacas são muito altas e os rebentos que lá estão são vermelhos, há-de ser outra coisa. O certo é que por baixo da pedra basta raspar um bocadinho e começa logo a subir a água, aquilo está ali uma obra mal feita!”
Calhou bem a conversa com a minha vizinha, agora mesmo. Eu estava para falar desta coisa que é raspar um bocadinho a superfície da pacatez aparente da vida na vila para descobrir um subterrâneo mar revolto. É ponto assente não se falar publicamente das dores e do sofrimento das vidas perdidas ou desgraçadas pelos desastres de mota que assolam a região, como o é não questionar o porquê do culto das quartas-feiras à noite que chama à vila chusmas de motoqueiros de aquém e além Coina. E, no entanto... basta raspar um bocadinho a face triste de pais, mães e irmãos, e lá está a memória de lutos mal resolvidos, o trauma de viver com uma dor que não desaparece, o enigma de um Deus que não responde às perguntas que assaltam a consciência.
E no entanto... basta dar o passo certo na direcção da empatia e partilhar. Não é coisa que azeitonenses, que portugueses no geral, diga-se, tenham por hábito fazer – que o hábito é o contrário: calar, reprimir, silenciar. Não é que eu esteja a advogar sermos como não somos, fazermos como não fazemos, só porque lá fora se é ou faz assim. Mas não faz mal nenhum trazer o assunto à baila da consciência, que pelo menos estamos avisados que somos e fazemos assado e não assim.
A serra é a mesma coisa: a pacatez feita suave rocha coberta de ralo manto vegetal. Mas raspe-se um pouco a superfície e logo saltam à vista casarões construídos com licenças mais que dúbias, querelas de extremas e abusos de posse; detestações familiares amamentadas de geração em geração; arreigadas desconfianças do que vem de fora, que hoje em dia suplanta já o que vem de dentro.
Raspar, raspo pouco, que sou discreto e nada inquisitivo. Mas, se ouço o que ouço, à mesa do café ou na curva do caminho, fico como a Virgem que, tendo concebido, pode continuar virgem mas não pode deixar de ter concebido (eu sei, é um aparte erudito: São Tomás de Aquino dixit, a páginas tantas da Summa Theologica). E, como não sou como Tomé, o Dídimo, acredito em tudo sem ter visto, porque sim. Acredito nas fantásticas histórias dos helicópteros que cirandam na serra e depositam caixotes de droga que são logo enterrados nas fragas, nos casinos ilegais onde se faz mais dinheiro que no Estoril, nos bandos juvenis que nunca são apanhados em flagrante assalto pelos militares da GNR, nas armas automáticas com silenciador que chegam à península por via de Odessa, na coca que está a suplantar a heroína na rebaldaria das festas nocturnas que, na profundeza dos vales arrabidinos, unem estrelas das novelas, futebolistas e acompanhantes de origens variadas. Acredito em tudo como o jornalista do filme The man who shot Liberty Valance – quando James Stewart lhe pergunta se vai publicar a verdade, ele responde com uma máxima que se tornou lenda: “This is the West, sir. When the legend becomes fact, print the legend”. Raspar, sim, mas não demais.
 
