MANUEL JOÃO RAMOS
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Em defesa do direito à romaria

8/1/2022

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Durante o séc. XIX, o estudo das sociedades e culturas era determinado por uma intenção manifestamente etnocêntrica. Supunha-se uma linha de evolução justificativa da superioridade civilizacional e intelectual do Ocidente, e equacionava-se a variedade cultural com uma incomprovada graduação das capacidades mentais. A “primitividade” dos costumes de certas sociedades era entendida como manifestação de pobreza de espírito, como estupidez colectiva. Ao longo do séc. XX, a crítica desta visão auto-centrada conduziu à valorização da riqueza e complexidade de culturas antes vistas como frustres e incivilizadas. O pressuposto anterior foi substituído por um novo, o da inteligência colectiva, como fonte da qual emanava harmonia social e criatividade cultural. Consequentemente, pressupor a existência de uma “estupidez colectiva” tornou-se tabu, particularmente entre antropólogos.
E, no entanto... quando olhamos em nossa volta, sentimos por vezes que o velho ditado castelhano sobre as bruxas se aplica a este tópico: “Yo no creo en estupidez colectiva, pero que la hay, la hay”. Isto poderia vir a propósito da aparente fatalidade do destino suicidário do ser humano actual, irremediavelmente decidido a destruir o equilíbrio ambiental que lhe assegura a sobrevivência. Mas prefiro não erguer tão alto a minha arrogância reprobatória, e ficar-me por um bem mais modesto exemplo: o da relação difícil que os portugueses parecem ter com o debate intelectual no que respeita ao tema, a uma vez jurídico, patrimonial e económico, dos “comuns” (a própria estranheza lexical do termo, tradução literal do inglês commons, sugere já ausência de reflexão e debate público sobre o assunto). Os “comuns” constituem-se como o terceiro e muito desdenhado pilar da teoria do Direito, habitando um espaço ambíguo entre o público e o privado. Em Portugal, o Direito dos “comuns” reporta-se explicitamente à gestão comunitária de terrenos incultivados, ou “baldios”. Herança de formas de auto-organização local, o comunitarismo é, no entanto, muito mais que simples gestão colectiva de terrenos de pasto por comunidades locais. É uma antiga instituição cultural que, desde a alta Idade Média, insinua uma importante brecha na concepção dualista que reduz as relações jurídicas e sociais à antinomia entre público e privado, no Direito romano.
Se olharmos em volta com um pouco de atenção, percebemos que os “comuns” não se limitam aos “baldios”. Por exemplo: a caça e a pesca são, em grande medida, usos individuais de bens comuns; assim também a vivência colectiva em espaços urbanizados, a gastronomia, e as múltiplas formas de conhecimento, tanto analógico como digital. O ar que respiramos, o mar onde nos banhamos e a terra que cheiramos são bens comuns, não públicos ou privados. Mais ainda, a própria ausência de reflexão sobre este assunto é manifestação de um outro direito comum: a estupidez colectiva (também lhe poderíamos chamar de “burrice comunitária”).
Reparei que a Quinta de El Carmen, na falda ocidental da Serra da Arrábida, se encontra à venda, pelo valor milionário de 12 milhões de euros, mas nada vem dito sobre o direito de romaria à sua ermida, nem ninguém parece querer preocupar-se com o assunto. A ermida foi privatizada pela 2ª Duquesa de Aveiro, a espanhola D. Madalena Girón, em 1560, que a ampliou e lhe atribuiu o nome presente, em honra de Nossa Senhora do Carmo (ou Del Carmen). Construída num ermo ou “baldio” que as comunidades locais usavam para a pastorícia e a obtenção de lenha e, em particular a aristocracia residente, como couto de caça, a ermida era anteriormente dedicada a Nossa Senhora da Pinha. Como a ermida do Cabo Espichel ou a do convento da Arrábida, é um antigo local de romaria local, como atesta a lenda do marido ciumento que Nossa Senhora impede de matar a mulher, atirando-lhe uma pinha à cabeça. Foi construída pelos mordomos da zona de Azeitão e paga por esmolas das comunidades. Atestam-se, ao longo dos séculos, bailes e representações dramáticas no adro da ermida. Em 1714, há notícia de que o Cabido de Lisboa mandou afixar uma nota pastoral na porta da igreja, suspendendo as festividades, sob pena de excomunhão, já que, aparentemente, não eram “tão honestas como era razão que fossem”. Os habitantes dos Casais da Serra e das Pedreiras fazem anualmente romarias à Capela de El Carmen, uns na quinta-feira de Ascensão e os outros a 18 de Agosto. Sendo parca a documentação histórica, comprova ainda assim a antiguidade das missas cantadas, dos sermões, dos arraiais com baile, e das refeições comensais.
Entalado entre o Direito público, que gere as relações entre os cidadãos e o Parque Natural da Arrábida, e o Direito privado que define os direitos e deveres de propriedade da Quinta de El Carmen, o Direito dos “comuns”, nomeadamente aquele que rege romarias, procissões, e até a apanha de pinhas, ervas aromáticas e caracóis nas faldas da serra, definha porque não encontra quem perceba a sua importância como garantia de sobrevivência de valores culturais. A estupidez colectiva é uma importante causa da "tragédia dos comuns".
 
