MANUEL JOÃO RAMOS
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Prendas da casa

30/9/2020

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Contava Raúl Brandão, n’Os Pescadores, que nos povoados pesqueiros ao longo da costa portuguesa, as mulheres fiavam e remendavam as redes, transportavam e vendiam o peixe. Mas, lembrava, não no Algarve: aí, a mulher era a prenda da casa; acumulava colares e brincos de ouro que empenhava depois para garantir alimento nos meses de míngua, e não trabalhava senão para manter imaculada a casa. Esta condição, que ele descreve magistralmente a propósito da sua passagem por Olhão, alterou-se profundamente ao longo do século XX, quando a mão de obra feminina se revelou vital para o incremento da indústria conserveira de atum, cavala e sardinha.
Também em Sesimbra as mulheres tendiam a manter-se apartadas das tarefas directamente ligadas à pesca, e eram elas a governar a casa. Mas, como no Algarve e em Setúbal, foram elas o principal recurso operário da florescente indústria conserveira que durante boa parte do século passado alimentava o mercado nacional e internacional. A elas cabia o amanhar, o limpar, o descabeçar, o cozer e o acamar das sardinhas nas latas; as tarefas masculinas nas fábricas eramç além do ofício de soldar as latas, o transporte e a arrumação do peixe que chegava das múltiplas armações que pontilhavam a costa arrabidina, e cujas estruturas arruinadas ainda se podem lobrigar nas várias covas e enseadas, da Azóia a Galapos. Mas, antes e depois da febre das fábricas de conserva que os industriais franceses introduziram em finais do séc. XIX – a Bela Vista, a Primorosa, a Pinto, a dos Gatos, do Chora, a Lusitana, a Francesa... -, era ponto de honra das mulheres dos pescadores não trabalharem, pelo menos fora de casa.
Nos anos setenta e oitenta do século passado, o aventureirismo dos pescadores garantia sem problemas este desafogo: quando começou a escassear o peixe na costa da península, aumentou-se o calado dos barcos e o que antes era impensável – a faina no alto mar – tornou-se rotina: dos mares de Sesimbra, Cascais e Peniche, a pesca alargou-se então para os bancos atlânticos do Gorrinche, das Canárias e da costa mauritana, atrás sobretudo do peixe-espada negro e do chicharro, porque agora o peixe apanhado podia vir refrigerado em gelo miúdo. A vida a bordo era inclemente: campanhas de quinze a vinte dias nos mares longínquos, trabalhando noite e dia em conveses descobertos, sem mais que breves descansos diários de duas horas em catres instalados paredes meias com as máquinas e os depósitos de fuel. Distrações eram uma miragem: o calor efémero das prostitutas de Safi ou Agadir, a sorrateira troca de garrafas de aguardente por barras de haxixe, o contrabando de óculos escuros e ténis canarinos, e sobretudo a esperança de regressar à vila para descansar alguns dias, antes da retoma da faina marítima. A parte – o soldo entregue após a venda na lota - era entregue à mulher e ala para o café e conviver com as outras companhas ao ritmo das imperiais esvaziadas. Comum era ver as mulheres irem reclamar os maridos à hora do jantar: no mar, mandava o arrais, em terra governava a mulher. Tanto mais que as saídas para o mar, que antes duravam um a três dias, passaram a ditar ausências muito mais prolongadas.
Nada desta vida passada indica, no entanto, que a condição das relações matrimoniais e laborais era fixada na pedra, ou que o trabalho na indústria conserveira tenha sido um momento sem par na história das mulheres de Sesimbra. A decadência da pesca e a expansão do turismo de veraneio na vila ditaram o regresso das mulheres da comunidade ao trabalho salariado. Mas já antes, no quarto final do séc. XVIII, por exemplo, quando a estamparia de tecidos de chita se lançou na região com a criação, pelo Marquês de Pombal, da Real Fábrica de Chitas de Azeitão, no edifício quinhentista que antes fora propriedade dos proscritos Duques de Aveiro, era encargo das mulheres de Sesimbra o fiar do algodão para alimentar os teares azeitonenses.
 