​Jornal de Azeitão, Agosto 2024 

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O interregno

21/3/2025

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Não é coisa de todos os dias, subir a Serra da Arrábida palmilhando o carreiro que leva dos Picheleiros ao Alto do Formosinho. Com as pernas a doer, o coração a latejar e o fôlego a mingar, aqueles últimos metros que nos separam do cume testam o corpo e desafiam a vontade. A recompensa, entretanto, é valiosa e inolvidável. Lá em cima, entre o rochedo, o mar e o céu, podemos em paz fazer a paz com o mundo, lembrando a lição de Frei Agostinho da Cruz:
Assim com cousas mudas conversando,
Com mais quietação delas aprendo
Que outras que há, ensinar querem falando.
Ao fundo da longa estreita língua de terra arenosa, vislumbra-se em dia claro a ponta de Sines. E quem diria que ali, naquela ponta, naquele bico, os impérios do mar chocaram um dia tão desalmadamente com os impérios da terra? Meta final da laboriosa Nova Rota da Seda (Yidai Yilu, no original chinês) que atravessa a vastidão da imensa Eurásia, Sines é, também, a porta aberta à penetração do poderio marítimo anglo-saxónico na massa da “Ilha-Mundo”, na expressão de Harold Mckinder, o inventor britânico dos estudos de geoestratégia.
Foi há coisa de oito meses que, em drama farrusco e embaçado, se demitiu um primeiro-ministro, caiu um governo, e terminou uma legislatura. Com meia dúzia de escutas e envelopes de dinheiro escondidos numa qualquer estante, se fabricou o que aparentava ser uma farsa canhestra, mas na realidade foi um magistral passe de mágica com a força de mil Oudinis. No essencial, a intriga ditou que, em voz muito alta, se invetivassem políticos, se esgrimissem insultos e se escavassem suspeitas, para que o inocente público não visse, não apercebesse, a clamorosa batalha de titãs que se travava entre interesses multinacionais contraditórios em torno de fontes energéticas críticas, plataformas logísticas de transporte e redes de transmissão de dados. Como se fora o mostrengo de Pessoa, tinha subido à superfície da ponta de Sines um Golem, amálgama disforme feita de lítio, LNG, hidrogénio e fibras ópticas ostentando, tal Janus, duas faces antitéticas: uma oriental, e a outra ocidental, cada uma querendo comer a sua contraparte. E, maravilha das maravilhas, o magno manto da prestidigitação cobriu o monstro da cabeça aos pés de barro, e fê-lo esvanecer-se perante os nossos incrédulos olhos e apagar-se da nossa apequenada memória colectiva.
O restolhar excêntrico das ondas que se propalaram do remergulho do Golem na baía de Sines terá certamente atingido, ao de leve, o areal da praia do Creiro, cujo recorte em meia-lua se vislumbra a partir do quebrado marco geodésico do Alto do Formosinho. Mas o mar está manso, o ar é meigamente salgado e, lá ao fundo, a vila de Sines parece ter retomado a sua pacatez centenar. A muda paisagem conversa connosco aqui no cume da serra; sob o céu benevolente, o diálogo silencioso entre a fixura ctónica e o fluor pelágico ensina-nos a degustar o interregnum de que falava Gramsci, aquele longo momento em que o mundo velho definha e o novo aguarda por nascer.
O Portugal contemporâneo – que o era já na prosa das Farpas – é o lugar onde a crise assentou com tal conforto que se fez crónica. E, como nos “interregnos”, culminares de estados de crise, despontam sempre neutrões oportunistas, o nosso bojo tem sabido expelir para o mundo, nas últimas décadas, vários ínclitos personagens, que Eça e Ortigão designaram um dia como “Eleutérios”, gente que, tendo evidenciado sábia incompetência, era agraciada com postos sempre mais elevados na fazenda real. Salutar doutrina esta, que determina que um primeiro-ministro que tropece antes da meta e não complete o mandato da legislatura seja alçado a cargos de relevo internacional. Para um Eleutério, nenhum cargo é inalcançável: Durão na presidência da Comissão Europeia, Guterres como secretariado-geral das Nações Unidas, e agora Costa no Conselho Europeu… Mas a história recente também conta que o país produz génios para os quais nenhum cargo mundial é sapato suficientemente largo para a grandeza do pé: a estatura de um José Sócrates ou de um Pedro Santana Lopes é de tal munificência que as instituições internacionais não puderam ainda inventar agraciamento suficiente para os acolher.
Era nestes mistérios místicos da natureza humana que eu cogitava absorto, acariciado pela brisa marítima no cume da Arrábida, quando de súbito senti nas narinas abertas uma baforada de fish and chips.

 Jornal de Azeitão, Julho 2024 
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Ocupação selvagem

4/6/2024

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Faz semanas, pela tarde, num caminho que meandra mais ou menos paralelo à estrada do Parral, ouvi um piar no pinhal – um piar que era mais um assobio assoprado, como de gato assanhado. Não tenho dons de ornitólogo, nem vocação de bird-watcher, mas suspeitei que fosse de cria de coruja. Como cheguei à suspeição, não tenho bem ideia; não sou fã de programas televisivos sobre o mundo natural, nem faço por guardar registo fonográfico de sons de aves. É verdade que, nas minhas caminhadas, vou inconscientemente retendo a profusão de piados, chilreados, cantos e ululares da multitude de espécies de pássaros que têm conseguido sobreviver à omnipresença da praga planetária que é o ser humano. É verdade também que tenho amigos adictos à observação da fauna de tetrápodes avianos, mas não faço por resumir as minhas flanagens florestais ao propósito de classificar plumagens, formas de bico ou desenhos de vôo. O certo é que meti na cabeça que tinha ouvido uma coruja-bebé a chamar pela progenitura.
 