 Jornal de Azeitão, Novembro 2021
 
 
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Uma história para esquecer

29/11/2020

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Como alguém uma vez lembrou, as sociedades humanas não conseguem apreender a História com letra maiúscula – quer dizer, a história em toda a sua plenitude e complexidade. A História está para além do entendimento humano. A história é, por isso, sempre “história para alguém”. Há, por isso, multitudes de histórias, ou seja, de selecções possíveis de pontos e eventos do passado vertidas em forma narrativa, para cada grupo, país e tempo. Contar ou escrever história é sempre escolher entre memórias, esquecendo umas e valorizando outras. Por exemplo, há uma história nacional preferida para o final da monarquia (a de Oliveira Martins); há uma para o período salazarista (a Damião de Peres); há uma para o interlúdio marcelista (a de Oliveira Marques); há uma história para o pós-25 de Abril (a de José Matoso). São tanto histórias para entender o passado a que se reportam como entender o momento para o qual foram escritas.

As histórias de Portugal espelham, sem as ler, as histórias de Espanha. As histórias locais divergem das histórias nacionais e estas das histórias gerais ou universais. As histórias liberais catalãs opõem-se às histórias conservadoras castelhanas. As histórias de Lisboa escritas por portugueses distinguem-se das histórias de Lisboa contadas por ingleses. Etecetera. Vem isto a propósito de uma entrevista lida há ano e meio no periódico Setúbal Mais, em que a presidente da Junta de Freguesia de Azeitão anunciava que “o palácio dos Duques de Aveiro foi vendido para se transformar num hotel de charme”. Lida hoje, após os extraordinários acontecimentos despoletados pela pandemia do Covid19, esta é uma memória em relação à qual é difícil decidirmos se vale a pena lembrá-la ou esquecê-la. É possível que o projecto esteja suspenso, adiado ou arquivado. Não faço qualquer ideia da situação actual, mas há duas reflexões que merecem ser feitas a propósito da informação disponibilizada.

A primeira é mais ou menos óbvia: a pandemia provocou um cataclismo na indústria turística mundial. Portugal é (ou era) um dos países do mundo mais dependentes deste sector – e por isso mais sensíveis às suas vicissitudes. Em termos estritamente económicos, as actividades turísticas contabilizaram 19,1% do PIB nacional em 2019, fazendo de Portugal o quinto país do mundo em que o turismo mais impacto tem (tinha) em termos de riqueza produzida. Hoje, penso que há razão para nos perguntarmos se faz sentido fingir que “vai ficar tudo bem” e fazer como se a pandemia fosse apenas um pesadelo passageiro após o qual podemos voltar ao “normal”. Um dos mais visíveis, relevantes – e malbaratados – patrimónios monumentais da região é o “palácio dos Duques de Aveiro”, enquadrando e encimando, com o “convento de São Domingos”, o rossio de Vila Nogueira. A trágico-cómica história do seu progressivo estado de abandono merece ser evocada para ajudar a pensar o seu futuro e o da vila. A pergunta fica aqui a aguardar resposta: valerá a pena destiná-lo à iniciativa privada hoteleira numa era pós-Covid?
 
A segunda, e complementar, reflexão é a seguinte: porque designamos ainda hoje ao arruinado edifício de “palácio dos Duques de Aveiro”? Não tivesse havido pandemia, estaríamos já hoje talvez a contemplar o arranque das obras de um “Palácio-Hotel” no centro histórico da vila. Mas o “palácio” foi durante mais séculos “ruína de palácio” que “palácio”, um aspecto da história local que parece preferível manter sob silêncio. E, antes disso, o “palácio” foi durante setenta anos “fábrica real de estamparia e tecidos de Azeitão”, que precedeu a hoje mais conhecida fábrica de chitas de Alcobaça. E antes da cedência do terreno para a construção do “palácio” em 1521, terá sido terreno de horta dos frades dominicanos desde a construção do convento em 1435. Porque se prefere chamar ao monumento “palácio” e não “fábrica”, “horta” ou “ruína”? Não tenho resposta, mas compreendo que seja mais conveniente para quem procura promover o turismo regional – mesmo em país republicano – polir pergaminhos aristocráticos que expor chagas patrimoniais ou valorizar histórias industriais.