Jornal de Azeitão, Setembro 2020
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PEXITOS

9/7/2020

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Fotografia de Luis Carlos Chagas Rodrigues (2006)
É (ainda) comum ouvir às gentes “do campo” arrabidino a expressão “pexito” para identificar um habitante da vila de Sesimbra. É um termo popular que realça, senão antagonismo, pelo menos uma certa diferenciação tradicional entre duas identidades locais.
A tradição popular é um bicho estranho. Passa de geração em geração sem suscitar dúvidas, mesmo quando o seu sentido se fragmenta e a compreensão se vai perdendo. Umas vezes é renovada, outras esquecida. Mas também acontece que os enigmas que nela se acumulam ganhem, com o tempo, o curioso direito de nela subsistir sem ser questionados ou reinterpretados. A tradição é reportada e revivida sem despertar dúvidas: conta-se assim ou faz-se assado porque sim. A falta de curiosidade em relação à razão de ser de um enigma torna-se ela própria parte integrante da tradição.
Tomemos como exemplo o caso da lenda da origem do culto do Senhor Jesus das Chagas, padroeiro da vila de Sesimbra. Não obstante algumas variações pontuais, a história contada pouco tem mudado nos últimos séculos:
 
No período da reforma anglicana, em início do séc. XVI, em que a destruição das imagens dos santos foi ordenada por Henrique VIII, a sua mulher procurou preservá-las colocando-as em caixotes e lançando-as ao mar. Entre elas, contava-se a imagem de Jesus que veio a aparecer milagrosamente erigida sobre a Pedra Alta, no areal de Sesimbra. No entanto, faltava-lhe um braço e nenhuma das tentativas de o substituir vingou.
Certo dia, uma velha que recolhia madeira na serra para a sua lareira encontrou um tronco, possivelmente de zimbro, que ao arder sem se queimar revelou ser o braço que faltava à imagem de Jesus.

 
É estranha a inclusão, na lenda, da imagem de Jesus no catálogo das imagens de santos a destruir pelos iconoclastas ingleses. Seria apressado presumir que ela se deveu a uma deficiente compreensão, por parte dos católicos sesimbrenses, do sentido das reformas protestantes do norte da Europa. Como não podemos chegar a saber o porquê da inclusão, fiquemo-nos pela constatação de que tal inclusão não é problemática para quem conta e ouve a lenda.
Que a imagem tenha aparecido sem braço e que este tenha sido descoberto, não no mar mas na serra, e por uma velha, também não causa perturbação nem origina qualquer explicação – apesar de ser óbvia a analogia com a sarça ardente do episódio da epifania de Moisés na montanha. É, tal como a própria aparição milagrosa da imagem na Pedra Alta, um enigma que se quer enigma – um mistério, propriamente dito. Podemos, claro, imaginar que a velha representa uma figura de curandeira ou mesmo de parteira, dadas as propriedades farmacológicas que eram antigamente atribuídas ao zimbro, mas a verdade é que o episódio não requer interpretação por parte de quem o relata ou o escuta.
A lenda é contada e revivida em Sesimbra durante a festa e procissão do Senhor Jesus das Chagas a cada dia 4 de Maio, dia em que a velha encontrou o braço na serra (este ano, pela primeira vez, celebrada à porta fechada, devido à pandemia). Não requer interpretação nem explicitação. Mas, como o gato que se esconde com a cauda de fora, relembra todos os anos que a imagem do padroeiro é compósita: se o corpo é de origem marítima e migratória, o braço é de local e serrano, e é nele que se concentra a sua força taumatúrgica. O braço enxertado, tal como a distinção popular entre “pexitos” e “gente do campo”, conta uma história que não necessita ser explicitada para ser entendida. Um amador de história local pode, ainda assim, suspeitar que a lenda sesimbrense evoca uma relação secular problemática entre dois modos de produção e de vida que, ao longo de séculos, marcaram a rivalidade entre Azeitão e Sesimbra e acabaram por levar, primeiro, à desanexação da freguesia de São Lourenço do município de Sesimbra (em 1729) e depois, por irracionalidade administrativa do liberalismo oitocentista, à sua diluição no município de Setúbal (em 1855).
 
 Jornal de Azeitão, Julho 2020
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    Manuel joão ramos

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