Não terá sido imaginação despropositada. Salta aos olhos – e aos ouvidos – que a fauna ornitóidea arrabidina tem, mal ou bem, resistido aos tiros de caçadeira, aos gases automóveis e à crescente mancha de cimento e tijolo que a assola. Não é como agulha em palheiro o achamento de melros, gaios, piscos, rabirruivos, cotovias, rolas, perdizes e abelharucos; ou de falcões, gaviões, bufos, noitibós e corujas, e, se preferirmos as escarpas e as praias, de gaivotas, maçaricos, mergulhões e cagarras. Mal nos afastamos do bulício urbano e da zoeira dos motores de combustão, mal o manto da desarmonia humana dissipa, logo retomam os cantares dos passeriformes – no fundo do jardim, para lá dos arbustos, ou sob a copa das árvores.
 
Nunca assisti à folclórica visitação das varas de javardos à praia de Galapos, mas posso atestar – por ter visto em primeira mão – que há na serra raposas, gatos bravos, sacarrabos, genetos e doninhas, andorinhões, bufos, peneireiros e até uma outra rara águia de Bonelli, ouriços, cobras rateiras e víboras cornudas. Isto fora a legião de piscos, melros, e carriças.
 
Não é todos os dias, contudo, que nos deparamos com certos ninhos. Há semanas atrás, quando, pela tarde no bastio do vale do Parral, levantei os olhos na direcção da origem do piar que surpreendi e me surpreendeu, deparei com uma colossal e inaudita estrutura de galhos bem no topo de um pinheiro-bravo. Era o ninho de onde o piar assoprado provinha, um ninho visivelmente vetusto e musguento, com vestígios de várias reparações. Ora, sendo que a coruja das torres, a mais comum na zona da serra, é uma ave oportunista, que em vez de fazer ninho se aproveita dos que encontra abandonados, e considerando a dimensão daquele alcandorado nas ramagens da conífera, a conclusão óbvia impôs-se-me: tinha encontrado um velho ninho de águia.
 
Uma vez por outra, é possível avistar, planando nos céus da Arrábida, uma águia de Bonelli. Mais comum, claro, são os falcões e gaviões, e agora mais que há uns anos corvos negros. A presença de um seu ninho abandonado em zona de vale diz, ao amador pelo menos, que o alimento, antes suficiente para que ela ali se fixasse, agora escasseia. Tal como o silêncio dos canários na escuridão das minas sinaliza que o ar está impregnado de monóxido de carbono, o piar de uma coruja-bebé num ninho feito por outrem merece ser tomado, não tanto como garante da saúde da floresta, mas como sintoma de doença grave. Razão de sobra, portanto, para que quem se toma por amante da natureza se abstenha de fazer passeios pela serra.


 Jornal de Azeitão, Fevereiro 2024
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​Como cozer uma lagosta

4/6/2024

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Eu sei que é egoísta pensar assim, mas esta coisa do aquecimento global tem por vezes efeitos locais simpáticos. Poder disfrutar de céu limpo e temperatura amena às portas do inverno é um deles. Também sei, claro, que as lagostas e as rãs só se dão conta de que estão a cozer quando já é demasiado tarde para espernearem, e que a espécie humana não parece mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos.
 
Assim estou, à beira da época do Natal, a apreciar o burburinho do fim de semana numa esplanada da vila, sem casaco de penas, barrete ou luvas. Como se fora passerelle de um filme de Fellini, vejo desfilar pela rua direita magotes de licrociclistas, enxames de motoqueiros de cabedal, ranchos de enoturistas gringos, e cardumes de SUVs negros. As amitas alfacinhas chilreiam à volta das mesas, os nepotes azeitonenses aborrecem-coçando esquinas, e os pés-descalços aguardam a carreira buzina na paragem do Rossio. Omnipresente nas mãos, nas bolsas e nas orelhas, lá está o rectângulo telemóvel a lembrar que o que vemos é apenas parte do que se passa à nossa volta. A dimensão oculta da matrix conecta tudo e todos, fazendo transbordar o iminentemente pessoal para o globalmente colectivo – através dos servidores que, no Nebraska, lançam ondas de ar quente para as correntes convectivas dos ventos alísios.
 