Mesmo silenciando o bárbaro acto punitivo de um Marquês de Pombal utopista e nivelador contra a alta nobreza que resultou na destruição das propriedades dos Távoras e dos Aveiros (mas ainda assim preservou a de Azeitão), é “charmoso” falar da ruína como “palácio dos Duques de Aveiro” – é uma forma de contar a história local que valoriza a sua ligação à corte real e oblitera a sua ligação à emergente (e abortiva) economia industrial do país. E é também um silenciamento da incómoda tendência portuguesa para ceder património público a privados sem quaisquer garantias de que ele seja convenientemente preservado. Foi isso mesmo que aconteceu em 1775, com a atribuição de um alvará de cedência do “palácio” a empresários aventureiros que quiseram fazer uma fábrica de estamparia sem se preocuparem com os problemas logísticos causados pela ausência de estruturas para a importação de algodão e sua fiação. Foi isso mesmo que aconteceu quando a Fazenda Pública decidiu leiloar o “palácio” em 1846 sem procurar garantir a sua preservação futura. É possível que daqui a uns anos alguém esteja nestas páginas a discutir o charme decadente de um “Palácio-Hotel” desocupado.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2020
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Prendas da casa

30/9/2020

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Contava Raúl Brandão, n’Os Pescadores, que nos povoados pesqueiros ao longo da costa portuguesa, as mulheres fiavam e remendavam as redes, transportavam e vendiam o peixe. Mas, lembrava, não no Algarve: aí, a mulher era a prenda da casa; acumulava colares e brincos de ouro que empenhava depois para garantir alimento nos meses de míngua, e não trabalhava senão para manter imaculada a casa. Esta condição, que ele descreve magistralmente a propósito da sua passagem por Olhão, alterou-se profundamente ao longo do século XX, quando a mão de obra feminina se revelou vital para o incremento da indústria conserveira de atum, cavala e sardinha.
Também em Sesimbra as mulheres tendiam a manter-se apartadas das tarefas directamente ligadas à pesca, e eram elas a governar a casa. Mas, como no Algarve e em Setúbal, foram elas o principal recurso operário da florescente indústria conserveira que durante boa parte do século passado alimentava o mercado nacional e internacional. A elas cabia o amanhar, o limpar, o descabeçar, o cozer e o acamar das sardinhas nas latas; as tarefas masculinas nas fábricas eramç além do ofício de soldar as latas, o transporte e a arrumação do peixe que chegava das múltiplas armações que pontilhavam a costa arrabidina, e cujas estruturas arruinadas ainda se podem lobrigar nas várias covas e enseadas, da Azóia a Galapos. Mas, antes e depois da febre das fábricas de conserva que os industriais franceses introduziram em finais do séc. XIX – a Bela Vista, a Primorosa, a Pinto, a dos Gatos, do Chora, a Lusitana, a Francesa... -, era ponto de honra das mulheres dos pescadores não trabalharem, pelo menos fora de casa.
Nos anos setenta e oitenta do século passado, o aventureirismo dos pescadores garantia sem problemas este desafogo: quando começou a escassear o peixe na costa da península, aumentou-se o calado dos barcos e o que antes era impensável – a faina no alto mar – tornou-se rotina: dos mares de Sesimbra, Cascais e Peniche, a pesca alargou-se então para os bancos atlânticos do Gorrinche, das Canárias e da costa mauritana, atrás sobretudo do peixe-espada negro e do chicharro, porque agora o peixe apanhado podia vir refrigerado em gelo miúdo. A vida a bordo era inclemente: campanhas de quinze a vinte dias nos mares longínquos, trabalhando noite e dia em conveses descobertos, sem mais que breves descansos diários de duas horas em catres instalados paredes meias com as máquinas e os depósitos de fuel. Distrações eram uma miragem: o calor efémero das prostitutas de Safi ou Agadir, a sorrateira troca de garrafas de aguardente por barras de haxixe, o contrabando de óculos escuros e ténis canarinos, e sobretudo a esperança de regressar à vila para descansar alguns dias, antes da retoma da faina marítima. A parte – o soldo entregue após a venda na lota - era entregue à mulher e ala para o café e conviver com as outras companhas ao ritmo das imperiais esvaziadas. Comum era ver as mulheres irem reclamar os maridos à hora do jantar: no mar, mandava o arrais, em terra governava a mulher. Tanto mais que as saídas para o mar, que antes duravam um a três dias, passaram a ditar ausências muito mais prolongadas.
Nada desta vida passada indica, no entanto, que a condição das relações matrimoniais e laborais era fixada na pedra, ou que o trabalho na indústria conserveira tenha sido um momento sem par na história das mulheres de Sesimbra. A decadência da pesca e a expansão do turismo de veraneio na vila ditaram o regresso das mulheres da comunidade ao trabalho salariado. Mas já antes, no quarto final do séc. XVIII, por exemplo, quando a estamparia de tecidos de chita se lançou na região com a criação, pelo Marquês de Pombal, da Real Fábrica de Chitas de Azeitão, no edifício quinhentista que antes fora propriedade dos proscritos Duques de Aveiro, era encargo das mulheres de Sesimbra o fiar do algodão para alimentar os teares azeitonenses.
 

