MANUEL JOÃO RAMOS
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Festarolas

27/3/2025

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No seu livro Os Jardins de Adónis, o historiador-antropólogo Marcel Detienne relata que, durante o solstício de Verão, os jovens atenienses ofereciam às suas amantes-amadas tabuleiros de ervas aromáticas a que chamavam, precisamente, “jardins de Adónis” em memória da lenda do amor entre o belo Adónis e a deusa Atenas. Proeminente entre essas ervas era o manjericão que, como sabemos é a erva rainha da cozinha mediterrânea. 
Durante a Idade Média, desenvolveu-se na Península Ibérica o hábito de os jovens oferecerem pequenos poemas amorosos às suas amadas acompanhados de uma pedra semi-preciosa, um tipo de granada avermelhada conhecida como “piropo” (do grego pyropos, “flamejante”). À medida que o culto e as festas de Santo António se começaram a sobrepor em popularidade à procissão do Corpo de Deus, que era a festa mais antiga e mais pomposa de Lisboa, estabeleceu-se o hábito de os jovens alfacinhas fazerem poemas às suas namoradas-noivas, acompanhados de um manjerico envazado. 
Em Córdova – e diz-se que também em Toledo -, a prática ancestral da decoração dos pátios comuns com flores e ervas aromáticas deu lugar, nos anos trinta do século passado, a um processo de folclorização e oficialização que redundou nos concursos para premiar o melhor pátio da cidade. Semelhante processo se deu com os arraiais dos largos do casco antigo da cidade de Lisboa, onde as decorações com flores de papel (um gosto desenvolvido durante o séc. XIX) se espraiaram em concursos de marchas populares oficializadas pela propaganda do Estado Novo, por iniciativa de António Ferro e do então presidente do município lisboeta Duarte Pacheco. 
Quem hoje compra um manjerico no supermercado durante as “festas de Lisboa” – uma reconceptualização do Santo António que muito contribuiu para a gentrificação da cidade velha e para a sua mercantilização para o consumo turístico internacional – não tem de se perguntar de onde vem tal hábito. Faz-se assim porque sim, e para que a tradição se mantenha e reinvente há que não a interrogar demasiado. 
Como tinha de ser e porque não há melhor que fazer, percorri este Verão as festas da região: a de Vila Fresca, a de Vendas, a de Vila Nogueira, e as de Coina a Velha e Pedreiras. Estas últimas, por sinal, coincidiram este ano porque a procissão a El Carmen foi antecipada). Quem opina publicamente tem uma grande responsabilidade, que vem com o poder de abusar do dever de estar calado. Por isso, hesito em dizer o que vou dizer (mas digo na mesma, esperançado em que ninguém esteja a ler estas palavas, aborrecido que ficou com o início do texto): a festa de que mais gostei foi a das Pedreiras porque é a menos gentrificada de todas; sem polos, calções e sapatos de vela, sem topes descascados e leggingues angustas, sem filas intermináveis para a ficha da cerveja, e um bilião de carros mal-estacionados nas bermas e valados. 
A festa de Nossa Senhora da Conceição, em Coina a Velha, já foi assim (na era A.C, Antes do Covid): pacata, com acordeonistas e casais dançantes, rifas de bibelots de cerâmica industrial que assim circulavam de casa em casa, e de família em família. Hoje em dia, transformou-se, como a de Vila Nogueira e outras, em versão miniaturizada das “Festas de Lisboa”, descaracterizada romaria que pouco mais oferece que batida do kuduro e borracheira de cerveja. É provável que o mesmo venha a acontecer à festa das Pedreiras, mais ano, menos ano. Mas, por enquanto, ainda oferece o prazer da viagem no tempo, o tempo em que as festas azeitonenses eram pacatas, tinham casais dançantes e rifas de bibelots. 
Ouvi dizer que, como em anos anteriores, os novos donos do palácio e convento d’El Carmen, nas faldas da serra, quiseram impedir a procissão e convívio que fecha a festa das Pedreiras, junto à igrejinha de Nossa Senhora d’El Carmen. Mas, interessante afirmação do direito comunitário do povo comum, os portões tiveram de ser abertos à passagem do andor, a igreja abriu-se para receber a santa, o acordeão tocou, e o piquenique aconteceu. No altar-mor da igreja seiscentista, lá estava a Senhora d’El Carmen cheia de notas de cinco euros na vestimenta, a cópia processional trazida das Pedreiras com o Menino cheio de anéis de ouro e pendentes de cérebro de corvina e, no altar lateral esquerdo, mais modesta e mais gótica, a santa original: a Nossa Senhora da Pinha. 
Conta a lenda que o seu milagre foi ter, ali no arvoredo da falda da serra, impedido um marido ciumento de matar a sua mulher adúltera, lançando-lhe uma pinha para a mão que segurava o punhal, quando ele preparava para desferir o golpe. Conta a história que as festas da procissão eram tão licenciosas que, no séc. XVIII, foram proibidas pelas autoridades eclesiásticas azeitonenses. Ninguém liga muito à Senhora da Pinha e fazem bem em esquecê-la, porque a tradição é assim mesmo.  Mas a imaginação cavalgante dos antropólogos exegetas não se consegue impedir de ver fios e laços a ligar o Verão às licenciosas intenções dos amantes atenienses, aos jardins de flores e ervas aromáticas, aos piropos medievais que a censura do politicamente correcto veio proibir, às noivas de Santo António e manjerico, à bebedeira e ao milagre algo malicioso da Senhora da Pinha. 