É uma platitude dizer que o telemóvel entrou nas nossas vidas e que, a par com óbvios benefícios, trouxe uma multitude de novos problemas para os quais não estamos cognitivamente preparados e cuja resolução dependeria de consensos sociais que estão longe de existir – parcialmente porque a discussão pública é, ou mal dirigida, ou demasiado fragmentária. Filhos que são mais filhos do tiktok que dos seus pais naturais, casais que se desunem perante a palavra-passe que interdita o acesso à intimidade do parceiro, gente de costumes suaves que se transforma em turba injuriosa no ventre das “redes sociais”, roubos de identidade, exploração comercial de dados pessoais, espiolhamento por governos estrangeiros... Problemas que as regulamentações estatais e supra-estatais não resolvem, apenas mitigam.
 
Viktor Mayer-Schönberger, um investigador de nome improvável, escreveu há uns anos um livro que marcou o meu olhar sobre o mundo contemporâneo: Delete, the virtue of forgetting in a digital age. Delete é uma palavra inglesa polissémica: significa tanto “apagar”, “suprimir”, “anular” como “cancelar”. O sentido, no contexto do livro, é referência directa à ubíqua tecla de qualquer keyboard de computador, aquela que se encontra no topo direito dos teclados e serve para, precisamente, “apagar” ou “anular” uma acção de digitação. A ideia central do livro é que a humanidade tem vivido há muitos milhares de anos numa idade estritamente analógica, afinando e modelando formas culturalmente variadas para garantir que, das múltiplas acções humanas, algumas possam ser memorizadas e passadas de geração em geração, e outras sejam esquecidas para sempre. Nesta perspectiva, a cultura é vista como um processo de selecção da memória colectiva, de escolha do que cada sociedade prefere lembrar – porque os meios de preservação da memória são (eram) limitados. A invenção dos computadores, da internet, dos telemóveis, etc., inaugurou uma nova idade do Homem: a idade digital, em que o esquecimento deixou de ser possível, ou pelo menos deixou de ser controlado por processos de selecção cultural, e pelos indivíduos-utilizadores. Os servidores não apagam nada, não esquecem nada, a não ser por decisão empresarial discricionária, ordem governamental irrevogável, ou avaria técnica irresolúvel. O passado reverte-se sem controlo sobre o presente, ameaçando a relevância e a sobrevivência da transmissão cultural analógica.
 
Porque a espécie humana não é mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos, quando nos apercebermos da dimensão da tragédia que é o nosso sonambúlico mergulho colectivo na era digital será tarde demais. Vamos cozer em águas de “inteligência artificial”, se é que não grelhamos antes sob o inclemente estio de Dezembro.
 
 Jornal de Azeitão, Dezembro 2023​
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Redução a pó

4/6/2024

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 Habituei-me, nestas páginas, a reportar instantâneos de Azeitão, vila, freguesia e região; a relatar impressões sobre rituais do presente e memórias do passado, a partir do que vejo, ouço e leio.
 
Vou procurando acompanhar, tal astronauta, as labutas, as festividades, e os diz-que-disse de quem por cá vive, por cá passa e, por vezes, quem trespassa. O casario, as pedras, árvores e caminhos têm histórias para contar, e faço-me disponível para os observar e tentar compreender. Diverte-me inquirir os sinais fugazes de passados longínquos, que se manifestam em coisas que se dizem, em pedras que se preservam, e espaços que se sacralizam. Séculos, milénios, de vidas vividas, aspirações, esperanças e desenganos, engajam-nos, inspiram-nos e assombram-nos como fantasmas imateriais.
 
Trazê-los à vida e dar-lhes sentido, convocando-os pela palavra, é ajudar a dar-nos a nós mesmos sentido.
 
Ao admirar a serra, ao apreciar o arvoredo, e ao perscrutar os vários estratos da mancha urbana construída, cismo frequentemente sobre o que restará do passado e do presente no futuro. Há por aí pedras seculares que nos prometem perseverar caso a mão da natureza ou da iconoclastia não as derrubem abruptamente. Há árvores e geografias que, tendo muito presenciado, se mostram disponíveis para continuar sendo testemunhas mudas e paradas do fervilhar da vida em sua roda. E há provérbios e narrações que, escritas ou contadas, nos irão sem dúvida sobreviver. Mas, e tudo o mais? Quanto do que julgamos hoje ser tão importante e valioso estará cá depois de depois de amanhã?
 