Jornal de Azeitão, Setembro 2020
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O estatuário luso

27/8/2020

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Dezembro de 1997: Lisboa preparava-se para celebrar a sua reentrada no circuito da globalização; homens e máquinas afadigavam-se nas obras da futura Expo98. Simultaneam­ente, do outro lado do Atlântico, em Nova Iorque, desenrolava-se o episódio final daquela que poderia ser considerada a mãe de todos os derrubes de estátuas. Após um ano de manifestações de protesto, as autoridades do Bairro de Queens decidiram proibir finalmente a ereção de uma portentosa estátua de 15 metros na frente ribeirinha que havia sido criada pela escultora Audrey Flack, graças a uma subscrição pública lançada pela comunidade luso-americana. A estátua de bronze pretendia celebrar a fundadora simbólica do bairro, a rainha Catarina de Bragança que casou com Charles II de Inglaterra, levando no seu enxoval chá, marmelada, garfos, Bombaím e Tanger. Foi o seu cunhado, o Duque de York e futuro sucessor da coroa, com o título James II, que, ao comprar Nova Amsterdão aos holandeses da Geoctrooieerde Westindische Compagnie (GVC), rebaptizou a cidade como Nova Iorque e deu a uma parcela do novo domínio inglês o nome de Queens, em homenagem à consorte lusa, e católica, do irmão.
A justificação explícita para “derrubar” a estátua antes mesmo de ela ter sido implantada foi que Catarina havia sido membro do conselho de administração da Royal African Company, durante séculos protagonista do tráfico de escravos de África para as colónias britânicas no continente americano. Foi uma pequena primeira vitória para os movimentos iconoclásticos anti-racistas norte-americanos, que curiosamente coincidiu com a nomeação de Trump como the Prince of Queens, pela presidente do bairro. De pouco valeram os argumentos da escultora, que defendia que a figura era evidentemente multirracial, dado que Catarina, sendo portuguesa, deveria ter a pele escura; e que os seus caracóis seiscentistas até evocavam rastas africanas. A estátua veio a ser destruída anos mais tarde numa fundição de Boston. Sem que se saiba bem porquê, uma versão miniaturizada da estátua despontou timidamente em data incerta e sem cerimonial público num recanto arredio do Parque das Nações, de onde ainda hoje mira algo atónica o Mar da Palha e a Ponte Vasco da Gama.
A intensa polémica nova-iorquina em torno da estátua de Catarina de Bragança não suscitou à data notícia de relevo em Portugal. Não pôde, portanto, ter motivado uma desejável discussão pública sobre a parte cruel da herança de Portugal no mundo: o tráfico e escravização de milhões de africanos para alimentar as manufacturas de açúcar, a mineração de ouro e produção de café – o casamento inglês de Catarina selou simbolicamente a passagem de testemunho dessa herança, e deu início à hegemonia britânica nesse lucrativo empreendimento intercontinental. Qualquer discurso crítico que menorizasse os feitos lusos em época de comemoração dos Descobrimentos teria de ser colectivamente silenciado e (auto-)censurado.
Um paradoxo salta à vista: no momento em que o país procurava projectar-se no caleidoscópio mundial, fazia-o concentrando-se sobretudo no auto-elogio histórico e alheava-se dos movimentos sociais contemporâneos que dilaceravam, e continuam a dilacerar, os países receptores do tráfico intercontinental de escravos. Exaltavam-se os mares fechando convenientemente os olhos ao sangue africano que por eles correu.
Não há que julgar o à-vontade com que por cá se apagam memórias e silenciam controvérsias. É assim que funcionamos e há razões para desconfiar da eficácia dos decretos que se propõem dissolver hábitos atávicos seculares. Mas, para fomentar uma relação salutar com a história e a política há que estar disponível para interrogar e para tentar compreender as raízes do nosso oblívio militante e do nosso pânico face à eventualidade de crítica.
A total ausência de debate crítico em Portugal sobre o estranho episódio da proibição da estátua de Catarina em Queens evidencia o localismo e a pobreza discursiva das disputas identitárias a que temos assistido recentemente. E, no entanto, é precisamente porque ela não suscita posicionamentos acalorados em Portugal que merece ser trazida para o centro da discussão, na medida em que redefine o contexto dos argumentos e confere profundidade temática ao problema que é reorganizar memórias históricas e procurar compreender e aproximar pontos de vista divergentes. Penso que a ninguém ocorre espichar, derrubar ou defender a Catarina miniaturizada do Parque das Nações. Pois que a atenção se concentre, não necessariamente na estátua em si, mas nas razões históricas e culturais que nos levam a ignorá-la completamente.
A censura do silêncio perante a crítica construtiva pode ser devastadora. É fácil citar vários episódios públicos que contam sempre a mesma história, com o mesmo desenlace: ao contrário da provocação gratuita que suscita emoções fátuas, a expressão de um pensamento crítico é habitualmente recebida com desconfiança e respondida com silêncio. O silenciamento de vozes divergentes, de visões alternativas e de posições fora da norma é um hábito arreigado em Portugal, ao qual quem se encontra em situação de poder decidir recorre sem nunca pestanejar.
Para justificar tal recusa ou incapacidade de debate crítico, cita-se com demasiada frequência a herança do período salazarista, como se ele tivesse surgido ex-nihilo e tivesse havido um antes onde ele teria desabrochado sem censura ou continência. Um cético poderia, no entanto, lembrar que as guerras liberais oitocentistas e o vórtice autofágico da Primeira República pouco mais foram que momentos caceteiros, que em nada lustraram pergaminhos de intelectualidade. Por trás deles estão três séculos de inquisição que causaram no país um trauma indelével e moldaram o modo como nos relacionamos ainda hoje. O Santo Ofício promoveu e generalizou a denúncia sistemática, a opressão e o silenciamento, a discricionariedade sem limite. Induziu um hábito colectivo arreigado: o da censura pelo silêncio e o medo da interrogação. Parafraseando Pe. António Vieira, diria que a Inquisição foi o nosso estatuário:

“Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
​

Faz-se hoje moda provocar soezmente e bater no peito pela defesa de identidades reinventadas. Mas este modo de falar e de fazer não conta como apelo ao diálogo, aniquila-o. Mais são que derrubar ou defender estátuas é não desistir de esculpir consciências. Porque, ao fim e ao cabo, os provocadores cortejos de extremistas mascarados de branco (a esconder a tez morena) frente a organizações anti-racistas, assim como os apelos ao derrube de uma (hedionda) estátua justificados por espúrias acusações de esclavagismo ao Pe. António Vieira são, antes de mais, embaraçantes manifestações de ignorância do que um bom debate pode ser e do que uma forte crítica pode valer.

Publicado n'O Público, 20 Agosto 2020.
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A Serra-catedral

27/8/2020

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O mundo lá fora dilacera-se entre variegadas investidas das políticas identitárias contra os ideais liberais da representação democrática, suportadas por sedes populistas e inclinações autoritaristas. A milésima metamorfose do capitalismo procura, pela calada, tirar proveito de crises existenciais declaradas ou previstas – corrupções, poluições, migrações, propagações virais e redes digitais. O mundo lá fora parece profundamente desequilibrado.
O ínfimo refúgio bucólico que é a Serra da Arrábida conserva – por enquanto, pelo menos – o poder encantatório, se não de nos fazer olvidar o mundo em desequilíbrio, de diminuir em muito o seu domínio sobre as nossas consciências. Ajuda, nesta empresa, ler Frei Agostinho da Cruz e Sebastião da Gama, dois poetas separados por quatro séculos, mas unidos pelo misticismo religioso e pela branda paisagem da estreita faixa arrabidina.
 
Escrevia o primeiro:
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano duma banda
E doutra já salgadas as do Tejo.
 
E o segundo respondia:
A Serra é catedral
Onde o órgão-silêncio salmodia.
 
As horrendas agressões que a sangram e desfiguram – a cimenteira de um lado e as pedreiras do outro, o casario informe que mastiga as suas bordas e brota no seu mato, o asfalto que lhe rasga as entranhas – enfraquecem mas não lhe extinguem o potencial contemplativo e a força refrigéria.
A insanidade humana deixa impunes e torna irreversíveis os actos assoladores de quem se arroga o direito de os cometer. Mas a serra absorve-os, dissolve-os e perdoa na sua brandura os algozes. A cimenteira injectada no Outão deveria ser encerrada, mas os poderes renovam-lhe a licença por mais umas décadas? Seja. A pedreira que, por gesto iníquo a Casa de Palmela concedeu nas traseiras do Calhariz continua a comer a montanha? Seja. O Palácio dos Duques de Aveiro salvo da demolição e salga na voragem do processo dos Távoras sobreviveu séculos para se plasmar agora em “hotel de charme”? Seja. O extraordinário convento arrabidino arruinou-se nas mãos de uma seita de origem coreana e é agora pousada disfarçada de uma fundação gestora do dízimo dos casinos macaenses? Seja. Os japoneses do Agar-Agar saquearam todo o coberto submarino que fazia da costa sul da Arrábida um dos mais preciosos berçários piscícolas do Atlântico Leste? Seja.
Na sua bonomia, indiferente à mesquinhez das coisas humanas, a serra-catedral tolera, perdoa, sorri – mesmo se lhe topamos, ou imaginamos topar, trejeitos tristes nos seus cantos silenciosos. A dança da orografia garante-lhe por mais uns milénios não apenas solidez mas mesmo um ligeiro incremento do alçado – ao fim e ao cabo, a serra ergueu-se das águas, empurrada pela força das placas tectónicas, e não se entrevê o seu afundamento em futuro de médio prazo.
E se a sua cobertura vegetal única de cotovelo mediterrânico enfaixado no Atlântico um dia se perder por incêndio malicioso ou catastrófica mudança climática? Será triste ver a linha do seu cabeço descabelada, mas ainda assim a catedral continuará a ser catedral, até ao dia em que os últimos fiéis deixem de a frequentar e de nela buscar refúgio do mundo lá de fora – que seja para aí rezar em desespero por uma qualquer salvação temporal, ou mais singelamente para nela contemplar as silhuetas inescrutáveis da eternidade.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2020

