MANUEL JOÃO RAMOS
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A Magia de coina

3/4/2022

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Há, sobre o conjunto das cidades, vilas e aldeias portuguesas, um tesouro de curiosas elucubrações saídas da pena de corógrafos locais que abnegadamente especulam, no espírito filológico de Giambattista Vicco, sobre o porquê das várias toponímias locais e fabricam explicações fantasiadas sobre as suas origens. Tenho por hábito ler estes tratados amadores, com admitida inveja da liberdade criativa e do enciclopedismo caoticista que anima quem os escreve. À sua maneira, são actos de prestidigitação intelectual que, como num espectáculo de magia, despertam no leitor um estranho enlevo, o de querer ser convencido do que suspeita ser impossível: acreditar que a assistente do mágico está a ser serrada a meio, sabendo que não o está a ser, não é muito distinto de acreditar que Ulisses fundou a cidade de Lisboa que não fundou.

Os exemplos desta inventividade etimológica não só se multiplicam, de norte a sul do país, e do interior à costa, como se correspondem e dialogam entre si. As correspondências fonéticas entrelaçam-se com evocações pseudo-históricas e imaginações arqueológicas, em fantásticos cenários onde celtas, iberos, fenícios, romanos e árabes são liberalmente convocados para dar conta do rol de topónimos cujo sentido primordial não conseguimos captar. Imaginamo-lo enterrado sob o pó da passagem dos tempos, enclausurado por trás de muros linguísticos, esvanecido pela luz dos tempos presentes. E, sabendo que os meios de prova são praticamente nulos, gostamos ainda assim de crer nos devaneios dos corógrafos.

A região da Arrábida tem, neste cômputo, a sua quota-parte de especulações etimológicas. Desde logo o nome da serra, árabe sem dúvida, porque não é preciso duvidar. Setúbal, celta romanizado claro. Sesimbra, humildemente originária do zimbro, fosse ele árabe ou latino. Azóia, Alfarim e Aiana, árabes também. Mas, e o Meco? Vá-se lá saber. Azeitão, árabe certamente. Palmela, do latim “pequena palma”. E Coina?

Coina é um topónimo anatematizado por várias gerações de gracejos juvenis. A Coina actual, a norte da Quinta do Conde, é banhada por uma ribeira do mesmo nome, hoje praticamente invisível, que desagua num braço do Tejo, junto ao Barreiro. Foi conhecida como Coina-a-Nova, para a distinguir – claro – de Coina-a-Velha. Desenvolveu-se como centro industrial que aproveitava a navegabilidade da ribeira para expedir a produção da Real Fábrica de Vidros Cristalinos, que D. João V aí mandou instalar. Por sua vez, Coina-a-Velha era o nome de uma povoação sobranceira ao Porto de Cambas, ponto a partir do qual a ribeira, cuja nascente é a Serra do Risco, se tornava navegável. Em finais do séc. XVII, foi rebaptizada com o nome de Aldeia de Nossa Senhora da Piedade, hoje simplesmente Aldeia da Piedade, por iniciativa do então proprietário da Quinta das Donas, Diogo da Silva de Carvalho.
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No vizinho Casal do Bispo, fronteiras à ermida seiscentista de São Pedro, localizam-se as ruínas de um antigo castelo, diz-se de origem árabe, destruído em data indeterminada após a morte de Dom Sancho I, que teria feito, com os de Sesimbra e Palmela, parte da linha defensiva muçulmana da península de Setúbal. Aí, também, foram encontrados vestígios de um povoado pré-histórico. Chega-se lá através da “estrada dos romanos”, uma estreita via que parte do cruzamento da estrada Azeitão-Sesimbra com a que leva, por Casais da Serra, ao Portinho. Esse seria o Castelo de Coina, cujo nome tem sido objecto de esparsas indagações, que repetem sempre a mesma explicação: Coina nasceu como corruptela – culpa dos árabes? – do topónimo latino Equabona (ou seria Aquabona?). Equabona vem referida no Itinerário de Antonino, do séc. III, como estação da estrada que ligava Olisipo a Ebora, por via de Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal). Não há qualquer referência precisa à sua localização, nem qualquer indicação de como ou quando Equabona se transmutou em Coina. Deste “castelo dos mouros”, subsistem ainda sinais de muralhas e torres, e de uma cisterna. O corógrafo oitocentista Joaquim Rasteiro reporta sobre o castelo uma versão local de uma lenda medieval de tons moralistas: o castelo teria três quartos subterrâneos, um já descoberto (a cisterna) onde eram depositadas as armas, e outros dois – um com ouro e outro com peste - que ninguém se atreve a explorar com receio de, ao procurar o ouro, encontrar a peste.
O leitor não pode deixar de se maravilhar com a audácia dos corógrafos que, quais prestidigitadores, serram a meio as palavras modernas para expor o ouro dos seus sentidos originais, sem receio de lá encontrar a peste do absurdo.

Jornal de Azeitão, Fevereiro 2022
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