O século XXI não reverteu, antes reforçou, a natureza efémera do que marcou a acção humana no século anterior. Somos muitos, muitos mais do que éramos antes, a reclamar o direito a bens materiais, e a um módico de conforto. Uma exigência colectiva que a ideologia do consumo de massas abraçou e exponenciou. O tempo da contemporaneidade – do hoje – é o da produção imparável de lixo – que é o estado final dos desejos, aspirações, produções, aquisições, transações de coisas materiais. Um carro durará 15 anos com um pouco de sorte, uma casa feita de cimento 75. O plástico degrada-se a partir dos 7 anos. O asfalto soçobra aos 30. As telhas – se não forem em placa sanduiche – durarão muito mais, mas quem quer um telhado sem casa por baixo?
 
De património físico, os nossos antepassados deixaram-nos muito pouco, para além do que os ricos e poderosos quiseram que ficasse: paços senhoriais celebrando a assimetria social, igrejas opulentas consagrando o poder do sacerdócio, caminhos consolidados com o suor e o sangue do povo e das muares. Deixaram-nos também intocado o gentil recorte da serra da Arrábida. E nós, que vamos deixar para quem – se é que alguém haverá – nos sobrerrestará? Vidros partidos, estradas esburacadas, paredes arruinadas pela degenerescência do cimento, microplásticos omnipresentes, invisíveis a olho nu, e uma serra ferida de morte por cimenteiras e pedreiras que – como o carcinoma explosivo – se alastram pelas encostas e reduzem a pó a pedra do tempo dos dinossauros e das conchas marinhas. E, por seu lado, a voragem das redes sociais, o tumor da internetização da comunicação humana, reduzirão sem dúvida a pó algorítmico as memórias, os hábitos, os costumes, os saberes que herdámos de quem nos precedeu neste pedaço de superfície terrena. O símbolo maior do mundo de hoje não é, como alguém escreveu, o deleite, mas sim o “delete”.
 
Jornal de Azeitão, Outubro 2023​

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A Tragédia dos Comuns

30/5/2022

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A Quinta da Periquita, na Aldeia da Portela, hoje um “alojamento local” propriedade de investidores estrangeiros para uso de clientes também maioritariamente estrangeiros, não é propriamente um exemplo de quinta histórica ao contrário, por exemplo, da Quinta de Santo Amaro, da Quinta das Donas, ou do Casal do Bispo (a antiga Herdade da Infanta). O edifício foi reconstruído há pouco mais de 40 anos, pelo Juiz Francisco Rolão Preto, filho e homónimo do polémico monárquico integralista.
 
A quinta e o edifício em si não têm nada de particularmente notável, tirando a vista magnífica dos contrafortes da Serra da Arrábida. Para mim, uma parte do seu charme está na ligação indirecta a Rolão Preto pai. De cada vez que passo pela Estrada dos Barrancos, à saída do Largo da Portela, relembro-o, não tanto porque foi o fundador dos Camisas Azuis, o entusiasmado jovem de inclinações falangistas que conviveu com a família de Primo de Rivera, mas porque, enquanto fundador da Convergência Monárquica e posteriormente do Partido Popular Monárquico, foi um dos principais representantes do desditoso movimento comunitarista português. De facto, a mais interessante parte da sua obra literária é precisamente aquela que ele dedica à longa história do comunitarismo em Portugal e à defesa desse ideal.
 
Essa corrente silenciosa e grandemente silenciada pretende (ou pretendeu, porque hoje pouca coisa de discussão política corre ou sequer escorre em Portugal) reviver ideias e práticas seculares de organização social local de tendências colectivistas que se cristalizaram durante a Idade Média e foram progressivamente desarticuladas à medida que o Estado se centralizava e o Direito perdia o seu tertium genus, que era o direito comum para vantagem do binómio público/privado.
 
O direito ao uso comum de terras foi consagrado juridicamente nas Ordenações Manuelinas: para “os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras”, porque “proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e outros frutos”. Desde então, foi retrocedendo até praticamente desaparecer do Direito Civil durante o Estado Novo, ressurgindo timidamente na legislação posterior ao 25 de Abril de 1974.
 