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PEXITOS

9/7/2020

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Fotografia de Luis Carlos Chagas Rodrigues (2006)
É (ainda) comum ouvir às gentes “do campo” arrabidino a expressão “pexito” para identificar um habitante da vila de Sesimbra. É um termo popular que realça, senão antagonismo, pelo menos uma certa diferenciação tradicional entre duas identidades locais.
A tradição popular é um bicho estranho. Passa de geração em geração sem suscitar dúvidas, mesmo quando o seu sentido se fragmenta e a compreensão se vai perdendo. Umas vezes é renovada, outras esquecida. Mas também acontece que os enigmas que nela se acumulam ganhem, com o tempo, o curioso direito de nela subsistir sem ser questionados ou reinterpretados. A tradição é reportada e revivida sem despertar dúvidas: conta-se assim ou faz-se assado porque sim. A falta de curiosidade em relação à razão de ser de um enigma torna-se ela própria parte integrante da tradição.
Tomemos como exemplo o caso da lenda da origem do culto do Senhor Jesus das Chagas, padroeiro da vila de Sesimbra. Não obstante algumas variações pontuais, a história contada pouco tem mudado nos últimos séculos:
 
No período da reforma anglicana, em início do séc. XVI, em que a destruição das imagens dos santos foi ordenada por Henrique VIII, a sua mulher procurou preservá-las colocando-as em caixotes e lançando-as ao mar. Entre elas, contava-se a imagem de Jesus que veio a aparecer milagrosamente erigida sobre a Pedra Alta, no areal de Sesimbra. No entanto, faltava-lhe um braço e nenhuma das tentativas de o substituir vingou.
Certo dia, uma velha que recolhia madeira na serra para a sua lareira encontrou um tronco, possivelmente de zimbro, que ao arder sem se queimar revelou ser o braço que faltava à imagem de Jesus.

 
É estranha a inclusão, na lenda, da imagem de Jesus no catálogo das imagens de santos a destruir pelos iconoclastas ingleses. Seria apressado presumir que ela se deveu a uma deficiente compreensão, por parte dos católicos sesimbrenses, do sentido das reformas protestantes do norte da Europa. Como não podemos chegar a saber o porquê da inclusão, fiquemo-nos pela constatação de que tal inclusão não é problemática para quem conta e ouve a lenda.
Que a imagem tenha aparecido sem braço e que este tenha sido descoberto, não no mar mas na serra, e por uma velha, também não causa perturbação nem origina qualquer explicação – apesar de ser óbvia a analogia com a sarça ardente do episódio da epifania de Moisés na montanha. É, tal como a própria aparição milagrosa da imagem na Pedra Alta, um enigma que se quer enigma – um mistério, propriamente dito. Podemos, claro, imaginar que a velha representa uma figura de curandeira ou mesmo de parteira, dadas as propriedades farmacológicas que eram antigamente atribuídas ao zimbro, mas a verdade é que o episódio não requer interpretação por parte de quem o relata ou o escuta.
A lenda é contada e revivida em Sesimbra durante a festa e procissão do Senhor Jesus das Chagas a cada dia 4 de Maio, dia em que a velha encontrou o braço na serra (este ano, pela primeira vez, celebrada à porta fechada, devido à pandemia). Não requer interpretação nem explicitação. Mas, como o gato que se esconde com a cauda de fora, relembra todos os anos que a imagem do padroeiro é compósita: se o corpo é de origem marítima e migratória, o braço é de local e serrano, e é nele que se concentra a sua força taumatúrgica. O braço enxertado, tal como a distinção popular entre “pexitos” e “gente do campo”, conta uma história que não necessita ser explicitada para ser entendida. Um amador de história local pode, ainda assim, suspeitar que a lenda sesimbrense evoca uma relação secular problemática entre dois modos de produção e de vida que, ao longo de séculos, marcaram a rivalidade entre Azeitão e Sesimbra e acabaram por levar, primeiro, à desanexação da freguesia de São Lourenço do município de Sesimbra (em 1729) e depois, por irracionalidade administrativa do liberalismo oitocentista, à sua diluição no município de Setúbal (em 1855).
 
 Jornal de Azeitão, Julho 2020
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O Monstro do Parque