Jornal de Azeitão, Setembro 2024 ​ 
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O que está por baixo

24/3/2025

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​“Senhor Manuel! Venha aqui que eu quero comentar uma coisa. Já estava para lhe dizer isto há um tempo... Já reparou que ali depois da curva da oliveirinha foram tapar a boca de incêndio onde os ciclistas costumam parar para beber água na subida? Agora cimentaram aquilo, que deve de ser por causa da nova plantação dos que compraram o terreno baldio, dizem que é para vinha, mas as estacas são muito altas e os rebentos que lá estão são vermelhos, há-de ser outra coisa. O certo é que por baixo da pedra basta raspar um bocadinho e começa logo a subir a água, aquilo está ali uma obra mal feita!”
Calhou bem a conversa com a minha vizinha, agora mesmo. Eu estava para falar desta coisa que é raspar um bocadinho a superfície da pacatez aparente da vida na vila para descobrir um subterrâneo mar revolto. É ponto assente não se falar publicamente das dores e do sofrimento das vidas perdidas ou desgraçadas pelos desastres de mota que assolam a região, como o é não questionar o porquê do culto das quartas-feiras à noite que chama à vila chusmas de motoqueiros de aquém e além Coina. E, no entanto... basta raspar um bocadinho a face triste de pais, mães e irmãos, e lá está a memória de lutos mal resolvidos, o trauma de viver com uma dor que não desaparece, o enigma de um Deus que não responde às perguntas que assaltam a consciência.
E no entanto... basta dar o passo certo na direcção da empatia e partilhar. Não é coisa que azeitonenses, que portugueses no geral, diga-se, tenham por hábito fazer – que o hábito é o contrário: calar, reprimir, silenciar. Não é que eu esteja a advogar sermos como não somos, fazermos como não fazemos, só porque lá fora se é ou faz assim. Mas não faz mal nenhum trazer o assunto à baila da consciência, que pelo menos estamos avisados que somos e fazemos assado e não assim.
A serra é a mesma coisa: a pacatez feita suave rocha coberta de ralo manto vegetal. Mas raspe-se um pouco a superfície e logo saltam à vista casarões construídos com licenças mais que dúbias, querelas de extremas e abusos de posse; detestações familiares amamentadas de geração em geração; arreigadas desconfianças do que vem de fora, que hoje em dia suplanta já o que vem de dentro.
Raspar, raspo pouco, que sou discreto e nada inquisitivo. Mas, se ouço o que ouço, à mesa do café ou na curva do caminho, fico como a Virgem que, tendo concebido, pode continuar virgem mas não pode deixar de ter concebido (eu sei, é um aparte erudito: São Tomás de Aquino dixit, a páginas tantas da Summa Theologica). E, como não sou como Tomé, o Dídimo, acredito em tudo sem ter visto, porque sim. Acredito nas fantásticas histórias dos helicópteros que cirandam na serra e depositam caixotes de droga que são logo enterrados nas fragas, nos casinos ilegais onde se faz mais dinheiro que no Estoril, nos bandos juvenis que nunca são apanhados em flagrante assalto pelos militares da GNR, nas armas automáticas com silenciador que chegam à península por via de Odessa, na coca que está a suplantar a heroína na rebaldaria das festas nocturnas que, na profundeza dos vales arrabidinos, unem estrelas das novelas, futebolistas e acompanhantes de origens variadas. Acredito em tudo como o jornalista do filme The man who shot Liberty Valance – quando James Stewart lhe pergunta se vai publicar a verdade, ele responde com uma máxima que se tornou lenda: “This is the West, sir. When the legend becomes fact, print the legend”. Raspar, sim, mas não demais.
 
​Jornal de Azeitão, Agosto 2024 

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O interregno

21/3/2025

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Não é coisa de todos os dias, subir a Serra da Arrábida palmilhando o carreiro que leva dos Picheleiros ao Alto do Formosinho. Com as pernas a doer, o coração a latejar e o fôlego a mingar, aqueles últimos metros que nos separam do cume testam o corpo e desafiam a vontade. A recompensa, entretanto, é valiosa e inolvidável. Lá em cima, entre o rochedo, o mar e o céu, podemos em paz fazer a paz com o mundo, lembrando a lição de Frei Agostinho da Cruz:
Assim com cousas mudas conversando,
Com mais quietação delas aprendo
Que outras que há, ensinar querem falando.
Ao fundo da longa estreita língua de terra arenosa, vislumbra-se em dia claro a ponta de Sines. E quem diria que ali, naquela ponta, naquele bico, os impérios do mar chocaram um dia tão desalmadamente com os impérios da terra? Meta final da laboriosa Nova Rota da Seda (Yidai Yilu, no original chinês) que atravessa a vastidão da imensa Eurásia, Sines é, também, a porta aberta à penetração do poderio marítimo anglo-saxónico na massa da “Ilha-Mundo”, na expressão de Harold Mckinder, o inventor britânico dos estudos de geoestratégia.
Foi há coisa de oito meses que, em drama farrusco e embaçado, se demitiu um primeiro-ministro, caiu um governo, e terminou uma legislatura. Com meia dúzia de escutas e envelopes de dinheiro escondidos numa qualquer estante, se fabricou o que aparentava ser uma farsa canhestra, mas na realidade foi um magistral passe de mágica com a força de mil Oudinis. No essencial, a intriga ditou que, em voz muito alta, se invetivassem políticos, se esgrimissem insultos e se escavassem suspeitas, para que o inocente público não visse, não apercebesse, a clamorosa batalha de titãs que se travava entre interesses multinacionais contraditórios em torno de fontes energéticas críticas, plataformas logísticas de transporte e redes de transmissão de dados. Como se fora o mostrengo de Pessoa, tinha subido à superfície da ponta de Sines um Golem, amálgama disforme feita de lítio, LNG, hidrogénio e fibras ópticas ostentando, tal Janus, duas faces antitéticas: uma oriental, e a outra ocidental, cada uma querendo comer a sua contraparte. E, maravilha das maravilhas, o magno manto da prestidigitação cobriu o monstro da cabeça aos pés de barro, e fê-lo esvanecer-se perante os nossos incrédulos olhos e apagar-se da nossa apequenada memória colectiva.
O restolhar excêntrico das ondas que se propalaram do remergulho do Golem na baía de Sines terá certamente atingido, ao de leve, o areal da praia do Creiro, cujo recorte em meia-lua se vislumbra a partir do quebrado marco geodésico do Alto do Formosinho. Mas o mar está manso, o ar é meigamente salgado e, lá ao fundo, a vila de Sines parece ter retomado a sua pacatez centenar. A muda paisagem conversa connosco aqui no cume da serra; sob o céu benevolente, o diálogo silencioso entre a fixura ctónica e o fluor pelágico ensina-nos a degustar o interregnum de que falava Gramsci, aquele longo momento em que o mundo velho definha e o novo aguarda por nascer.
O Portugal contemporâneo – que o era já na prosa das Farpas – é o lugar onde a crise assentou com tal conforto que se fez crónica. E, como nos “interregnos”, culminares de estados de crise, despontam sempre neutrões oportunistas, o nosso bojo tem sabido expelir para o mundo, nas últimas décadas, vários ínclitos personagens, que Eça e Ortigão designaram um dia como “Eleutérios”, gente que, tendo evidenciado sábia incompetência, era agraciada com postos sempre mais elevados na fazenda real. Salutar doutrina esta, que determina que um primeiro-ministro que tropece antes da meta e não complete o mandato da legislatura seja alçado a cargos de relevo internacional. Para um Eleutério, nenhum cargo é inalcançável: Durão na presidência da Comissão Europeia, Guterres como secretariado-geral das Nações Unidas, e agora Costa no Conselho Europeu… Mas a história recente também conta que o país produz génios para os quais nenhum cargo mundial é sapato suficientemente largo para a grandeza do pé: a estatura de um José Sócrates ou de um Pedro Santana Lopes é de tal munificência que as instituições internacionais não puderam ainda inventar agraciamento suficiente para os acolher.
Era nestes mistérios místicos da natureza humana que eu cogitava absorto, acariciado pela brisa marítima no cume da Arrábida, quando de súbito senti nas narinas abertas uma baforada de fish and chips.

