MANUEL JOÃO RAMOS
  • Home
    • English >
      • Blog
      • Publications
      • Graphics
      • Videos
      • About Me
      • Contact
    • Português >
      • Publicações
      • Arte Gráfica
      • Vídeos
      • Sobre Mim
      • Contacto
      • Politica de privacidade

Efigénia, santa africana

18/9/2022

0 Comments

 
Picture
“Tradição cultural” é uma expressão comum e muito desgastada. O seu sentido deriva, ele próprio, de uma tradição cultural. Uma vez forjado, pela pena da antropologia oitocentista para qualificar a permanência temporal de usos e costumes, e em oposição às noções de modernidade e progresso, o seu sentido raramente foi sujeito a escrutínio ou revisão. É certo que o historiador Eric Hobsbawm introduziu em 1983 o conceito de “tradições inventadas”, para descrever situações em que novas práticas ou objectos são introduzidos numa dada comunidade reclamando uma continuidade ficcional com práticas ou objectos passados. Esta inovação veio provocar uma brecha na visão linear que opunha “tradição” e “modernidade”. Mas ainda assim, porque o enfoque de Hobsbawm era o debate sobre os processos de modernização, a essência da “tradição cultural” permaneceu intacta e inquestionada.
A ideia de “tradição cultural” foi essencial na criação de todo o aparelho legislativo e ideológico que a UNESCO veio a designar como “património intangível”. Não é que este equivalha àquela, mas entende-se que os processos de patrimonialização – de preservação induzida pelas autoridades estatais – se fundamentam na existência e na bondade das tradições culturais. 
Mas não será que as tradições estão sempre a ser (re)inventadas, e que a sua realidade se esfuma apenas quando é consciencializada? Se assim for, a patrimonialização cultural corresponde à sua sentença de morte. Há alguma razão para pensar que assim é, sobretudo quando tais processos de patrimonialização se tornam elementos de estratégias comerciais, muitas delas de promoção política do consumo turístico.
Os casos mais evidentes, em anos recentes, têm sido as candidaturas ao estatuto de património intangível (ou imaterial) da humanidade, da UNESCO, em que o dito “património intangível” se impôs como homónimo politicamente correcto, e comercialmente apelativo, da velha expressão “tradição cultural”. Declarar o fado, os cantares alentejanos ou o “saber fazer” trouxas de ovos como “património intangível” não serve para preservar tradições, mas para as ossificar e as subjugar à indústria turística.
Vem isto ao caso das minhas recentes pesquisas amadoras em torno do queijo de Azeitão, e sobretudo da curiosa inovação que é a produção, ainda experimental, de queijo “de Azeitão”, feito a partir do leite de cabra serpentina, na Quinta de Camarate. Já aqui referi (num texto publicado em Maio passado) o misterioso queijo das cabras serpentinas. Mas deixei de fora um dado curioso, que me tem suscitado algumas interrogações históricas admitidamente especulativas. 
O rebanho de cabras serpentinas (i.e., de Serpa) que produz o almejado leite cru vive e pasta numa pequena quinta à entrada de Setúbal. Ora, essa quinta tem um nome surpreendente: Quinta de Santa Efigénia. Digo surpreendente porque a memória desta santa é muito rarefeita em Portugal. Existe, claro, uma igreja de Santa Efigénia no Porto e outra em Penela. Um dos altares da igreja de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, é dedicado a Santa Efigénia e a Santo Eslabão. Outras ocorrências do seu culto são ainda mais esparsas e apagadas: uma pequena imagem de Santa Efigénia em terracota no Museu Municipal de Portalegre; duas estatuetas carmelitas representando São Eslabão e de Santa Efigénia na igreja do Carmo, em Faro. E pouco mais... No Brasil, pelo contrário, Santa Efigénia é muito popular desde o início do séc. XVIII, altura em que foi construída a igreja a ela dedicada em Ouro Preto, e em que se começaram, sob o seu patronato, a estabelecer diversas irmandades de escravos alforriados. Santa Efigénia foi uma princesa abissínia (ou, segundo outras fontes, núbia), convertida pelo apóstolo São Mateus; por seu lado, Santo Eslabão, rei de Axum no séc. VI, foi grande promotor do cristianismo em ambas as margens do Mar Vermelho. O culto destes santos, assim como o de São Benedito, foi um dos principais instrumentos da Igreja Católica no Brasil para converter os escravos africanos, em particular através de obras hagiográficas como: Os dois atlantes de Etiópia. Santo Elesbão, Imperador XLVII da Abissínia, advogado dos perigos do mar & Santa Ifigênia, Princesa da Núbia, publicado pelo frade carmelita José Pereira de Santana, entre 1735 e 1738.
A referência ao nome de Santa Efigénia numa quinta à entrada de Setúbal mereceria estudo histórico. Dadas as temperaturas estivais, optei por não o levar a cabo, limitando-me a notar algumas particularidades que poderão, ou não, ter alguma ligação entre si. Tal como aconteceu no Brasil, o culto dos santos Eslabão e Efigénia terá sido instrumental no processo de conversão de populações escravas e alforriadas de origem africana, em particular na Península de Setúbal e Alentejo. Na senda da descrição de populações descendentes de africanos no Vale do Sado, por José Leite de Vasconcelos, na sua Etnografia Portuguesa, os historiadores Isabel Castro Henriques e João Moreira da Silva publicaram o livro Os “Pretos do Sado”. História e Memória de uma Comunidade Alentejana de Origem Africana. Aí, referem-se especificamente às irmandades e confrarias religiosas do Vale do Sado como evidência do sucesso da conversão ao catolicismo dos muitos escravos e alforriados de origem africana para ali levados. A chamada Ribeira do Sado, faixa ribeirinha que liga Setúbal a Alcácer do Sal, era extremamente insalubre, devido à presença do mosquito anopheles, causador do paludismo ou febre terçã, o que terá suscitado o uso de mão de obra de escravos africanos, supostamente resistentes à doença, para trabalhar na agricultura e nas salinas. Por outro lado, diversas menções a africanos e mestiços em arquivos nacionais e locais, assim como alguns dados da toponímia azeitonense, como por exemplo o Pinhal de Negreiros, sugerem a possibilidade de o transporte de escravos para as plantações e salinas do Sado ter sido, pelo menos em parte, feito através da antiga estrada que ligava Almada a Setúbal.
Não custa imaginar que a Quinta de Santa Efigénia tenha recebido o nome devido à presença de mão de obra africana, ou eventualmente à existência de uma ermida que funcionava como sede de uma irmandade de antigos escravos africanos em Setúbal, ou até propriedade de família crioula africana. Especulações, eu sei, mas suportadas por inúmeros documentos de arquivo que comprovam a antiguidade da presença de populações africanas na Península de Setúbal, e pela evidência de que as tradições culturais, e em particular, religiosas, que se lhes encontram associadas estão longe de estar consciencializadas na nossa memória histórica actual. Por essa razão, esquecidas e apagadas como estão, têm escapado a ser patrimonializadas e, consequentemente, transformadas em instrumento de comércio – seja turístico, seja político. Com alguma sorte, ninguém que leia este texto cairá na tentação de valorizar a memória de Santa Efigénia.

