MANUEL JOÃO RAMOS
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O palácio hiper-real

1/2/2021

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“Se ainda fosse precisa prova, o novo mamarracho do Berardo mostra mesmo que há uma lei para os grandes e uma lei para os pequenos. Eu, para fazer um telheiro, tive de pedir a um arquitecto para me fazer o projecto, tive de meter os papéis na Câmara e pagar a licença. Estive seis meses à espera da autorização, que agora por causa do Covid dizem que está tudo parado. O Berardo fez o que quis e ninguém parou a obra.”
 
Testemunhos como o deste meu vizinho são comuns, em Azeitão. Tenho-os ouvido um pouco por todo o lado. A percepção de uma justiça desigual mistura-se a sentimentos de inveja difusa, mas deixa habitualmente em silêncio quaisquer juízos estéticos ou de carácter patrimonial. O que é a razão maior da disputa entre o Estado e o empresário – a proximidade entre a histórica Quinta da Bacalhoa e a antiga estação rodoviária dos Belos, em área classificada do Parque Natural da Arrábida – não tem transparecido como preocupação válida nos desabafos que tenho recolhido. É um pouco como se, para “os pequenos”, o empresário, o governo, o ICNF e a câmara fossem faces da mesma entidade que invejam e condenam: são todos “os grandes”, ligados por laços imaginados de corrupção e abuso de que “os pequenos” se sentem excluídos.
 
O discurso anti-nepotista é fruste mas revelador. Sobretudo pelo seu pesado silêncio, é revelador do estado das ideias populares sobre ordenamento territorial e da frágil apreensão dos valores patrimoniais da região. Conceitos como “histórico”, “tradicional”, “autêntico”, que tendem a ser usados e abusados como parte de argumentos justificativos pelas diversas autoridades, soam a ocos e desgastados, e são apenas percebidos como intrusos impeditivos pela população. Vale a pena perceber porquê.
 
No já longínquo ano de 1975, Umberto Eco escreveu o ensaio Viagens à hiper-realidade no qual relatava o fascínio do imaginário norte-americano pelo simulacro. Segundo o escritor, este fascínio conduziu a uma obsessão nacional pela reprodução hiperbólica, em que o falso se conforma melhor à ideia de real que o próprio real. Se Eco tivesse escrito o seu ensaio mais recentemente, teria certamente adicionado a figura de Donald Trump ao seu catálogo de simulacros made in USA. Mais que empresário, Trump representa ser empresário; mais que milionário, ele ostenta ser milionário; e mais que político, ele finge ser político. Eco teria certamente visto grandes semelhanças entre Trump e o crocodilo robótico com o qual se confrontou ao percorrer de barco um simulacro de rio selvagem, numa das atracções da Disneylandia, na Flórida.
 
Mas desengane-se quem pensar que este fascínio pelo simulacro é, hoje em dia, um exclusivo americano. Pode ser que, numa sociedade de abundância capitalista, seja mais fácil produzir simulacros hiperbólicos e espectaculares. Mas se deslocarmos a lupa, das luzes intensas de Orlando, Hollywood ou Las Vegas para a microscópica região de Azeitão, situada no interstício de duas áreas metropolitanas de um país pobre e periférico, encontramos curiosas semelhanças. Encontramo-las não apenas no novo “palácio” Berardo ou nos reclames azuis que são o pelotão de pedra dos soldados chineses guardando a entrada da Bacalhoa. Os sinais estão por todo o lado, na linha de palmeiras entre o vinhedo da quinta, no arco falso à entrada da vila, no lettering das casas comerciais anunciando doçaria regional, nos beirados e na traça das vivendas   desenhadas à “antiga portuguesa”, nos muretes de pedra a fazer parecer casario antigo, nos azulejos industriais modernos que se fazem passar por artesanais e antigos. Mas também nas palavras que preenchem os discursos de promoção turística da região: “velho”, “antigo”, “senhorial”, “tradicional”. E, claro, nos esforços de embelezamento da área do Parque. A “Arrábida” é manto mágico que encobre, como simulacro de si mesma, toda uma gama de acções humanas que modificam, degradam e desfeiam o espaço natural da serra. A cimenteira e as pedras são os mais evidentes arguidos, mas a multitude de casinhas e casarões que pontuam a área protegida, convenientemente apetrechados de telha cónica e lintéis em pedra talhada, são outros tantos objectos transformadores: confortáveis imitações da vida rural para repouso temporário de urbanitas que, mais que os crimes ambientais da Secil, revelam o paradoxo de pretender “preservar” valores patrimoniais numa área “natural” protegida quando os modos de vida “tradicionais” que lhes davam sentido dali desapareceram para sempre.
 
Nem poderia ser de outra forma, talvez. Pintar Azeitão com cores da “tradição”, da “história” e do “autêntico” parece ser a última linha de defesa da identidade de uma vila e de uma região que há muito deixou de ser um mundo de ruralidade para se tornar um dormitório periurbano, alojamento dos “pequenos” sem posses para habitar a cidade e alojamento dos “grandes” com posses para sair da cidade. Uns e outros irão acabar por visitar um dia o simulacro que é o “palácio” Berardo.

Jornal de Azeitão, Janeiro 2021

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