 Jornal de Azeitão, Julho 2024 
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A formiga à chuva

21/3/2025

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“A nova sensação da Internet é um ‘drone’ da Marinha que fez ‘plof’”. Era este o título da notícia d’O Público que, a 18 de Abril de 2014, dava conta da aparentemente pouco auspiciosa estreia do Tekever AR4 Light Ray, o primeiro veículo aéreo não tripulado da Marinha portuguesa na base naval do Alfeite. A segunda tentativa foi bem-sucedida e o então ministro da defesa Aguiar Branco “terá gostado do que viu”, prevendo mesmo um futuro de sucesso para o “drone” militar português.
Certamente que o ministro da altura, agora presidente da Assembleia da República, não antecipou que, quase exactamente 10 anos depois, dois drones AR3 VTOL da mesma empresa Tekever viriam a protagonizar um duplo ataque a estações de radar de alerta antecipado do sistema de defesa estratégica nuclear da Federação Russa, em Armavir e em Orsk, no sul do país. E quase ninguém poderia também prever que, após o mediático falhanço do primeiro lançamento do AR4 nos idos de 2014, um tão profundo manto de silêncio viesse pousar sobre o temerário (ou insensato) sucesso dos AR3 na guerra que opõe hoje a Rússia à Nato por interposta Ucrânia.
Ao desabilitar esses dois radares, o ataque dos “drones” teve como consequência cegar momentaneamente a parte do complexo estratégico nuclear russo que cobre o território iraniano e a base naval norte-americana no Golfo Pérsico. O ministério da defesa ucraniano assumiu de imediato, e orgulhosamente, o feito, mas sem se pronunciar sobre a irrelevância do ataque no que respeita aos níveis táctico e operacional do conflito (os radares – de longuíssimo alcance – não têm qualquer utilidade militar no campo de batalha ucraniano). E também não se pronunciou de todo sobre o facto de a programação e operação dos drones ter sido feita por especialistas militares britânicos, de a tecnologia AI que os conduziu até aos alvos ser norte-americana, e de a sua manufactura ser portuguesa.
Nenhuma destas informações é propriamente secreta ou confidencial. O ataque, as potencialidades dos “drones”, e a nacionalidade dos operadores são descritas em publicações internacionais dedicadas a assuntos militares. Também não é segredo que a fábrica da Tekever se situa nas Caldas da Rainha, que a sua sede fica num escritório partilhado no Largo do Duque de Cadaval, aos Restauradores, e que a empresa é não só fornecedora oficial da Marinha portuguesa, mas também do Ministério da Defesa britânico. Se até eu, que de jornalismo de investigação nada sei, consigo ter acesso a estas informações públicas, por que razão não foi este óbvio protagonismo luso no campo da alta tecnologia militar notícia de abertura de todos os telejornais nacionais no início de Maio passado?
Lê-se na página internet do Conselho Europeu de Relações Estrangeiras, onde se detalham as implicações da doutrina de dissuasão nuclear russa, que “o parágrafo 19c (da doutrina) enuncia que a Rússia retaliará usando armas nucleares contra um ataque convencional que desabilite as suas forças nucleares ou a sua estrutura de comando: esta provisão emula a postura nuclear norte-americana revista em 2018”. Tem sido deixado muito claro, nestes últimos tempos, pela presidência russa, e pelos seus ministros da defesa e dos negócios estrangeiros, que ataques a alvos críticos russos provenientes da Ucrânia que impliquem operação do armamento por parte de intervenientes de países ocidentais não os exima das responsabilidades e das suas consequências. Poderíamos discutir se se trata, por parte das autoridades russas, de uma ameaça ou de um alerta, mas pouco importa: o relevante é que a potencialidade, mesmo que mínima, de um tal acto causar um confronto nuclear de efeitos absolutamente devastadores para toda a humanidade merece estar sempre presente nas nossas consciências e que, para que isso, as nossas consciências não devem ser mantidas em total ignorância.
Temos, portanto, uma empresa portuguesa dedicada ao fabrico de “drones” de longo alcance e grande autonomia, listada como fornecedora oficial do ministério da defesa português que, em parceria com a indústria de defesa norte-americana e com o dispositivo operacional britânico na Ucrânia se encontra envolvida num duplo ataque das forças armadas ucranianas a instalações críticas do dispositivo nuclear estratégico da primeira potência nuclear do mundo. Seria risível o catarro da formiga, não tivesse o assunto os contornos de uma gravidade trágica. Há em Portugal, tradicionalmente, um certo embandeirar em arco com façanhas de gosto questionável e de efeitos imprevisíveis: a estalada fundadora de um filho na sua mãe, uma santa que transforma rosas em pão e pelo caminho destrói o sistema comunitário das irmandades do Espírito Santo, um navegador de dobra cabos da Boa Esperança e bombardeia indianos incautos para obter vantagens económicas, um almirante que concebe um plano para, em aliança com o soberano cristão etíope, tomar Meca e destruir a Caaba (o símbolo mais sagrado da religião muçulmana), o anúncio da chegada do Quinto Império comandado por um brangantino, um rei que declara a independência de uma colónia para evitar o fim do tráfico atlântico de escravos, uma pastorinha portadora de segredos geo-estratégicos... E, pelo meio, uma longa história entretecida de vassalagens às elites imperiais britânicas.
Gostamos de imaginar que vivemos alheados dos males do mundo, num poético pequeno “jardim à beira-mar plantado”, como cantou Tomás Ribeiro. Mas o refrão do “orgulhosamente sós” deixou de capitar há muito, e as guerras “do Ultramar” não puseram um ponto final na nossa costela bélica: participámos na guerra contra a Sérvia, envolvemo-nos na invasão e ocupação do Iraque e do Afeganistão, intervimos na Líbia e no Sahel, e agora, por via das nossas auto-impostas obrigações como membros da OTAN, estamos a ser, “como sonâmbulos”, engajados numa guerra imensamente complexa sem nos autorizarmos um debate infundido por um mínimo de sanidade. Mas, se apelarmos à musa da história, percebemos tudo: a noção de debate são, crítico, estruturado, consequente, é tão estranha ao carácter português como os alimentos o são ao estômago por onde passam. Por isso, estando em causa perguntarmo-nos sobre o bom senso de participarmos em ataques imprudentes a instalações críticas de um país que demonizamos instintivamente, respondemos metendo a viola no saco, deixando correr o marfim e tentando passar entre os pingos da chuva, na esperança de que ela não venha a ser demasiado radioactiva.