Jornal de Azeitão, Junho 2022
.
Tags:
0 Comments

A Tragédia dos Comuns

30/5/2022

0 Comments

 
Picture
A Quinta da Periquita, na Aldeia da Portela, hoje um “alojamento local” propriedade de investidores estrangeiros para uso de clientes também maioritariamente estrangeiros, não é propriamente um exemplo de quinta histórica ao contrário, por exemplo, da Quinta de Santo Amaro, da Quinta das Donas, ou do Casal do Bispo (a antiga Herdade da Infanta). O edifício foi reconstruído há pouco mais de 40 anos, pelo Juiz Francisco Rolão Preto, filho e homónimo do polémico monárquico integralista.
 
A quinta e o edifício em si não têm nada de particularmente notável, tirando a vista magnífica dos contrafortes da Serra da Arrábida. Para mim, uma parte do seu charme está na ligação indirecta a Rolão Preto pai. De cada vez que passo pela Estrada dos Barrancos, à saída do Largo da Portela, relembro-o, não tanto porque foi o fundador dos Camisas Azuis, o entusiasmado jovem de inclinações falangistas que conviveu com a família de Primo de Rivera, mas porque, enquanto fundador da Convergência Monárquica e posteriormente do Partido Popular Monárquico, foi um dos principais representantes do desditoso movimento comunitarista português. De facto, a mais interessante parte da sua obra literária é precisamente aquela que ele dedica à longa história do comunitarismo em Portugal e à defesa desse ideal.
 
Essa corrente silenciosa e grandemente silenciada pretende (ou pretendeu, porque hoje pouca coisa de discussão política corre ou sequer escorre em Portugal) reviver ideias e práticas seculares de organização social local de tendências colectivistas que se cristalizaram durante a Idade Média e foram progressivamente desarticuladas à medida que o Estado se centralizava e o Direito perdia o seu tertium genus, que era o direito comum para vantagem do binómio público/privado.
 
O direito ao uso comum de terras foi consagrado juridicamente nas Ordenações Manuelinas: para “os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras”, porque “proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e outros frutos”. Desde então, foi retrocedendo até praticamente desaparecer do Direito Civil durante o Estado Novo, ressurgindo timidamente na legislação posterior ao 25 de Abril de 1974.
 
No norte do país, como na Galiza, o uso comunitário dos baldios e a defesa da propriedade comunal está ainda viva, mas o facto de o poder autárquico se poder imiscuir na sua gestão tem resultado em infelizes atropelos ao direito comum, em benefício dos cofres de juntas de freguesia que cedem os baldios para, por exemplo, colocação de parques de eólicas em elevações ventosas. Sem estruturas, ideias ou pessoas que o defendam, o espaço do direito comunitário (que os ingleses designam como law of the commons, distinta da common law) é consumido pelo direito público e pelo direito privado.
 
A Serra da Arrábida está cheia de espaços baldios, de práticas comunitárias (ou pelo menos da sua memória). Mas, num mundo em que prevalecem os interesses públicos e privados, não podemos senão assistir saudosos à lenta morte trágica dos comuns. O caso, reportado nos jornais, da polémica em torno dos direitos comunitários no que respeita ao uso colectivo de espaços nas margens e interior da Herdade da Comenda (o parque das merendas junto à Ribeira da Ajuda, o acesso à praia, o caminho de Santiago) é claro sinal do estado comatoso em que se encontram hoje os ideais comunitaristas. A indignação popular contra as vedações instaladas pelo novo dono da Comenda, o fundo imobiliário Seven Properties, da Mirpuri Foundation, levou a que os setubalenses se concentrassem para gritar “A Comenda é nossa!” em 2019, numa manifestação em defesa do interesse comum. Mas rapidamente a autarquia se acaparou do processo, que a partir daí se transformou num jogo político no qual o direito público (nomeadamente o do embargo) tem digladiado contra o direito privado dos fundos de investimento turístico. E, por esta via, o direito dos comuns se vai esboroando até desaparecer, como uma praia sem areia na maré cheia.
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2022
 
 
 
 

Tags:
0 Comments

Grande 25 de Abril

30/5/2022

0 Comments

 
Picture
Não há quase terra portuguesa onde o 25 de Abril não seja invocado, em largos, ruas e avenidas. Mais precisamente, contam-se 1.600 atribuições da data, e dos seus correlatos Movimento das Forças Armadas, Capitães de Abril e Revolução de Abril, no conjunto dos municípios portugueses. Apenas 20 concelhos, todos no norte do país, não o celebram na sua toponímia, entre eles Santa Comba Dão, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro e Proença-a-Nova. Há um modesto 25 April Close, em Oldham, na periferia leste de Manchester, uma  Avenue d'Avril 25, no bairro Woluwe-Saint-Lambert, em Bruxelas, um Calle 25 de Abril em Veracruz, no México.

Curiosidade enciclopédica, o 25 de Abril é celebrado em Portugal, naturalmente, mas também em Itália, como o dia da Libertação Nacional no final 2ª Guerra Mundial; na Austrália, Nova Zelândia, Tonga e Samoa, lembrando o dia em que os ANZAC desembarcaram em Galipoli, na Turquia; na Alemanha, como Dia da Árvore; no Egipto, como o Dia da Libertação do Sinai; na Coreia do Norte, como o Dia do Exército Popular; na Suazilândia, como o Dia da Bandeira Nacional; e no Cazaquistão, como o Dia do Futebol. As Nações Unidas celebram-no como o Dia Mundial da Malária e o Dia do ADN. Actualmente, o 25 de Abril já não é comemorado em Israel, onde a assinatura dos Acordos de Camp David, em 1982, deixou de ser motivo de júbilo, nem na Etiópia, porque a comemoração da devolução do Obelisco de Axum, em 2005, transportado para Roma pelo exército italiano em 1937, foi introduzida pelo governo liderado pelos tigrínios – que se encontram agora em guerra contra o novo poder em Adis Abeba.