30/6/2020

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Fotografia: dinheirovivo.pt
A estrada que liga, junto ao mar, o Vale da Rasca ao Portinho da Arrábida é uma estrada emblemática e, como se sabe, agora com trânsito muito condicionado. A ligação foi rasgada no início dos anos setenta e sempre causou tensão entre o apetite popular pelo acesso facilitado às praias e as intenções conservacionistas do Parque Natural. O risco de queda de rochas, sendo real, tem servido como justificação mal explicada e, por isso, mal compreendida, para um progressivo controlo draconiano do trânsito e do estacionamento dos veículos de quem vai a banhos na Figueirinha, em Galápos ou no Creiro. Até 1970, parava umas centenas de metros antes da praia de Galápos. Hoje, quase invisível na rocha, ainda se podem adivinhar os vestígios da pequena tasca que ali havia e depois se deslocou para a praia (é hoje o Restaurante O João). A estrada servia sobretudo de acesso a duas estruturas antitéticas nascidas no início do século XX, uma para curar os males que a outra amplificava: o sanatório, agora hospital, do Outão e a cimenteira da SECIL.
Atravessar o perímetro da cimenteira é uma experiência visual perturbante, tanto porque impressiona como porque choca. É difícil não nos perguntarmos, de cada vez que por lá passamos, porque razão uma cimenteira – e a pedreira anexa - é autorizada a operar bem no âmago de um parque natural, como uma chaga purulenta numa paisagem protegida reconhecida como das mais belas do país. Mas antigamente a experiência era muito mais intensa: à aproximação da cimenteira, os odores execrandos dos fornos penetravam nos pulmões como facas e as poeiras giravam no ar e manchavam toda a paisagem.
Hoje em dia, a poluição tornou-se mais insidiosa. Como a dos automóveis, deixou de ser tão visível, mas nem por isso menos perigosa. As micropartículas que se libertam dos fornos de co-incineração (onde se queimam resíduos quimicamente nocivos) são, por virtude dos ventos dominantes na zona, geralmente transportadas para a baía de Setúbal, preservando os doentes do hospital do Outão, poucos quilómetros para Oeste. Em Setúbal, misturam-se com as micropartículas emitidas pelos motores a diesel, pelo fuel dos navios e pelo sem número de fábricas poluentes da região. Ao contrário das partículas de monóxido de carbono, as micropartículas conseguem penetrar na corrente sanguínea e atingem todos os órgãos (dos seres humanos, como dos animais e dos vegetais). São, globalmente, responsáveis pela morte de quatro a sete milhões de pessoas todos os anos.
É por isso irónico que uma das causas principais de poluição ambiental da região tenha a sua origem num parque natural, que deveria ser precisamente um espaço sacro de protecção ambiental. A cimenteira deveria, não fosse a renovação da concessão motivada precisamente pelo programa de coinceneração, encerrar portas em 2021. Assim, vai continuar a contribuir para adoecer e matar a população de Setúbal até 2044. É também irónico que o Hospital do Outão, que nasceu como sanatório para curar doenças respiratórias, esteja em vias de ser desactivado e deslocado para a cidade, onde os doentes serão muito mais afectados pela poluição atmosférica que junto à beira-mar, numa paisagem idílica.
Neste momento em que o mundo se confronta com a pandemia de uma doença respiratória que mata sobretudo quem tem as defesas imunitárias enfraquecidas pela poluição atmosférica, há que reconhecer que somos vítimas de más opções passadas e aproveitar esta crise como oportunidade para repensar o futuro, valorizando em vez de continuar a destruir o extraordinário património que é o Parque Natural da Serra da Arrábida. Uma opção sensata seria encerrar já a cimenteira e voltar a dar ao hospital do Outão a sua nobre função de unidade para recuperação de doentes com doenças respiratórias. Houvesse coragem política para tal...
 
Jornal de Azeitão, Maio 2020
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Pode fazer-se tudo num parque natural?

30/6/2020

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Gostamos de falar de natureza como se fosse uma coisa onde não estamos, de onde não somos. E gostamos de imaginar que há “espaços naturais” intocados pela mão humana “civilizada”. Damos de barato que há, ou houve, uma humanidade mais próxima da natureza, que a habitou e nela se integrou sem a modificar e perverter.
 
Mas consistentemente a paleo-ecologia tem mostrado quão longe esta visão idílica está longe da realidade. Há centenas de milhares de anos, mesmo antes da chamada revolução agro-pastoril do neolítico, que o ser humano marca, transforma e molda as paisagens naturais em todos os cantos do globo por onde passa.
 
Neste sentido, vale a pena revisitar o significado do conceito de “parque natural”. Ao contrário do que se possa pensar, um parque natural não é suposto ser um espaço de onde o ser humano esteja ausente. Certas áreas do território nacional são sujeitas a regulamentação específica com o objectivo de não apenas “preservar” paisagens e habitats zoológicos mas também actividades humanas “tradicionais” (supostamente não muito intrusivas) e promover o turismo “sustentável”. Mas áreas que recebem o título de “parque natural” não estão sujeitas a medidas tão rigorosas de proteção estatal como as “reservas naturais” e os “parques nacionais”. Em Portugal, enquanto os parques naturais são zonas compatíveis com a propriedade e o uso privados, as reservas são de propriedade pública e tendencialmente não habitadas. A criação de parques naturais é relativamente recente em Portugal e foi inspirada, depois da revolução de 1974, pelos exemplos espanhol e francês (vide o Parque Natural de Donaña, na província de Huelva, por exemplo). Antes da criação dos parques naturais regionais, o Estado português criou dois “parques nacionais”, em áreas de propriedade pública: o da Gorongosa, em Moçambique, em 1960, e depois o da Peneda-Gerês, de 1971.
 