O Público, 13 Junho 2024

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​Reparações imBRICadas

4/6/2024

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Soaria bem clamar que “à história o que é da história, à política o que é da política”. Mas, sabemos, a apropriação da história é um dos mais concorridos truques do receituário da prestidigitação governativa. Não me consta que as teses de Antonio Gramsci ou de Mikhail Bakhtin tenham sido consultadas em preâmbulo ao presente processo de revisão da mitologia histórica nacional, cujas fagulhas foram recentemente agitadas pelo nosso estúrdio presidente e parecem estar a incendiar o pequeno nicho da burguesia bem-pensante lisboeta. Um e outro teriam de imediato feito notar que, no que respeita aos discursos auto-expiatórios favoráveis à reparação histórica que propugnam uma reforma radical da mensagem identitária do mito da expansão portuguesa, os seus arautos não se situam propriamente do lado de lá da cerca da “hegemonia cultural”. Não é o “povo” oprimido, excluído e marginalizado que, nos musseques, nas tabancas e nas favelas, reclama reparação, expiação e reescrita da história nacional lusa. Esse “povo”, lá longe, tem uma média de idade 25 anos e não revela preocupação em reavivar memórias do período colonial. O grito pela reparação provém das nossas paternais elites auto-proclamadas defensoras de direitos alheios. Pessoalmente, suscita-me fortes dúvidas a mensagem da redenção civilizacional pela expiação da consciência. Até ao dia em que Marcelo Rebelo de Sousa aceite ou seja forçado a trocar a sua mansão cascalense com uma família alargada da Cova da Moura, ou que os lustrosos académicos pró-reparação aprendam a manejar uma espátula e uma talocha de pedreiro, não vejo como dar crédito à celeuma.

Mas, havendo desejo urgente de reescrever, para efeitos políticos domésticos, a estafada história da glória da nação, então façamo-lo com maior desassombro e ensinemos logo nos bancos da escola primária que, identidade nacional à parte, a razão da continuada existência do estranho parcelamento territorial que delimita o rectângulo português no conjunto geográfico da Península Ibérica se deve, em grande medida, à perenidade da interferência geopolítica das elites anglo-britânicas nos assuntos da Hispânia. Perguntemo-nos se Portugal não será porventura o mais antigo domínio colonial britânico, e se não terá sido aqui que a técnica administrativa da indirect rule foi inicialmente afinada. Os cruzados ingleses saquearam Lisboa antes que Afonso Henriques pusesse um pé no castelo de São Jorge; o fundador dos “Descobrimentos” era mais Henry que Henrique; e, de todos os Braganças, só D. Maria I fez realmente frente aos interesses britânicos, ao acordar com a Czarina Catarina da Rússia a nossa entrada na Liga dos Neutros; não há como explicar as misérias do séc. XX português sem contabilizar a dívida catastrófica do período da Regeneração à banca britânica – dívida que só foi liquidada, diz-se, em 2015. Matéria, diria, para reclamar reparações históricas a Downing Street e a Westminster.