Várias comemorações da Igreja ortodoxa caem falsamente no 25 de Abril: a eliminação de 13 dias em Fevereiro, aquando da adopção do calendário gregoriano na União Soviética, e a criação do calendário juliano revisto fizeram que várias comemorações de santos tenham passado para o dia 12 de Abril: São Basílio, o Confessor, Zenão, Bispo de Verona, Santo Isaac, o Sírio , os Mártires Mina, David e João, a Virgem Anfusa de Omónia,  Atanásia de Egina, bem como a comemoração do ícone Murom da Mãe de Deus.

Na Roma antiga, o festival da Robigalia realizava-se também a 25 de abril, em homenagem ao deus Robigus. Era um festival agrícola que tinha lugar na fronteira do Ager Romanus, num bosque que se situava ao longo da Via Claudia, dedicado à protecção dos campos cerealíferos; Verrius Flaccus refere que, além de vários jogos, o festival incluía um sacrifício do sangue e vísceras de um cachorro não desmamado.
Azeitão e Sesimbra concorrem para esta comemoração pública com aquela que é possivelmente uma das longas e mais estranhamente designadas avenidas do país. A Avenida 25 de Abril tem não menos de 31 quilómetros e liga o Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel à aldeia de Cabanas onde, entre a Farmácia Graça e as instalações do Grupo Popular Recreativo Cabanense, se metamorfoseia em Avenida Visconde do Tojal. É um topónimo que se acoplou à mais banal nomenclatura oficial das Estradas de Portugal: a Avenida 25 de Abril recobre boa parte da N379 (não confundir com a N379-1 que, junto à costa, liga a cimenteira da Secil a Casais da Serra).
​
Perguntar-me-ão qual o interesse de debitar aqui dados de Wikipedia. É simples: quis saber onde iam parar as águas das enxurradas que descem a Rua da Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense e que, devido à falta de escoamento (alguém poupou ali muito em sarjetas), vertem sobre as laterais destruindo muros e inundando o casario, nos meses de Janeiro e Fevereiro. Foi assim que fiquei a saber que esta descaracterizada artéria, em que os moradores consideram ser perfeitamente razoável estacionar sempre os carros em cima do passeio apesar de ela ser a mais larga e mais vazia das vias urbanas de Azeitão, termina na N379 ou, como o GoogleMaps me ensinou, na Avenida 25 de Abril. O assunto não tem de facto interesse nenhum, até porque, com os impactos do aquecimento global, as enxurradas de inverno parecem ser coisa do passado.
 
Jornal de Azeitão, Março 2022
Tags:
0 Comments

A Magia de coina

3/4/2022

0 Comments

 
Picture
Picture
Há, sobre o conjunto das cidades, vilas e aldeias portuguesas, um tesouro de curiosas elucubrações saídas da pena de corógrafos locais que abnegadamente especulam, no espírito filológico de Giambattista Vicco, sobre o porquê das várias toponímias locais e fabricam explicações fantasiadas sobre as suas origens. Tenho por hábito ler estes tratados amadores, com admitida inveja da liberdade criativa e do enciclopedismo caoticista que anima quem os escreve. À sua maneira, são actos de prestidigitação intelectual que, como num espectáculo de magia, despertam no leitor um estranho enlevo, o de querer ser convencido do que suspeita ser impossível: acreditar que a assistente do mágico está a ser serrada a meio, sabendo que não o está a ser, não é muito distinto de acreditar que Ulisses fundou a cidade de Lisboa que não fundou.

Os exemplos desta inventividade etimológica não só se multiplicam, de norte a sul do país, e do interior à costa, como se correspondem e dialogam entre si. As correspondências fonéticas entrelaçam-se com evocações pseudo-históricas e imaginações arqueológicas, em fantásticos cenários onde celtas, iberos, fenícios, romanos e árabes são liberalmente convocados para dar conta do rol de topónimos cujo sentido primordial não conseguimos captar. Imaginamo-lo enterrado sob o pó da passagem dos tempos, enclausurado por trás de muros linguísticos, esvanecido pela luz dos tempos presentes. E, sabendo que os meios de prova são praticamente nulos, gostamos ainda assim de crer nos devaneios dos corógrafos.

A região da Arrábida tem, neste cômputo, a sua quota-parte de especulações etimológicas. Desde logo o nome da serra, árabe sem dúvida, porque não é preciso duvidar. Setúbal, celta romanizado claro. Sesimbra, humildemente originária do zimbro, fosse ele árabe ou latino. Azóia, Alfarim e Aiana, árabes também. Mas, e o Meco? Vá-se lá saber. Azeitão, árabe certamente. Palmela, do latim “pequena palma”. E Coina?

Coina é um topónimo anatematizado por várias gerações de gracejos juvenis. A Coina actual, a norte da Quinta do Conde, é banhada por uma ribeira do mesmo nome, hoje praticamente invisível, que desagua num braço do Tejo, junto ao Barreiro. Foi conhecida como Coina-a-Nova, para a distinguir – claro – de Coina-a-Velha. Desenvolveu-se como centro industrial que aproveitava a navegabilidade da ribeira para expedir a produção da Real Fábrica de Vidros Cristalinos, que D. João V aí mandou instalar. Por sua vez, Coina-a-Velha era o nome de uma povoação sobranceira ao Porto de Cambas, ponto a partir do qual a ribeira, cuja nascente é a Serra do Risco, se tornava navegável. Em finais do séc. XVII, foi rebaptizada com o nome de Aldeia de Nossa Senhora da Piedade, hoje simplesmente Aldeia da Piedade, por iniciativa do então proprietário da Quinta das Donas, Diogo da Silva de Carvalho.
​
No vizinho Casal do Bispo, fronteiras à ermida seiscentista de São Pedro, localizam-se as ruínas de um antigo castelo, diz-se de origem árabe, destruído em data indeterminada após a morte de Dom Sancho I, que teria feito, com os de Sesimbra e Palmela, parte da linha defensiva muçulmana da península de Setúbal. Aí, também, foram encontrados vestígios de um povoado pré-histórico. Chega-se lá através da “estrada dos romanos”, uma estreita via que parte do cruzamento da estrada Azeitão-Sesimbra com a que leva, por Casais da Serra, ao Portinho. Esse seria o Castelo de Coina, cujo nome tem sido objecto de esparsas indagações, que repetem sempre a mesma explicação: Coina nasceu como corruptela – culpa dos árabes? – do topónimo latino Equabona (ou seria Aquabona?). Equabona vem referida no Itinerário de Antonino, do séc. III, como estação da estrada que ligava Olisipo a Ebora, por via de Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal). Não há qualquer referência precisa à sua localização, nem qualquer indicação de como ou quando Equabona se transmutou em Coina. Deste “castelo dos mouros”, subsistem ainda sinais de muralhas e torres, e de uma cisterna. O corógrafo oitocentista Joaquim Rasteiro reporta sobre o castelo uma versão local de uma lenda medieval de tons moralistas: o castelo teria três quartos subterrâneos, um já descoberto (a cisterna) onde eram depositadas as armas, e outros dois – um com ouro e outro com peste - que ninguém se atreve a explorar com receio de, ao procurar o ouro, encontrar a peste.
O leitor não pode deixar de se maravilhar com a audácia dos corógrafos que, quais prestidigitadores, serram a meio as palavras modernas para expor o ouro dos seus sentidos originais, sem receio de lá encontrar a peste do absurdo.