No norte do país, como na Galiza, o uso comunitário dos baldios e a defesa da propriedade comunal está ainda viva, mas o facto de o poder autárquico se poder imiscuir na sua gestão tem resultado em infelizes atropelos ao direito comum, em benefício dos cofres de juntas de freguesia que cedem os baldios para, por exemplo, colocação de parques de eólicas em elevações ventosas. Sem estruturas, ideias ou pessoas que o defendam, o espaço do direito comunitário (que os ingleses designam como law of the commons, distinta da common law) é consumido pelo direito público e pelo direito privado.
 
A Serra da Arrábida está cheia de espaços baldios, de práticas comunitárias (ou pelo menos da sua memória). Mas, num mundo em que prevalecem os interesses públicos e privados, não podemos senão assistir saudosos à lenta morte trágica dos comuns. O caso, reportado nos jornais, da polémica em torno dos direitos comunitários no que respeita ao uso colectivo de espaços nas margens e interior da Herdade da Comenda (o parque das merendas junto à Ribeira da Ajuda, o acesso à praia, o caminho de Santiago) é claro sinal do estado comatoso em que se encontram hoje os ideais comunitaristas. A indignação popular contra as vedações instaladas pelo novo dono da Comenda, o fundo imobiliário Seven Properties, da Mirpuri Foundation, levou a que os setubalenses se concentrassem para gritar “A Comenda é nossa!” em 2019, numa manifestação em defesa do interesse comum. Mas rapidamente a autarquia se acaparou do processo, que a partir daí se transformou num jogo político no qual o direito público (nomeadamente o do embargo) tem digladiado contra o direito privado dos fundos de investimento turístico. E, por esta via, o direito dos comuns se vai esboroando até desaparecer, como uma praia sem areia na maré cheia.
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2022
 
 
 
 

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A Serra-catedral

27/8/2020

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O mundo lá fora dilacera-se entre variegadas investidas das políticas identitárias contra os ideais liberais da representação democrática, suportadas por sedes populistas e inclinações autoritaristas. A milésima metamorfose do capitalismo procura, pela calada, tirar proveito de crises existenciais declaradas ou previstas – corrupções, poluições, migrações, propagações virais e redes digitais. O mundo lá fora parece profundamente desequilibrado.
O ínfimo refúgio bucólico que é a Serra da Arrábida conserva – por enquanto, pelo menos – o poder encantatório, se não de nos fazer olvidar o mundo em desequilíbrio, de diminuir em muito o seu domínio sobre as nossas consciências. Ajuda, nesta empresa, ler Frei Agostinho da Cruz e Sebastião da Gama, dois poetas separados por quatro séculos, mas unidos pelo misticismo religioso e pela branda paisagem da estreita faixa arrabidina.
 
Escrevia o primeiro:
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano duma banda
E doutra já salgadas as do Tejo.
 
E o segundo respondia:
A Serra é catedral
Onde o órgão-silêncio salmodia.
 
As horrendas agressões que a sangram e desfiguram – a cimenteira de um lado e as pedreiras do outro, o casario informe que mastiga as suas bordas e brota no seu mato, o asfalto que lhe rasga as entranhas – enfraquecem mas não lhe extinguem o potencial contemplativo e a força refrigéria.
A insanidade humana deixa impunes e torna irreversíveis os actos assoladores de quem se arroga o direito de os cometer. Mas a serra absorve-os, dissolve-os e perdoa na sua brandura os algozes. A cimenteira injectada no Outão deveria ser encerrada, mas os poderes renovam-lhe a licença por mais umas décadas? Seja. A pedreira que, por gesto iníquo a Casa de Palmela concedeu nas traseiras do Calhariz continua a comer a montanha? Seja. O Palácio dos Duques de Aveiro salvo da demolição e salga na voragem do processo dos Távoras sobreviveu séculos para se plasmar agora em “hotel de charme”? Seja. O extraordinário convento arrabidino arruinou-se nas mãos de uma seita de origem coreana e é agora pousada disfarçada de uma fundação gestora do dízimo dos casinos macaenses? Seja. Os japoneses do Agar-Agar saquearam todo o coberto submarino que fazia da costa sul da Arrábida um dos mais preciosos berçários piscícolas do Atlântico Leste? Seja.
Na sua bonomia, indiferente à mesquinhez das coisas humanas, a serra-catedral tolera, perdoa, sorri – mesmo se lhe topamos, ou imaginamos topar, trejeitos tristes nos seus cantos silenciosos. A dança da orografia garante-lhe por mais uns milénios não apenas solidez mas mesmo um ligeiro incremento do alçado – ao fim e ao cabo, a serra ergueu-se das águas, empurrada pela força das placas tectónicas, e não se entrevê o seu afundamento em futuro de médio prazo.
E se a sua cobertura vegetal única de cotovelo mediterrânico enfaixado no Atlântico um dia se perder por incêndio malicioso ou catastrófica mudança climática? Será triste ver a linha do seu cabeço descabelada, mas ainda assim a catedral continuará a ser catedral, até ao dia em que os últimos fiéis deixem de a frequentar e de nela buscar refúgio do mundo lá de fora – que seja para aí rezar em desespero por uma qualquer salvação temporal, ou mais singelamente para nela contemplar as silhuetas inescrutáveis da eternidade.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2020