Se nos vamos dispôr a rever colectivamente o passado nacional, e não há mal nenhum nisso, devemos então, para manter um módico de coerência e sanidade, aceitar repensar o presente e reimaginar o futuro. Que eu saiba, o “povo” de cá, de Cevide à Culatra e do Corvo à Paradela, não foi nem tido nem achado no processo de adesão à CEE, nem indagado à boca do Tratado de Lisboa. No discurso oficial de glorificação da União Europeia não consta uma palavra sobre as evidências da dominação política, financeira e económica do sul da Europa pelo Norte protestante, e muito menos um reconhecimento de que a Península Ibérica é tanto o extremo sul do Atlântico Norte como o extremo ocidental do milenar mundo mediterrânico. O projecto “europeu” é, desde a nascença, uma lobotomização ideológica de continuidades históricas e geográficas, seja para sul, seja para leste. A bem dizer, a “Europa” não é um continente, é até menos subcontinente que a Índia: é um anexo estridente e ególatra da grande massa asiática.

Actualmente, perante a transformação evidente da União Europeia em organização vassala dos interesses geoestratégicos da NATO, e da perda da sua função original de instrumento de resolução de conflitos, é legítimo perguntarmo-nos se vale mesmo a pena continuarmos a vender tão barato a nossa soberania aos interesses do atlantismo anglo-saxónico.

Não há um economista honesto que, sem se rir, possa dizer que Portugal é um “país desenvolvido”. Numa curiosa inversão da mensagem de Thomas Moore, que imaginou os habitantes da ilha da Utopia a transitar do estado de barbárie ao estado de perfeição social sem ter de sofrer as dores das desigualdades civilizacionais, os portugueses transmutaram-se de pobres subdesenvolvidos a pós-industrializados, sem terem verdadeiramente experimentado um momento de contrato social rousseauniano. Com um passe de mágica, Bruxelas convenceu-nos que, se e enquanto formos “bons alunos da Europa”, aclaramos a pele, azulamos os olhos e alouramos o cabelo. E, com complacente paternalismo, os “verdadeiros europeus” aceitam-nos no clube e até acedem a vir cá comprar o melhor que temos para oferecer: sol, mansões e pastéis de nata.
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Seria engraçado acordarmos uma manhã e reconhecermos que, náufragos de uma jangada feita de pedra-pomes, nos agarramos irreflectidamente à boia da União Europeia sem repararmos que os seus furos aumentam de tamanho a cada dia que passa. Talvez então nos olhássemos ao espelho e nos perguntássemos por que razão é tabu nacional discutir uma possível adesão à parceria dos BRICS+ como parceiro júnior do “país irmão” e abraçar assim, de forma positiva, a história imbricada das nossas ligações a África, à Ásia e à América Latina. Seria uma maneira mais razoável de proceder a uma reparação histórica que andarmos a gastar hóstias em murmúrios de auto-expiação.
 
Diário de Notícias, 5 Maio 2024
O Público, 7 Maio 2024


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​Dar que Pensar

4/6/2024

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São múltiplas e infinitamente variáveis as motivações dos mais ou menos 250 milhões de seres humanos convocados para, nos 27 países da “União Europeia”, praticar no dia 9 de Junho um ritualizado acto de fé.
Deixo aqui de lado a espinhosa questão de definir a palavra “democracia”, não sem primeiro notar que o filósofo holandês Matthijs van Boxsel a descreveu como a suprema expressão da estupidez humana: o povo, chamado a afirmar uma voz colectiva através do acto eleitoral, dissolve-se, eclipsa-se, desaparece, no exacto momento em que é suposto manifestar-se, porque é substituído no acto pelo eleitor que se encontra sozinho na cabine de voto a defender o seu interesse individual.
Giorgio Agamben, um outro filósofo, desta vez italiano, publicou recentemente um ensaio que dá que pensar. Intitulado “Europa ou a Impostura”, o texto argumenta que quase nenhum dos referidos 250 milhões de indivíduos eleitores se questiona sobre o significado político do seu acto, já que o chamado “parlamento europeu” não é, a bem dizer, um parlamento no sentido em que os parlamentos nacionais o são. O “parlamento europeu” não é um órgão legislativo com poder de produzir leis. Esse poder repousa exclusivamente nas mãos da Comissão Europeia, uma instituição de carácter burocrático que o autor define como uma impostura que se exime ao sufrágio democrático.
Nem poderia ser de outra maneira, já que – como notou o famoso constitucionalista Dieter Grimm -, não existe a bem dizer um “povo europeu” que alguma vez se tenha expresso no sentido de aprovar uma constituição comum. Deste modo, a União Europeia não tem realidade legal e política legítima à face do Direito Internacional, e o “parlamento europeu” não resulta de um verdadeiro poder constituinte. A “Europa”, lembra Agamben, é uma impostura que simula que o “parlamento europeu” é uma fonte do Direito, quando na verdade o poder constituinte foi acaparado por uma burocracia de não eleitos que, com o objectivo de se perpetuar, criou uma entidade pseudo-legislativa com existência fantasmática.
De mil e uma formas, a vida de todos os dias em Azeitão é tocada pela ciclópica máquina de produção de regras e normas que é a “União Europeia”. Como acontece com o governo nacional, também o poder local é excessivamente esvaziado de autoridade legítima e se resume ao papel de veio de transmissão obediente e passivo do poder eurocrático. Esse poder é imensamente complexo e tornou-se demasiado entranhado para podermos imaginar a possibilidade de construir vida política para lá do seu âmbito. Mas, como também nota Agamben, a “União Europeia” é o principal obstáculo à materialização de uma Europa política.
Presos por votar, presos por não votar, lá nos encaminharemos para as cabines de voto a pensar como resolver os nossos problemas pessoais, familiares e comunitários: o fim do dinheiro antes do fim do mês, a espiral interminável da perda do poder de compra, a ausência de luzes no túnel infindável da nossa impotência. Assim como assim, acho mais bonito o acto de fé que é a missa dominical – aí, ao menos, sentimo-nos reconfortados na nossa pequenez pela natureza colectiva da comunhão ritual.
 