Jornal de Azeitão, Fevereiro 2022
Tags:
0 Comments

A escura, enigmática, Arrábida

4/2/2022

0 Comments

 
Picture
O Dunkles rätselhaftes Österreich (“A Escura, enigmática, Áustria”), de 1994, é a segunda parte de série pseudo-documental Das Fest des Huhnes ("O banquete do frango”) de Walter Wippersberger. Trata-se de uma sátira mordaz ao tradicional género do documentário cultural, em que o antropólogo (europeu ou norte-americano) visita e dá a conhecer ao público (europeu ou norte-americano) os costumes exóticos de populações tradicionais africanas ou ameríndias. Um antropólogo africano fictício, Kayonga Kagame, apresenta o programa Fremde Länder, Fremde Sitten (“Terras estrangeiras, costumes estranhos”) na fictícia estação de televisão AllAfricanTele. O antropólogo dá a conhecer ao seu público (supostamente africano) os exóticos costumes dos povos selvagens do Tirol austríaco, entrevistando os habitantes locais e explicando os seus estranhos hábitos ancestrais. Na parte final do filme, procura entender o enigmático ritual tirolês de subir em perigosa peregrinação ao topo das altas montanhas dos Alpes para depois, colocando pedaços de madeira nos pés, as voltar a descer aproveitando as encostas nevadas, e finalmente engorgitar generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio. É uma divertida visão das práticas do alpinismo e do esqui de montanha, olhadas de um imaginário ponto de vista africano que revela o absurdo do esforço e do risco físico de subir montanhas a pulso para depois, com não menos risco, as descer esquiando em grande velocidade.
 
Hoje em dia, não só há inúmeros sites na internet anunciando percursos pedestres nos trilhos da Serrra da Arrábida mas proliferam as micro-empresas oferecendo caminhadas guiadas através dos variados pontos cénicos do parque natural, de Azeitão ao Creiro pela Serra do Risco, do Castelo de Sesimbra às pegadas de dinossauro do Cabo Espichel, de Palmela à contracosta. Graças às benesses do aquecimento climático, têm-se multiplicado os fins de semana ensolarados, mesmo em pleno inverno, o que constitui irrecusável magnete para que uma cada vez mais apreciável franja da população citadina, lusa ou estrangeira, venha calcorrear os ancestrais trilhos arrabidinos. Uma destas propostas caminhadas é a que, saindo do Rossio de Vila Nogueira, ou da vizinha Fonte dos Pasmados, ruma a sul ziguezagueando pela inicialmente suave inclinação das faldas da Serra do Risco, para finalmente enfrentar os contrafortes do Alto do Formosinho, ou Monte do Alvide, e visitar o chamado “Castelo dos Mouros” (antes também conhecido como o “Jogo dos Mouros”), o local de um antigo povoado fortificado da Idade do Bronze alcandorado na crista norte da serra, no esporão calcário bem visível para quem, sem precisar arriscar-se na prática montanhista da Serra do Risco, mira a paisagem a partir das esplanadas dos cafés da Rua José Augusto Coelho.
 
Ora, se bem que os anúncios dos percursos pedestres refiram habitualmente que o trilho do “Castelo dos Mouros” segue o traçado ancestral dos acessos proto-históricos ao topo da serra, geralmente pouco se estendem sobre a história que medeia entre a Idade do Bronze e a época actual. No fundo, a história da carochinha que os sites e anúncios contam tem uma leveza narrativa muito símil à dos condutores de tuk-tuks que oferecem visitas guiadas ao casco histórico da cidade de Lisboa. São constituídos por pedaços de frases rapinadas de outros sites ou de documentos em formato PDF facilmente encontráveis numa busca por palavras-chave num qualquer browser. Nem se lhes pede mais, nem os clientes caminheiros querem saber mais. Pouco interessa, para a prática do alpinismo arrabidino, saber que a passagem do Alto do Formosinho é um os marcos mais pregnantes do antigo Círio da Nossa Senhora da Arrábida, e que a sua memória se tem diluído na consciência histórica das autoridades locais azeitonenses, a tal ponto que a romaria, que antes era realizada no Dia do Espírito Santo, em finais de Maio, acabou por ser deslocada para o mês de Julho, para coincidir com as recentemente fabricadas “Festas da Arrábida e Azeitão”. Também pouco ou nada interessa, aos caminheiros urbanos e aos seus guias turísticos, saber que na sexta-feira de Páscoa os mais ousados preferem deixar o carro em casa e sobem os trilhos da serra até ao Alto do Formosinho, para depois descer a encosta sul até à praia do Creiro onde engorgitam generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio, não a acompanhar um banquete de frango como os tiroleses, mas preferivelmente uma feijoada de choco.
 
