MANUEL JOÃO RAMOS
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O estatuário luso

27/8/2020

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Dezembro de 1997: Lisboa preparava-se para celebrar a sua reentrada no circuito da globalização; homens e máquinas afadigavam-se nas obras da futura Expo98. Simultaneam­ente, do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, desenrolava-se o episódio final daquela que poderia ser considerada a mãe de todos os derrubes de estátuas. Após um ano de manifestações de protesto, as autoridades do Bairro de Queens decidiram proibir finalmente a ereção de uma portentosa estátua de 15 metros na frente ribeirinha que havia sido criada pela escultora Audrey Flack, graças a uma subscrição pública lançada pela comunidade luso-americana. A estátua de bronze pretendia celebrar a fundadora simbólica do bairro, a rainha Catarina de Bragança que casou com Charles II de Inglaterra, levando no seu enxoval chá, marmelada, garfos, Bombaím e Tanger. Foi o seu cunhado, o Duque de York e futuro sucessor da coroa, com o título James II, que, ao comprar Nova Amsterdão aos holandeses da Geoctrooieerde Westindische Compagnie (GVC), rebaptizou a cidade como Nova Iorque e deu a uma parcela do novo domínio inglês o nome de Queens, em homenagem à consorte lusa, e católica, do irmão.
A justificação explícita para “derrubar” a estátua antes mesmo de ela ter sido implantada foi que Catarina havia sido membro do conselho de administração da Royal African Company, durante séculos protagonista do tráfico de escravos de África para as colónias britânicas no continente americano. Foi uma pequena primeira vitória para os movimentos iconoclásticos anti-racistas norte-americanos, que curiosamente coincidiu com a nomeação de Trump como the Prince of Queens, pela presidente do bairro. De pouco valeram os argumentos da escultora, que defendia que a figura era evidentemente multirracial, dado que Catarina, sendo portuguesa, deveria ter a pele escura; e que os seus caracóis seiscentistas até evocavam rastas africanas. A estátua veio a ser destruída anos mais tarde numa fundição de Boston. Sem que se saiba bem porquê, uma versão miniaturizada da estátua despontou timidamente em data incerta e sem cerimonial público num recanto arredio do Parque das Nações, de onde ainda hoje mira algo atónica o Mar da Palha e a Ponte Vasco da Gama.
A intensa polémica nova-iorquina em torno da estátua de Catarina de Bragança não suscitou à data notícia de relevo em Portugal. Não pôde, portanto, ter motivado uma desejável discussão pública sobre a parte cruel da herança de Portugal no mundo: o tráfico e escravização de milhões de africanos para alimentar as manufacturas de açúcar, a mineração de ouro e produção de café – o casamento inglês de Catarina selou simbolicamente a passagem de testemunho dessa herança, e deu início à hegemonia britânica nesse lucrativo empreendimento intercontinental. Qualquer discurso crítico que menorizasse os feitos lusos em época de comemoração dos Descobrimentos teria de ser colectivamente silenciado e (auto-)censurado.
Um paradoxo salta à vista: no momento em que o país procurava projectar-se no caleidoscópio mundial, fazia-o concentrando-se sobretudo no auto-elogio histórico e alheava-se dos movimentos sociais contemporâneos que dilaceravam, e continuam a dilacerar, os países receptores do tráfico intercontinental de escravos. Exaltavam-se os mares fechando convenientemente os olhos ao sangue africano que por eles correu.
Não há que julgar o à-vontade com que por cá se apagam memórias e silenciam controvérsias. É assim que funcionamos e há razões para desconfiar da eficácia dos decretos que se propõem dissolver hábitos atávicos seculares. Mas, para fomentar uma relação salutar com a história e a política há que estar disponível para interrogar e para tentar compreender as raízes do nosso oblívio militante e do nosso pânico face à eventualidade de crítica.
A total ausência de debate crítico em Portugal sobre o estranho episódio da proibição da estátua de Catarina em Queens evidencia o localismo e a pobreza discursiva das disputas identitárias a que temos assistido recentemente. E, no entanto, é precisamente porque ela não suscita posicionamentos acalorados em Portugal que merece ser trazida para o centro da discussão, na medida em que redefine o contexto dos argumentos e confere profundidade temática ao problema que é reorganizar memórias históricas e procurar compreender e aproximar pontos de vista divergentes. Penso que a ninguém ocorre espichar, derrubar ou defender a Catarina miniaturizada do Parque das Nações. Pois que a atenção se concentre, não necessariamente na estátua em si, mas nas razões históricas e culturais que nos levam a ignorá-la completamente.
A censura do silêncio perante a crítica construtiva pode ser devastadora. É fácil citar vários episódios públicos que contam sempre a mesma história, com o mesmo desenlace: ao contrário da provocação gratuita que suscita emoções fátuas, a expressão de um pensamento crítico é habitualmente recebida com desconfiança e respondida com silêncio. O silenciamento de vozes divergentes, de visões alternativas e de posições fora da norma é um hábito arreigado em Portugal, ao qual quem se encontra em situação de poder decidir recorre sem nunca pestanejar.
Para justificar tal recusa ou incapacidade de debate crítico, cita-se com demasiada frequência a herança do período salazarista, como se ele tivesse surgido ex-nihilo e tivesse havido um antes onde ele teria desabrochado sem censura ou continência. Um cético poderia, no entanto, lembrar que as guerras liberais oitocentistas e o vórtice autofágico da Primeira República pouco mais foram que momentos caceteiros, que em nada lustraram pergaminhos de intelectualidade. Por trás deles estão três séculos de inquisição que causaram no país um trauma indelével e moldaram o modo como nos relacionamos ainda hoje. O Santo Ofício promoveu e generalizou a denúncia sistemática, a opressão e o silenciamento, a discricionariedade sem limite. Induziu um hábito colectivo arreigado: o da censura pelo silêncio e o medo da interrogação. Parafraseando Pe. António Vieira, diria que a Inquisição foi o nosso estatuário:

“Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
​

Faz-se hoje moda provocar soezmente e bater no peito pela defesa de identidades reinventadas. Mas este modo de falar e de fazer não conta como apelo ao diálogo, aniquila-o. Mais são que derrubar ou defender estátuas é não desistir de esculpir consciências. Porque, ao fim e ao cabo, os provocadores cortejos de extremistas mascarados de branco (a esconder a tez morena) frente a organizações anti-racistas, assim como os apelos ao derrube de uma (hedionda) estátua justificados por espúrias acusações de esclavagismo ao Pe. António Vieira são, antes de mais, embaraçantes manifestações de ignorância do que um bom debate pode ser e do que uma forte crítica pode valer.

Publicado n'O Público, 20 Agosto 2020.
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A Serra-catedral

27/8/2020

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O mundo lá fora dilacera-se entre variegadas investidas das políticas identitárias contra os ideais liberais da representação democrática, suportadas por sedes populistas e inclinações autoritaristas. A milésima metamorfose do capitalismo procura, pela calada, tirar proveito de crises existenciais declaradas ou previstas – corrupções, poluições, migrações, propagações virais e redes digitais. O mundo lá fora parece profundamente desequilibrado.
O ínfimo refúgio bucólico que é a Serra da Arrábida conserva – por enquanto, pelo menos – o poder encantatório, se não de nos fazer olvidar o mundo em desequilíbrio, de diminuir em muito o seu domínio sobre as nossas consciências. Ajuda, nesta empresa, ler Frei Agostinho da Cruz e Sebastião da Gama, dois poetas separados por quatro séculos, mas unidos pelo misticismo religioso e pela branda paisagem da estreita faixa arrabidina.
 
Escrevia o primeiro:
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano duma banda
E doutra já salgadas as do Tejo.
 
E o segundo respondia:
A Serra é catedral
Onde o órgão-silêncio salmodia.
 
As horrendas agressões que a sangram e desfiguram – a cimenteira de um lado e as pedreiras do outro, o casario informe que mastiga as suas bordas e brota no seu mato, o asfalto que lhe rasga as entranhas – enfraquecem mas não lhe extinguem o potencial contemplativo e a força refrigéria.
A insanidade humana deixa impunes e torna irreversíveis os actos assoladores de quem se arroga o direito de os cometer. Mas a serra absorve-os, dissolve-os e perdoa na sua brandura os algozes. A cimenteira injectada no Outão deveria ser encerrada, mas os poderes renovam-lhe a licença por mais umas décadas? Seja. A pedreira que, por gesto iníquo a Casa de Palmela concedeu nas traseiras do Calhariz continua a comer a montanha? Seja. O Palácio dos Duques de Aveiro salvo da demolição e salga na voragem do processo dos Távoras sobreviveu séculos para se plasmar agora em “hotel de charme”? Seja. O extraordinário convento arrabidino arruinou-se nas mãos de uma seita de origem coreana e é agora pousada disfarçada de uma fundação gestora do dízimo dos casinos macaenses? Seja. Os japoneses do Agar-Agar saquearam todo o coberto submarino que fazia da costa sul da Arrábida um dos mais preciosos berçários piscícolas do Atlântico Leste? Seja.
Na sua bonomia, indiferente à mesquinhez das coisas humanas, a serra-catedral tolera, perdoa, sorri – mesmo se lhe topamos, ou imaginamos topar, trejeitos tristes nos seus cantos silenciosos. A dança da orografia garante-lhe por mais uns milénios não apenas solidez mas mesmo um ligeiro incremento do alçado – ao fim e ao cabo, a serra ergueu-se das águas, empurrada pela força das placas tectónicas, e não se entrevê o seu afundamento em futuro de médio prazo.
E se a sua cobertura vegetal única de cotovelo mediterrânico enfaixado no Atlântico um dia se perder por incêndio malicioso ou catastrófica mudança climática? Será triste ver a linha do seu cabeço descabelada, mas ainda assim a catedral continuará a ser catedral, até ao dia em que os últimos fiéis deixem de a frequentar e de nela buscar refúgio do mundo lá de fora – que seja para aí rezar em desespero por uma qualquer salvação temporal, ou mais singelamente para nela contemplar as silhuetas inescrutáveis da eternidade.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2020

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