 Jornal de Azeitão, Junho 2024
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As fronteiras da torta

4/6/2024

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Falemos de doces. E falemos de tradições. E de invenção. É, penso, incontroverso que a torta de Azeitão, que foi erigida em ícone gastronómico da vila, terá nascido das mãos de Maria Albina, mulher de Manuel Rodrigues, o “cego”, e de sua filha, no início do séc. XX. O aguadeiro Manuel Rodrigues abriu uma hospedaria na Rua Direita, e a sua mulher e filha, ambas de afamado dedo para a doçaria, começaram a cozer as agora famosas tortas de ovo no forno da padaria de João Alface para vender à porta da hospedaria aos viajantes que passavam pela vila. A receita da torta terá origem na vila de Fronteira, no Alentejo, e não custa imaginar que tenha começado por ser servida nas casas ricas da vila, em cujas cozinhas Maria Albina teria trabalhado inicialmente.
Hoje em dia, não há café, pastelaria ou supermercado da vila e arredores que não sirva tortas de Azeitão, e o passa-palavra diário vai alimentando o ranking informal do top ten das tortas “genuínas”. Os critérios degustativos mesclam preferência pessoal e estereótipo social: há as desclassificadas por serem “industriais”, e as preferidas por parecerem “caseiras”. Como quem as fabrica não explicita que ovos usa, e se são ou não em pó, qual a qualidade da farinha e do açúcar, ou qual o método de cozedura ou o nível de higiene da produção, fica à responsabilidade do cliente testar, apreciar, e compartilhar o seu juízo sobre a qualidade da torta. É um processo difuso e em permanente mutação. Pessoalmente, não desdigo da “verdadeira” torta, a do “Cego”, mas na verdade prefiro uma outra, que me é vendida como não contendo glúten e mais baixo teor de açúcar.
Quando falamos de tradições, gostamos de as imaginar como provindo da noite dos tempos, de hábitos e saberes cuja origem se perde em brumas de ancestrais memórias. No caso da torta de Azeitão, pelo contrário, temos uma origem relativamente bem estabelecida e moderadamente recente. Se pensarmos mais genericamente na doçaria portuguesa, parece óbvio que resulta da congregação de técnicas culinárias de origem múltipla e incerta com matérias-primas historicamente disponíveis no território (a farinha, a amêndoa, o ovo, o azeite, manteiga ou sebo) ou buscadas em lugares longínquos (a canela, o açúcar). Que a doçaria portuguesa é muito distinta da vizinhança espanhola, marroquina, ou francesa, é mais que certo, como certo é que o gosto se aprende, consolida e perdura ao longo de décadas e séculos. A torta de Azeitão é uma variante particular de um tipo de doçaria que reconhecemos facilmente como “tipicamente” portuguesa. A sua aceitabilidade, o seu sucesso, advém da consistência química que resulta da mescla da farinha com o açúcar, a canela, e o ovo (e também da ausência da amêndoa na sua composição).
Vale a pena notar que a torta de Azeitão (ou de Fronteira) se encontra no polo oposto ao pastel de nata. A torta é um doce regional que facilmente se acomoda a um gosto nacional. Já o pastel de nata tem uma tipologia e evolução muito distintas. Não se sabe ele se está na origem do custard pie ou se é uma adaptação nacional desse pastel inglês. Mas o seu sucesso internacional está, definitivamente, ligado às heranças do império britânico na Ásia: o interesse do mundo pelo pastel de nata vem do facto de se ter espalhado – como pastel ocidental – no sudeste asiático (Hong Kong, Bangkok, Singapura). A sua origem mítica numa pastelaria de Belém não contradiz a sua natureza de ícone da expansão ocidental no mundo.
E vale a pena notar também que, falando em termos ainda mais gerais, o açúcar, ingrediente indispensável na doçaria nacional – e mundial – é porventura, para o melhor e para o pior, o mais importante contributo histórico de Portugal para a humanidade. O método de produção do açúcar terá sido inventado na Índia e era já conhecido na Europa medieval (sobretudo com usos medicinais), mas a sua produção em larga escala iniciou-se nas Canárias e na Madeira, em finais do séc. XV. A paixão que causou nos europeus levou a que o modelo dos engenhos madeirenses fosse transportado, primeiro para São Tomé, e depois para o Brasil.
Quando como uma torta de Azeitão, mesmo com baixo teor de açúcar, não me consigo abstrair do facto de, como português, ter uma cota, ainda que mínima, de responsabilidade histórica, ancestral, na tragédia secular do comércio de escravos africanos para o “novo mundo”, e na terrível pandemia de diabetes e obesidade que afecta grande parte da população mundial.

 Jornal de Azeitão, Maio 2024
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A arte da observação participante