O final do filme de Wippersberger foca-se na invasão estival do Tirol por exércitos motorizados de turistas alemães e na relação subserviente que os tiroleses, por um lado tão ciosos da sua cultura independente, mantêm com os invasores endinheirados, abrindo-lhes as portas das suas casas e banqueteando-os com pratos da culinária local. Esta cínica referência aos efeitos perversos do turismo austríaco encontra, como bem sabemos, ecos óbvios na forma como o poder local e os empreendedores da vila abraçam os cifrões que pingam do irreversível e acrítico processo de turistificação da “Arrábida e Azeitão”.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2022
 
 
 
 
 
 
 
Tags:
0 Comments

Em defesa do direito à romaria

8/1/2022

0 Comments

 
Picture
Durante o séc. XIX, o estudo das sociedades e culturas era determinado por uma intenção manifestamente etnocêntrica. Supunha-se uma linha de evolução justificativa da superioridade civilizacional e intelectual do Ocidente, e equacionava-se a variedade cultural com uma incomprovada graduação das capacidades mentais. A “primitividade” dos costumes de certas sociedades era entendida como manifestação de pobreza de espírito, como estupidez colectiva. Ao longo do séc. XX, a crítica desta visão auto-centrada conduziu à valorização da riqueza e complexidade de culturas antes vistas como frustres e incivilizadas. O pressuposto anterior foi substituído por um novo, o da inteligência colectiva, como fonte da qual emanava harmonia social e criatividade cultural. Consequentemente, pressupor a existência de uma “estupidez colectiva” tornou-se tabu, particularmente entre antropólogos.
E, no entanto... quando olhamos em nossa volta, sentimos por vezes que o velho ditado castelhano sobre as bruxas se aplica a este tópico: “Yo no creo en estupidez colectiva, pero que la hay, la hay”. Isto poderia vir a propósito da aparente fatalidade do destino suicidário do ser humano actual, irremediavelmente decidido a destruir o equilíbrio ambiental que lhe assegura a sobrevivência. Mas prefiro não erguer tão alto a minha arrogância reprobatória, e ficar-me por um bem mais modesto exemplo: o da relação difícil que os portugueses parecem ter com o debate intelectual no que respeita ao tema, a uma vez jurídico, patrimonial e económico, dos “comuns” (a própria estranheza lexical do termo, tradução literal do inglês commons, sugere já ausência de reflexão e debate público sobre o assunto). Os “comuns” constituem-se como o terceiro e muito desdenhado pilar da teoria do Direito, habitando um espaço ambíguo entre o público e o privado. Em Portugal, o Direito dos “comuns” reporta-se explicitamente à gestão comunitária de terrenos incultivados, ou “baldios”. Herança de formas de auto-organização local, o comunitarismo é, no entanto, muito mais que simples gestão colectiva de terrenos de pasto por comunidades locais. É uma antiga instituição cultural que, desde a alta Idade Média, insinua uma importante brecha na concepção dualista que reduz as relações jurídicas e sociais à antinomia entre público e privado, no Direito romano.
Se olharmos em volta com um pouco de atenção, percebemos que os “comuns” não se limitam aos “baldios”. Por exemplo: a caça e a pesca são, em grande medida, usos individuais de bens comuns; assim também a vivência colectiva em espaços urbanizados, a gastronomia, e as múltiplas formas de conhecimento, tanto analógico como digital. O ar que respiramos, o mar onde nos banhamos e a terra que cheiramos são bens comuns, não públicos ou privados. Mais ainda, a própria ausência de reflexão sobre este assunto é manifestação de um outro direito comum: a estupidez colectiva (também lhe poderíamos chamar de “burrice comunitária”).
Reparei que a Quinta de El Carmen, na falda ocidental da Serra da Arrábida, se encontra à venda, pelo valor milionário de 12 milhões de euros, mas nada vem dito sobre o direito de romaria à sua ermida, nem ninguém parece querer preocupar-se com o assunto. A ermida foi privatizada pela 2ª Duquesa de Aveiro, a espanhola D. Madalena Girón, em 1560, que a ampliou e lhe atribuiu o nome presente, em honra de Nossa Senhora do Carmo (ou Del Carmen). Construída num ermo ou “baldio” que as comunidades locais usavam para a pastorícia e a obtenção de lenha e, em particular a aristocracia residente, como couto de caça, a ermida era anteriormente dedicada a Nossa Senhora da Pinha. Como a ermida do Cabo Espichel ou a do convento da Arrábida, é um antigo local de romaria local, como atesta a lenda do marido ciumento que Nossa Senhora impede de matar a mulher, atirando-lhe uma pinha à cabeça. Foi construída pelos mordomos da zona de Azeitão e paga por esmolas das comunidades. Atestam-se, ao longo dos séculos, bailes e representações dramáticas no adro da ermida. Em 1714, há notícia de que o Cabido de Lisboa mandou afixar uma nota pastoral na porta da igreja, suspendendo as festividades, sob pena de excomunhão, já que, aparentemente, não eram “tão honestas como era razão que fossem”. Os habitantes dos Casais da Serra e das Pedreiras fazem anualmente romarias à Capela de El Carmen, uns na quinta-feira de Ascensão e os outros a 18 de Agosto. Sendo parca a documentação histórica, comprova ainda assim a antiguidade das missas cantadas, dos sermões, dos arraiais com baile, e das refeições comensais.
Entalado entre o Direito público, que gere as relações entre os cidadãos e o Parque Natural da Arrábida, e o Direito privado que define os direitos e deveres de propriedade da Quinta de El Carmen, o Direito dos “comuns”, nomeadamente aquele que rege romarias, procissões, e até a apanha de pinhas, ervas aromáticas e caracóis nas faldas da serra, definha porque não encontra quem perceba a sua importância como garantia de sobrevivência de valores culturais. A estupidez colectiva é uma importante causa da "tragédia dos comuns".
 
 Jornal de Azeitão, Novembro 2021
 
 
Tags:
0 Comments

Uma história para esquecer

29/11/2020

0 Comments

 
Picture
Como alguém uma vez lembrou, as sociedades humanas não conseguem apreender a História com letra maiúscula – quer dizer, a história em toda a sua plenitude e complexidade. A História está para além do entendimento humano. A história é, por isso, sempre “história para alguém”. Há, por isso, multitudes de histórias, ou seja, de selecções possíveis de pontos e eventos do passado vertidas em forma narrativa, para cada grupo, país e tempo. Contar ou escrever história é sempre escolher entre memórias, esquecendo umas e valorizando outras. Por exemplo, há uma história nacional preferida para o final da monarquia (a de Oliveira Martins); há uma para o período salazarista (a Damião de Peres); há uma para o interlúdio marcelista (a de Oliveira Marques); há uma história para o pós-25 de Abril (a de José Matoso). São tanto histórias para entender o passado a que se reportam como entender o momento para o qual foram escritas.