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O Monstro do Parque

30/6/2020

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Fotografia: dinheirovivo.pt
A estrada que liga, junto ao mar, o Vale da Rasca ao Portinho da Arrábida é uma estrada emblemática e, como se sabe, agora com trânsito muito condicionado. A ligação foi rasgada no início dos anos setenta e sempre causou tensão entre o apetite popular pelo acesso facilitado às praias e as intenções conservacionistas do Parque Natural. O risco de queda de rochas, sendo real, tem servido como justificação mal explicada e, por isso, mal compreendida, para um progressivo controlo draconiano do trânsito e do estacionamento dos veículos de quem vai a banhos na Figueirinha, em Galápos ou no Creiro. Até 1970, parava umas centenas de metros antes da praia de Galápos. Hoje, quase invisível na rocha, ainda se podem adivinhar os vestígios da pequena tasca que ali havia e depois se deslocou para a praia (é hoje o Restaurante O João). A estrada servia sobretudo de acesso a duas estruturas antitéticas nascidas no início do século XX, uma para curar os males que a outra amplificava: o sanatório, agora hospital, do Outão e a cimenteira da SECIL.
Atravessar o perímetro da cimenteira é uma experiência visual perturbante, tanto porque impressiona como porque choca. É difícil não nos perguntarmos, de cada vez que por lá passamos, porque razão uma cimenteira – e a pedreira anexa - é autorizada a operar bem no âmago de um parque natural, como uma chaga purulenta numa paisagem protegida reconhecida como das mais belas do país. Mas antigamente a experiência era muito mais intensa: à aproximação da cimenteira, os odores execrandos dos fornos penetravam nos pulmões como facas e as poeiras giravam no ar e manchavam toda a paisagem.
Hoje em dia, a poluição tornou-se mais insidiosa. Como a dos automóveis, deixou de ser tão visível, mas nem por isso menos perigosa. As micropartículas que se libertam dos fornos de co-incineração (onde se queimam resíduos quimicamente nocivos) são, por virtude dos ventos dominantes na zona, geralmente transportadas para a baía de Setúbal, preservando os doentes do hospital do Outão, poucos quilómetros para Oeste. Em Setúbal, misturam-se com as micropartículas emitidas pelos motores a diesel, pelo fuel dos navios e pelo sem número de fábricas poluentes da região. Ao contrário das partículas de monóxido de carbono, as micropartículas conseguem penetrar na corrente sanguínea e atingem todos os órgãos (dos seres humanos, como dos animais e dos vegetais). São, globalmente, responsáveis pela morte de quatro a sete milhões de pessoas todos os anos.
É por isso irónico que uma das causas principais de poluição ambiental da região tenha a sua origem num parque natural, que deveria ser precisamente um espaço sacro de protecção ambiental. A cimenteira deveria, não fosse a renovação da concessão motivada precisamente pelo programa de coinceneração, encerrar portas em 2021. Assim, vai continuar a contribuir para adoecer e matar a população de Setúbal até 2044. É também irónico que o Hospital do Outão, que nasceu como sanatório para curar doenças respiratórias, esteja em vias de ser desactivado e deslocado para a cidade, onde os doentes serão muito mais afectados pela poluição atmosférica que junto à beira-mar, numa paisagem idílica.
Neste momento em que o mundo se confronta com a pandemia de uma doença respiratória que mata sobretudo quem tem as defesas imunitárias enfraquecidas pela poluição atmosférica, há que reconhecer que somos vítimas de más opções passadas e aproveitar esta crise como oportunidade para repensar o futuro, valorizando em vez de continuar a destruir o extraordinário património que é o Parque Natural da Serra da Arrábida. Uma opção sensata seria encerrar já a cimenteira e voltar a dar ao hospital do Outão a sua nobre função de unidade para recuperação de doentes com doenças respiratórias. Houvesse coragem política para tal...
 