4/6/2024

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Nos dias finais de 2023 dediquei-me a fazer um levantamento etnográfico nas imediações dos contentores de lixo de Azeitão e arredores. Por efeito de problemas mecânicos e burocráticos do sistema de recolha de resíduos dos serviços autárquicos (aparentemente porque vários camiões avariaram e não puderam ser reparados de imediato), os contentores de lixo deixaram de ser esvaziados com regularidade e todo o tipo de objectos indesejados foi acumulando em seu torno, causando forte impressão visual e olfactiva em quem por eles passava. Não houve qualquer comoção, revolta ou manifestação de desagrado colectiva. Entredentes, aqui e ali, ouvi comentários, geralmente curtos e pouco abonatórios sobre a situação, o que não desincentivou ninguém, claro, de continuar a dar o seu contributo pessoal diário para a acumulação de lixo junto aos contentores.
A listagem, por categorias, dos objectos que se acumularam nesses dias junto aos contentores, em Vila Nogueira, em Vendas, nos Brejos, em Oleiros, ou na Piedade, é longa e não a vou reproduzir aqui. Por outro lado, admito que me foi difícil estabelecer um quadro completo dos actos de reciclagem – de recuperação de objectos descartados – dado o seu carácter furtivo (quem retira de um monte de lixo um objecto que considera não-lixo tende a fazê-lo de forma discreta, para não se tornar objecto de crítica social e ser, assim, “descartado”).
Mas é, ainda assim possível fazer algumas considerações sobre os modos de vida, a variedade dos gostos, a capacidade económica das populações nas várias localidades. Naturalmente, para que a investigação possa ter valor heurístico será necessário proceder de forma mais sistemática e prolongada no tempo – o que implicará a redacção e candidatura de um projecto de estudo a uma entidade financiadora, já que o trabalho amador, não remunerado, é hoje em dia visto como suspeito pela comunidade científica e os seus resultados sejam, por isso, “descartados” como lixo indesejável.
Um dia, talvez, coligirei os resultados do meu levantamento etnográfico junto dos contentores de lixo de Azeitão, e até os poderei publicar caso haja um editor com visão e também previsão de que o público leitor terá interesse no tema.
 
Em antropologia, ao contrário do que se pode pensar, os inquéritos de terreno não se limitam ao inquérito e entrevista de informantes. A chamada “observação participante”, popularizada por Bronislaw Malinowski e pelos seus discípulos britânicos para designar os métodos imersivos de recolha etnográfica, é um termo inicialmente concebido pelo americano Edward Lindeman em 1924. Como método de estudo, a sua história precede a fundação da antropologia: viajantes e exploradores praticaram-no desde tempos remotos. Já o Barão de Gérando escrevia em 1800, no seu Considérations sur les diverses méthodes à suivre dans l’étude des peuples sauvages, que “a melhor maneira de conhecer os índios é tornarmo-nos como eles; e é aprendendo a sua língua que nos tornamos seus concidadãos”. A “observação participante” tem sido erigida em mais que um método de estudo; tornou-se como que uma iniciação mística, uma porta de entrada do antropólogo nos segredos profundos da vida cultural das populações que estuda. Como tal, supõe que se valorize não apenas o conhecimento transmitido verbalmente, mas também – e talvez sobretudo – os saberes e os hábitos colectivos que não chegam à consciência e não necessitam ser expressos através das palavras.
O estudo aturado das técnicas que as populações desenvolvem para se desfazer do dejeto, do lixo, do resíduo, do remanescente, do tornado desnecessário, requer o que o antropólogo Tim Ingold designou como a “arte de prestar atenção”. Estarmos disponíveis para observar, apreciar, examinar, e simultaneamente atentos à nossa própria posição como parte subjectiva do todo em que imergimos, é um importante requisito para a compreensão dos hábitos culturais relacionados com a materialidade dos objectos, e com os processos de selecção do que é de reter e preservar, e o que é de descartar, de abandonar, de excluir, de rejeitar.
As minhas observações dos contentores e seu entorno suscitam uma questão epistemológica fundamental: dada a ubiquidade, variedade e infinitude do lixo produzido pela comunidade azeitonense, que imagino não seja manifestação única no país, é de nos perguntarmos se não estamos perante um acto performativo de natureza artística. Com efeito, o modo como cada habitante contribui individualmente para a modelação de um monte de lixo colectivo implica uma intenção, uma vontade de participar num acto de harmonização escultórica colectiva que – quando, por sorte, os serviços camarários deixam de fazer a sua recolha diária – se revela em toda a sua glória estética. Toda Azeitão pôde, durante algumas semanas, apreciar – gratuitamente – uma muito interessante exposição de arte popular espontânea que, no meu ver, competiu dignamente com as melhores mostras de arte plástica internacional.
E eu orgulho-me de nela ter participado activamente, fiel aos requisitos do método da observação participante em antropologia.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2024
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Redução a pó

4/6/2024

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 Habituei-me, nestas páginas, a reportar instantâneos de Azeitão, vila, freguesia e região; a relatar impressões sobre rituais do presente e memórias do passado, a partir do que vejo, ouço e leio.
 
Vou procurando acompanhar, tal astronauta, as labutas, as festividades, e os diz-que-disse de quem por cá vive, por cá passa e, por vezes, quem trespassa. O casario, as pedras, árvores e caminhos têm histórias para contar, e faço-me disponível para os observar e tentar compreender. Diverte-me inquirir os sinais fugazes de passados longínquos, que se manifestam em coisas que se dizem, em pedras que se preservam, e espaços que se sacralizam. Séculos, milénios, de vidas vividas, aspirações, esperanças e desenganos, engajam-nos, inspiram-nos e assombram-nos como fantasmas imateriais.
 
Trazê-los à vida e dar-lhes sentido, convocando-os pela palavra, é ajudar a dar-nos a nós mesmos sentido.
 
Ao admirar a serra, ao apreciar o arvoredo, e ao perscrutar os vários estratos da mancha urbana construída, cismo frequentemente sobre o que restará do passado e do presente no futuro. Há por aí pedras seculares que nos prometem perseverar caso a mão da natureza ou da iconoclastia não as derrubem abruptamente. Há árvores e geografias que, tendo muito presenciado, se mostram disponíveis para continuar sendo testemunhas mudas e paradas do fervilhar da vida em sua roda. E há provérbios e narrações que, escritas ou contadas, nos irão sem dúvida sobreviver. Mas, e tudo o mais? Quanto do que julgamos hoje ser tão importante e valioso estará cá depois de depois de amanhã?
 