As histórias de Portugal espelham, sem as ler, as histórias de Espanha. As histórias locais divergem das histórias nacionais e estas das histórias gerais ou universais. As histórias liberais catalãs opõem-se às histórias conservadoras castelhanas. As histórias de Lisboa escritas por portugueses distinguem-se das histórias de Lisboa contadas por ingleses. Etecetera. Vem isto a propósito de uma entrevista lida há ano e meio no periódico Setúbal Mais, em que a presidente da Junta de Freguesia de Azeitão anunciava que “o palácio dos Duques de Aveiro foi vendido para se transformar num hotel de charme”. Lida hoje, após os extraordinários acontecimentos despoletados pela pandemia do Covid19, esta é uma memória em relação à qual é difícil decidirmos se vale a pena lembrá-la ou esquecê-la. É possível que o projecto esteja suspenso, adiado ou arquivado. Não faço qualquer ideia da situação actual, mas há duas reflexões que merecem ser feitas a propósito da informação disponibilizada.

A primeira é mais ou menos óbvia: a pandemia provocou um cataclismo na indústria turística mundial. Portugal é (ou era) um dos países do mundo mais dependentes deste sector – e por isso mais sensíveis às suas vicissitudes. Em termos estritamente económicos, as actividades turísticas contabilizaram 19,1% do PIB nacional em 2019, fazendo de Portugal o quinto país do mundo em que o turismo mais impacto tem (tinha) em termos de riqueza produzida. Hoje, penso que há razão para nos perguntarmos se faz sentido fingir que “vai ficar tudo bem” e fazer como se a pandemia fosse apenas um pesadelo passageiro após o qual podemos voltar ao “normal”. Um dos mais visíveis, relevantes – e malbaratados – patrimónios monumentais da região é o “palácio dos Duques de Aveiro”, enquadrando e encimando, com o “convento de São Domingos”, o rossio de Vila Nogueira. A trágico-cómica história do seu progressivo estado de abandono merece ser evocada para ajudar a pensar o seu futuro e o da vila. A pergunta fica aqui a aguardar resposta: valerá a pena destiná-lo à iniciativa privada hoteleira numa era pós-Covid?
 
A segunda, e complementar, reflexão é a seguinte: porque designamos ainda hoje ao arruinado edifício de “palácio dos Duques de Aveiro”? Não tivesse havido pandemia, estaríamos já hoje talvez a contemplar o arranque das obras de um “Palácio-Hotel” no centro histórico da vila. Mas o “palácio” foi durante mais séculos “ruína de palácio” que “palácio”, um aspecto da história local que parece preferível manter sob silêncio. E, antes disso, o “palácio” foi durante setenta anos “fábrica real de estamparia e tecidos de Azeitão”, que precedeu a hoje mais conhecida fábrica de chitas de Alcobaça. E antes da cedência do terreno para a construção do “palácio” em 1521, terá sido terreno de horta dos frades dominicanos desde a construção do convento em 1435. Porque se prefere chamar ao monumento “palácio” e não “fábrica”, “horta” ou “ruína”? Não tenho resposta, mas compreendo que seja mais conveniente para quem procura promover o turismo regional – mesmo em país republicano – polir pergaminhos aristocráticos que expor chagas patrimoniais ou valorizar histórias industriais.

Mesmo silenciando o bárbaro acto punitivo de um Marquês de Pombal utopista e nivelador contra a alta nobreza que resultou na destruição das propriedades dos Távoras e dos Aveiros (mas ainda assim preservou a de Azeitão), é “charmoso” falar da ruína como “palácio dos Duques de Aveiro” – é uma forma de contar a história local que valoriza a sua ligação à corte real e oblitera a sua ligação à emergente (e abortiva) economia industrial do país. E é também um silenciamento da incómoda tendência portuguesa para ceder património público a privados sem quaisquer garantias de que ele seja convenientemente preservado. Foi isso mesmo que aconteceu em 1775, com a atribuição de um alvará de cedência do “palácio” a empresários aventureiros que quiseram fazer uma fábrica de estamparia sem se preocuparem com os problemas logísticos causados pela ausência de estruturas para a importação de algodão e sua fiação. Foi isso mesmo que aconteceu quando a Fazenda Pública decidiu leiloar o “palácio” em 1846 sem procurar garantir a sua preservação futura. É possível que daqui a uns anos alguém esteja nestas páginas a discutir o charme decadente de um “Palácio-Hotel” desocupado.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2020
Tags:
0 Comments

Prendas da casa

30/9/2020

0 Comments

 
Picture
Contava Raúl Brandão, n’Os Pescadores, que nos povoados pesqueiros ao longo da costa portuguesa, as mulheres fiavam e remendavam as redes, transportavam e vendiam o peixe. Mas, lembrava, não no Algarve: aí, a mulher era a prenda da casa; acumulava colares e brincos de ouro que empenhava depois para garantir alimento nos meses de míngua, e não trabalhava senão para manter imaculada a casa. Esta condição, que ele descreve magistralmente a propósito da sua passagem por Olhão, alterou-se profundamente ao longo do século XX, quando a mão de obra feminina se revelou vital para o incremento da indústria conserveira de atum, cavala e sardinha.
Também em Sesimbra as mulheres tendiam a manter-se apartadas das tarefas directamente ligadas à pesca, e eram elas a governar a casa. Mas, como no Algarve e em Setúbal, foram elas o principal recurso operário da florescente indústria conserveira que durante boa parte do século passado alimentava o mercado nacional e internacional. A elas cabia o amanhar, o limpar, o descabeçar, o cozer e o acamar das sardinhas nas latas; as tarefas masculinas nas fábricas eramç além do ofício de soldar as latas, o transporte e a arrumação do peixe que chegava das múltiplas armações que pontilhavam a costa arrabidina, e cujas estruturas arruinadas ainda se podem lobrigar nas várias covas e enseadas, da Azóia a Galapos. Mas, antes e depois da febre das fábricas de conserva que os industriais franceses introduziram em finais do séc. XIX – a Bela Vista, a Primorosa, a Pinto, a dos Gatos, do Chora, a Lusitana, a Francesa... -, era ponto de honra das mulheres dos pescadores não trabalharem, pelo menos fora de casa.
Nos anos setenta e oitenta do século passado, o aventureirismo dos pescadores garantia sem problemas este desafogo: quando começou a escassear o peixe na costa da península, aumentou-se o calado dos barcos e o que antes era impensável – a faina no alto mar – tornou-se rotina: dos mares de Sesimbra, Cascais e Peniche, a pesca alargou-se então para os bancos atlânticos do Gorrinche, das Canárias e da costa mauritana, atrás sobretudo do peixe-espada negro e do chicharro, porque agora o peixe apanhado podia vir refrigerado em gelo miúdo. A vida a bordo era inclemente: campanhas de quinze a vinte dias nos mares longínquos, trabalhando noite e dia em conveses descobertos, sem mais que breves descansos diários de duas horas em catres instalados paredes meias com as máquinas e os depósitos de fuel. Distrações eram uma miragem: o calor efémero das prostitutas de Safi ou Agadir, a sorrateira troca de garrafas de aguardente por barras de haxixe, o contrabando de óculos escuros e ténis canarinos, e sobretudo a esperança de regressar à vila para descansar alguns dias, antes da retoma da faina marítima. A parte – o soldo entregue após a venda na lota - era entregue à mulher e ala para o café e conviver com as outras companhas ao ritmo das imperiais esvaziadas. Comum era ver as mulheres irem reclamar os maridos à hora do jantar: no mar, mandava o arrais, em terra governava a mulher. Tanto mais que as saídas para o mar, que antes duravam um a três dias, passaram a ditar ausências muito mais prolongadas.
Nada desta vida passada indica, no entanto, que a condição das relações matrimoniais e laborais era fixada na pedra, ou que o trabalho na indústria conserveira tenha sido um momento sem par na história das mulheres de Sesimbra. A decadência da pesca e a expansão do turismo de veraneio na vila ditaram o regresso das mulheres da comunidade ao trabalho salariado. Mas já antes, no quarto final do séc. XVIII, por exemplo, quando a estamparia de tecidos de chita se lançou na região com a criação, pelo Marquês de Pombal, da Real Fábrica de Chitas de Azeitão, no edifício quinhentista que antes fora propriedade dos proscritos Duques de Aveiro, era encargo das mulheres de Sesimbra o fiar do algodão para alimentar os teares azeitonenses.
 