Jornal de Azeitão, Maio 2020
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Pode fazer-se tudo num parque natural?

30/6/2020

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Gostamos de falar de natureza como se fosse uma coisa onde não estamos, de onde não somos. E gostamos de imaginar que há “espaços naturais” intocados pela mão humana “civilizada”. Damos de barato que há, ou houve, uma humanidade mais próxima da natureza, que a habitou e nela se integrou sem a modificar e perverter.
 
Mas consistentemente a paleo-ecologia tem mostrado quão longe esta visão idílica está longe da realidade. Há centenas de milhares de anos, mesmo antes da chamada revolução agro-pastoril do neolítico, que o ser humano marca, transforma e molda as paisagens naturais em todos os cantos do globo por onde passa.
 
Neste sentido, vale a pena revisitar o significado do conceito de “parque natural”. Ao contrário do que se possa pensar, um parque natural não é suposto ser um espaço de onde o ser humano esteja ausente. Certas áreas do território nacional são sujeitas a regulamentação específica com o objectivo de não apenas “preservar” paisagens e habitats zoológicos mas também actividades humanas “tradicionais” (supostamente não muito intrusivas) e promover o turismo “sustentável”. Mas áreas que recebem o título de “parque natural” não estão sujeitas a medidas tão rigorosas de proteção estatal como as “reservas naturais” e os “parques nacionais”. Em Portugal, enquanto os parques naturais são zonas compatíveis com a propriedade e o uso privados, as reservas são de propriedade pública e tendencialmente não habitadas. A criação de parques naturais é relativamente recente em Portugal e foi inspirada, depois da revolução de 1974, pelos exemplos espanhol e francês (vide o Parque Natural de Donaña, na província de Huelva, por exemplo). Antes da criação dos parques naturais regionais, o Estado português criou dois “parques nacionais”, em áreas de propriedade pública: o da Gorongosa, em Moçambique, em 1960, e depois o da Peneda-Gerês, de 1971.
 
Podemos traçar a origem longínqua das reservas naturais nas coutadas reais (por exemplo, a floresta de Fontainebleau, perto de Paris), e também nos baldios (um assunto fascinante que daria por si todo um artigo). O Parque Nacional de Yelowstone, nos Estados Unidos da América, foi o pai de todos os parques nacionais – o Yosemite e a Floresta de Sequoias, que o antecederam, eram inicialmente parques do estado da Califórnia. Instituído em 1872, a sua criação foi contemporânea das chamadas “reservas índias” e o princípio era o mesmo: a constatação dos efeitos devastadores da conquista do Oeste pelas populações provenientes da migração europeia na América. Mas se o objectivo das reservas era o de acantonar os habitantes nativos em espaços confinados, permitindo-lhes manter as suas tradições após lhes ter roubado os territórios, já a criação dos parques nacionais tinha um outro escopo: o de criar e preservar paisagens idílicas em oposição às poluídas cidades da revolução industrial. A ideia de parque nacional está naturalmente ligada à construção do orgulho e identidade do Estado-nação.
 
Podemos assim perceber que, em termos de rigor conservacionista e orgulho nacional, um parque natural fique uns furos abaixo das reservas naturais e parques nacionais. Ainda assim, na minha modesta opinião, é preciso fazer um grande esforço de imaginação e sermos até irresponsavelmente tolerantes para continuar aceitar como boa a ideia de que manter a designação de “parque natural” na área supostamente protegida da Arrábida é compatível com a presença no seu seio de uma cimenteira e várias pedreiras que diariamente a esburacam e poluem. Sejamos ainda assim optimistas e agradeçamos aos deuses não haver centrais nucleares em Portugal. Estou certo que, se as houvesse, a primeira a ser construída seria no Vale dos Barris.

Jornal de Azeitão, Abril 2020
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    Manuel joão ramos

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