O século XXI não reverteu, antes reforçou, a natureza efémera do que marcou a acção humana no século anterior. Somos muitos, muitos mais do que éramos antes, a reclamar o direito a bens materiais, e a um módico de conforto. Uma exigência colectiva que a ideologia do consumo de massas abraçou e exponenciou. O tempo da contemporaneidade – do hoje – é o da produção imparável de lixo – que é o estado final dos desejos, aspirações, produções, aquisições, transações de coisas materiais. Um carro durará 15 anos com um pouco de sorte, uma casa feita de cimento 75. O plástico degrada-se a partir dos 7 anos. O asfalto soçobra aos 30. As telhas – se não forem em placa sanduiche – durarão muito mais, mas quem quer um telhado sem casa por baixo?
 
De património físico, os nossos antepassados deixaram-nos muito pouco, para além do que os ricos e poderosos quiseram que ficasse: paços senhoriais celebrando a assimetria social, igrejas opulentas consagrando o poder do sacerdócio, caminhos consolidados com o suor e o sangue do povo e das muares. Deixaram-nos também intocado o gentil recorte da serra da Arrábida. E nós, que vamos deixar para quem – se é que alguém haverá – nos sobrerrestará? Vidros partidos, estradas esburacadas, paredes arruinadas pela degenerescência do cimento, microplásticos omnipresentes, invisíveis a olho nu, e uma serra ferida de morte por cimenteiras e pedreiras que – como o carcinoma explosivo – se alastram pelas encostas e reduzem a pó a pedra do tempo dos dinossauros e das conchas marinhas. E, por seu lado, a voragem das redes sociais, o tumor da internetização da comunicação humana, reduzirão sem dúvida a pó algorítmico as memórias, os hábitos, os costumes, os saberes que herdámos de quem nos precedeu neste pedaço de superfície terrena. O símbolo maior do mundo de hoje não é, como alguém escreveu, o deleite, mas sim o “delete”.
 
Jornal de Azeitão, Outubro 2023​

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Divagações termais

4/6/2024

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Não me consigo lembrar do nome do café fronteiro ao Clube Sesimbrense (agora Grémio), no Largo José António Pereira, em Sesimbra. Era ali que o Rafael Monteiro tomava o seu café, quando não estava a cirandar pela vila ou por Santana. A barba longa albergava migalhas das torradas de vários dias, e os dedos que seguravam o cigarro sem filtro tinham uma tonalidade castanho-nicotina. Não havia segredo que ele não conhecesse, nem opinião que não tivesse, pelo menos no que a Sesimbra concernia. Foi ele que descobriu, na Quinta da Aiana de Baixo, uma lápide de seis medalhões igual à que ostenta a fonte de Aldeia Rica, em Oleiros, e a uma outra, proveniente da Quinta da Arca de Água, em Alferrar, Setúbal, que entretanto foi vendida por um sobrinho do visconde de Montalvo ao coleccionador Jorge de Brito nos anos sessenta.
A Fonte de Aldeia Rica é contemporânea da Fonte dos Pasmados, cuja construção, ordenada pelo juíz de fora Agostinho Machado de Faria em 1787, esteve envolta em polémica. Originalmente, a fonte situava-se num pátio interior da Quinta da Nogueira, que hoje é das Caves José Maria da Fonseca, mas o “Pombal Azeitonense”, como o juíz ficou conhecido, ordenou a sua deslocação para o espaço público, tendo a população trabalhado “de noite e em dias feriados não auferindo qualquer remuneração”. A obra causou controvérsia, tendo o proprietário da quinta apresentado queixa contra o juíz por a deslocação ter “causado graves prejuízos para o cunhal e muro da casa nobre da Quinta” e “o dito ministro” foi denunciado pelo “malévolo animo” de ter explorado “o suor e trabalho dos pobres”, e “para o efeito de que não faltem (...) são presos e manietados todos aqueles que faltem”.
Ainda assim, o chafariz causou tal impressão de pasmo na população que daí resultou o seu nome. Já quanto à “lenda” que conta que “quem das suas águas beber não deixa de Azeitão regressar”, creio que devemos dar certo desconto, já que essa parece ser uma frase feita usada para caracterizar um sem-fim de fontes e chafarizes em Portugal e no mundo.
Hoje, estão secas ou insalubres muitas das nascentes, fontes e olhos de água de onde antigamente fluíam as águas subterrâneas das serranias da Península de Setúbal. E, no entanto, elas foram a um tempo apreciadas e louvadas pela sua qualidade. A de São Simão, a da Quinta do Anjo, a cisterna do “Castelo dos Mouros” em Coina Velha, até a da Califórnia, na praia de Sesimbra... Uma das mais desconhecidas e misteriosas é a Fonte da Rocha, anichada na encosta sul do Vale dos Barris, perto de Palmela e ainda mais perto do Convento das Irmãs da Apresentação de Maria. Foi, em tempos, uma fonte férrea, com efeitos curativos. Em Portugal são raros estes pontos de água, de características termais. Quase nada se sabe hoje da história da Fonte da Rocha, vítima da perda da capacidade de retenção das águas de uma Serra da Arrábida cada vez mais árida.
As águas férreas são especialmente indicadas para tratar problemas da circulação sanguínea, curando anemias e restituindo o equilíbrio das plaquetas. Pelo que aprendi ao visitar a fonte de Vale da Mó, nas faldas do Luso, era hábito os pastores procurarem nascentes férreas porque tinham um efeito miraculosamente reconstituinte para o gado. Não custa imaginar que a Fonte da Rocha tivesse sido um ponto de paragem de rebanhos de ovelhas e cabras – como acontecia em Vale da Mó, antes da expulsão das ordens religiosas no final da monarquia, quando as irmãs ursulinas doaram à aldeia os terrenos do mosteiro e o célebre químico francês Charles Lepierre analisou as águas da fonte e determinou a sua qualidade como água termal.
Não provei a água da Fonte da Rocha, no Vale dos Barris, mas provei a da Fonte do Vale da Mó. Posso assegurar que sabe muito mal, e que a sua cor me fez lembrar os dedos do Rafael Monteiro, de saudosa memória.

Jornal de Azeitão, Setembro 2023​
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