Jornal de Azeitão, Setembro 2020
Tags:
0 Comments

O estatuário luso

27/8/2020

0 Comments

 
Picture
Dezembro de 1997: Lisboa preparava-se para celebrar a sua reentrada no circuito da globalização; homens e máquinas afadigavam-se nas obras da futura Expo98. Simultaneam­ente, do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, desenrolava-se o episódio final daquela que poderia ser considerada a mãe de todos os derrubes de estátuas. Após um ano de manifestações de protesto, as autoridades do Bairro de Queens decidiram proibir finalmente a ereção de uma portentosa estátua de 15 metros na frente ribeirinha que havia sido criada pela escultora Audrey Flack, graças a uma subscrição pública lançada pela comunidade luso-americana. A estátua de bronze pretendia celebrar a fundadora simbólica do bairro, a rainha Catarina de Bragança que casou com Charles II de Inglaterra, levando no seu enxoval chá, marmelada, garfos, Bombaím e Tanger. Foi o seu cunhado, o Duque de York e futuro sucessor da coroa, com o título James II, que, ao comprar Nova Amsterdão aos holandeses da Geoctrooieerde Westindische Compagnie (GVC), rebaptizou a cidade como Nova Iorque e deu a uma parcela do novo domínio inglês o nome de Queens, em homenagem à consorte lusa, e católica, do irmão.
A justificação explícita para “derrubar” a estátua antes mesmo de ela ter sido implantada foi que Catarina havia sido membro do conselho de administração da Royal African Company, durante séculos protagonista do tráfico de escravos de África para as colónias britânicas no continente americano. Foi uma pequena primeira vitória para os movimentos iconoclásticos anti-racistas norte-americanos, que curiosamente coincidiu com a nomeação de Trump como the Prince of Queens, pela presidente do bairro. De pouco valeram os argumentos da escultora, que defendia que a figura era evidentemente multirracial, dado que Catarina, sendo portuguesa, deveria ter a pele escura; e que os seus caracóis seiscentistas até evocavam rastas africanas. A estátua veio a ser destruída anos mais tarde numa fundição de Boston. Sem que se saiba bem porquê, uma versão miniaturizada da estátua despontou timidamente em data incerta e sem cerimonial público num recanto arredio do Parque das Nações, de onde ainda hoje mira algo atónica o Mar da Palha e a Ponte Vasco da Gama.
A intensa polémica nova-iorquina em torno da estátua de Catarina de Bragança não suscitou à data notícia de relevo em Portugal. Não pôde, portanto, ter motivado uma desejável discussão pública sobre a parte cruel da herança de Portugal no mundo: o tráfico e escravização de milhões de africanos para alimentar as manufacturas de açúcar, a mineração de ouro e produção de café – o casamento inglês de Catarina selou simbolicamente a passagem de testemunho dessa herança, e deu início à hegemonia britânica nesse lucrativo empreendimento intercontinental. Qualquer discurso crítico que menorizasse os feitos lusos em época de comemoração dos Descobrimentos teria de ser colectivamente silenciado e (auto-)censurado.
Um paradoxo salta à vista: no momento em que o país procurava projectar-se no caleidoscópio mundial, fazia-o concentrando-se sobretudo no auto-elogio histórico e alheava-se dos movimentos sociais contemporâneos que dilaceravam, e continuam a dilacerar, os países receptores do tráfico intercontinental de escravos. Exaltavam-se os mares fechando convenientemente os olhos ao sangue africano que por eles correu.
Não há que julgar o à-vontade com que por cá se apagam memórias e silenciam controvérsias. É assim que funcionamos e há razões para desconfiar da eficácia dos decretos que se propõem dissolver hábitos atávicos seculares. Mas, para fomentar uma relação salutar com a história e a política há que estar disponível para interrogar e para tentar compreender as raízes do nosso oblívio militante e do nosso pânico face à eventualidade de crítica.
A total ausência de debate crítico em Portugal sobre o estranho episódio da proibição da estátua de Catarina em Queens evidencia o localismo e a pobreza discursiva das disputas identitárias a que temos assistido recentemente. E, no entanto, é precisamente porque ela não suscita posicionamentos acalorados em Portugal que merece ser trazida para o centro da discussão, na medida em que redefine o contexto dos argumentos e confere profundidade temática ao problema que é reorganizar memórias históricas e procurar compreender e aproximar pontos de vista divergentes. Penso que a ninguém ocorre espichar, derrubar ou defender a Catarina miniaturizada do Parque das Nações. Pois que a atenção se concentre, não necessariamente na estátua em si, mas nas razões históricas e culturais que nos levam a ignorá-la completamente.
A censura do silêncio perante a crítica construtiva pode ser devastadora. É fácil citar vários episódios públicos que contam sempre a mesma história, com o mesmo desenlace: ao contrário da provocação gratuita que suscita emoções fátuas, a expressão de um pensamento crítico é habitualmente recebida com desconfiança e respondida com silêncio. O silenciamento de vozes divergentes, de visões alternativas e de posições fora da norma é um hábito arreigado em Portugal, ao qual quem se encontra em situação de poder decidir recorre sem nunca pestanejar.
Para justificar tal recusa ou incapacidade de debate crítico, cita-se com demasiada frequência a herança do período salazarista, como se ele tivesse surgido ex-nihilo e tivesse havido um antes onde ele teria desabrochado sem censura ou continência. Um cético poderia, no entanto, lembrar que as guerras liberais oitocentistas e o vórtice autofágico da Primeira República pouco mais foram que momentos caceteiros, que em nada lustraram pergaminhos de intelectualidade. Por trás deles estão três séculos de inquisição que causaram no país um trauma indelével e moldaram o modo como nos relacionamos ainda hoje. O Santo Ofício promoveu e generalizou a denúncia sistemática, a opressão e o silenciamento, a discricionariedade sem limite. Induziu um hábito colectivo arreigado: o da censura pelo silêncio e o medo da interrogação. Parafraseando Pe. António Vieira, diria que a Inquisição foi o nosso estatuário:

“Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
​

Faz-se hoje moda provocar soezmente e bater no peito pela defesa de identidades reinventadas. Mas este modo de falar e de fazer não conta como apelo ao diálogo, aniquila-o. Mais são que derrubar ou defender estátuas é não desistir de esculpir consciências. Porque, ao fim e ao cabo, os provocadores cortejos de extremistas mascarados de branco (a esconder a tez morena) frente a organizações anti-racistas, assim como os apelos ao derrube de uma (hedionda) estátua justificados por espúrias acusações de esclavagismo ao Pe. António Vieira são, antes de mais, embaraçantes manifestações de ignorância do que um bom debate pode ser e do que uma forte crítica pode valer.

Publicado n'O Público, 20 Agosto 2020.
Tags:
0 Comments

A Serra-catedral

27/8/2020

0 Comments

 
Picture
O mundo lá fora dilacera-se entre variegadas investidas das políticas identitárias contra os ideais liberais da representação democrática, suportadas por sedes populistas e inclinações autoritaristas. A milésima metamorfose do capitalismo procura, pela calada, tirar proveito de crises existenciais declaradas ou previstas – corrupções, poluições, migrações, propagações virais e redes digitais. O mundo lá fora parece profundamente desequilibrado.
O ínfimo refúgio bucólico que é a Serra da Arrábida conserva – por enquanto, pelo menos – o poder encantatório, se não de nos fazer olvidar o mundo em desequilíbrio, de diminuir em muito o seu domínio sobre as nossas consciências. Ajuda, nesta empresa, ler Frei Agostinho da Cruz e Sebastião da Gama, dois poetas separados por quatro séculos, mas unidos pelo misticismo religioso e pela branda paisagem da estreita faixa arrabidina.
 
Escrevia o primeiro:
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano duma banda
E doutra já salgadas as do Tejo.
 
E o segundo respondia:
A Serra é catedral
Onde o órgão-silêncio salmodia.
 
As horrendas agressões que a sangram e desfiguram – a cimenteira de um lado e as pedreiras do outro, o casario informe que mastiga as suas bordas e brota no seu mato, o asfalto que lhe rasga as entranhas – enfraquecem mas não lhe extinguem o potencial contemplativo e a força refrigéria.
A insanidade humana deixa impunes e torna irreversíveis os actos assoladores de quem se arroga o direito de os cometer. Mas a serra absorve-os, dissolve-os e perdoa na sua brandura os algozes. A cimenteira injectada no Outão deveria ser encerrada, mas os poderes renovam-lhe a licença por mais umas décadas? Seja. A pedreira que, por gesto iníquo a Casa de Palmela concedeu nas traseiras do Calhariz continua a comer a montanha? Seja. O Palácio dos Duques de Aveiro salvo da demolição e salga na voragem do processo dos Távoras sobreviveu séculos para se plasmar agora em “hotel de charme”? Seja. O extraordinário convento arrabidino arruinou-se nas mãos de uma seita de origem coreana e é agora pousada disfarçada de uma fundação gestora do dízimo dos casinos macaenses? Seja. Os japoneses do Agar-Agar saquearam todo o coberto submarino que fazia da costa sul da Arrábida um dos mais preciosos berçários piscícolas do Atlântico Leste? Seja.
Na sua bonomia, indiferente à mesquinhez das coisas humanas, a serra-catedral tolera, perdoa, sorri – mesmo se lhe topamos, ou imaginamos topar, trejeitos tristes nos seus cantos silenciosos. A dança da orografia garante-lhe por mais uns milénios não apenas solidez mas mesmo um ligeiro incremento do alçado – ao fim e ao cabo, a serra ergueu-se das águas, empurrada pela força das placas tectónicas, e não se entrevê o seu afundamento em futuro de médio prazo.
E se a sua cobertura vegetal única de cotovelo mediterrânico enfaixado no Atlântico um dia se perder por incêndio malicioso ou catastrófica mudança climática? Será triste ver a linha do seu cabeço descabelada, mas ainda assim a catedral continuará a ser catedral, até ao dia em que os últimos fiéis deixem de a frequentar e de nela buscar refúgio do mundo lá de fora – que seja para aí rezar em desespero por uma qualquer salvação temporal, ou mais singelamente para nela contemplar as silhuetas inescrutáveis da eternidade.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2020

Tags:
0 Comments
<<Previous

    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

    Archives

    March 2023
    November 2022
    October 2022
    September 2022
    August 2022
    July 2022
    May 2022
    April 2022
    February 2022
    January 2022
    November 2021
    October 2021
    September 2021
    August 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    April 2020
    March 2020

    Categories

    All
    Ambiente
    Arrabida
    Arte
    Censura
    Comuns
    Conflito
    Etiopia
    Gentrificacao
    Historia
    Jornal De Azeitao
    Mobilidade
    Mobility
    O Publico
    Oralidade
    Palestina
    Pandemia
    Pandemic
    Pesca
    Política
    Pollution
    Poluicao
    Portugal
    Risco Rodoviario
    Ritual
    Turismo
    Ucrania
    Universidade
    Urbanismo

    RSS Feed