Podemos traçar a origem longínqua das reservas naturais nas coutadas reais (por exemplo, a floresta de Fontainebleau, perto de Paris), e também nos baldios (um assunto fascinante que daria por si todo um artigo). O Parque Nacional de Yelowstone, nos Estados Unidos da América, foi o pai de todos os parques nacionais – o Yosemite e a Floresta de Sequoias, que o antecederam, eram inicialmente parques do estado da Califórnia. Instituído em 1872, a sua criação foi contemporânea das chamadas “reservas índias” e o princípio era o mesmo: a constatação dos efeitos devastadores da conquista do Oeste pelas populações provenientes da migração europeia na América. Mas se o objectivo das reservas era o de acantonar os habitantes nativos em espaços confinados, permitindo-lhes manter as suas tradições após lhes ter roubado os territórios, já a criação dos parques nacionais tinha um outro escopo: o de criar e preservar paisagens idílicas em oposição às poluídas cidades da revolução industrial. A ideia de parque nacional está naturalmente ligada à construção do orgulho e identidade do Estado-nação.
 
Podemos assim perceber que, em termos de rigor conservacionista e orgulho nacional, um parque natural fique uns furos abaixo das reservas naturais e parques nacionais. Ainda assim, na minha modesta opinião, é preciso fazer um grande esforço de imaginação e sermos até irresponsavelmente tolerantes para continuar aceitar como boa a ideia de que manter a designação de “parque natural” na área supostamente protegida da Arrábida é compatível com a presença no seu seio de uma cimenteira e várias pedreiras que diariamente a esburacam e poluem. Sejamos ainda assim optimistas e agradeçamos aos deuses não haver centrais nucleares em Portugal. Estou certo que, se as houvesse, a primeira a ser construída seria no Vale dos Barris.

Jornal de Azeitão, Abril 2020
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Covid19 : A missed opportunity?

12/4/2020

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Hôpital de campagne à Camp Fuston, Kansas, pendant l'épidémie de grippe espagnole © Inconu
Most countries’ authorities are keeping silent in the face of the evidence being presented by a growing number of pathologists and epidemiologists linking air pollution with the immunodeficiency conditions of hospital patients with Covid19. To better understand this deafening silence, it is perhaps useful to go back in time and recall the great “forgotten pandemic” of the Spanish flu.
I must admit that I frequently felt puzzled by the way governments, so many years on, still highlight the celebrations of the Armistice of November 11, and by the omnipresence of national and local monuments evoking the soldiers killed during the First World War. In fact, it is only now that I begin to better understand the reasons behind this persistent obsession on the part of many national authorities in putting forth these collective rituals aimed at celebrating the memory of the victims of the Great War.
The construction of historical memories is not limited to the desire of highlighting critical events and give them a narrative structure; it is also done by selecting and by deleting memories which, for one reason or another, are perceived to be in conflict with that desire. The armistice itself was, at the time – unlike what happened on May 8, 1945 – a rather subdued celebration. There was a reason for this: the moment coincided with the tragic second wave of the influenza pandemic. The historiography of this pandemic is quite different from that of the two great wars in that it was not until the second half of the 1970s that it really began to attract the attention of historians. And it is only now, more than one hundred years later, that the general public is starting to understand how tragic it was. It was so obliterated from official records that it is now called the “forgotten pandemic”.
The 1917-1919 influenza pandemic is known as the “Spanish flu” not because it originated in Spain (which remained neutral during WWI) but because the Spanish press was not subjected to government censorship, unlike what happened in combatant countries. Therefore, the deadly outbreak in Spain became a recurring subject in the world press. It is now known that it originated in the US and was spread by American soldiers fighting in the European battlefields.

The governments of the combatant nations were by 1918 immensely discredited by the unnecessary horror of trench warfare. Fearing social upheaval and possible contagion of the Russian popular revolt against the Tsarist regime, they imposed widespread censorship on news relating to the flu pandemic that was by then rampant among the soldiers. The epidemic character of the pulmonary influenza was concealed and therefore preventive measures started to be implemented only when it was already completely out of control and spreading to the general population.
The flu pandemic claimed more victims than both world wars. It caused a drop in national GDPs equal to or greater than that of the First World War. The populations were so traumatized by the millions of deaths that it was partly responsible for the popular appeal of the various European authoritarian and dictatorial regimes which in the twenties and thirties advocated sanitary and hygienic ideologies that promised to build efficient state administrative systems in exchange for the loss of individual rights and freedoms.
The evocation of a memory is often done at the expense of deleting others. That is the reason why so many national authorities still vehemently celebrate Armistice Day: as a silent admission of guilt for their predecessors’ failure to manage the flu pandemic. When several government officials today speak of a “war against the coronavirus”, they are unconsciously re-constructing previous narratives, to make sense of what is, in fact, an absurdity: does the Coronavirus have a will and a conscience to understand that it is “an enemy” and that we are in a “state of war” against it? In insisting in this reductionist narrative, they (and we) are unfortunately obliterating other more meaningful possibilities of understanding the extraordinary events that we are experiencing globally.
We may, therefore, be facing a missed existential opportunity: that of considering the generalized pollution caused by the millions of tons of particulate matter that we humans produce daily as an “enemy that must be defeated”, “whatever the cost”.

TruePublica Editors Note – Air pollution in the UK is a major cause of diseases such as asthma, lung disease, stroke, and heart disease, and is estimated to cause forty thousand premature deaths each year, which is about 8.3% of deaths while costing the NHS around £40 billion each year. In 2017, research by the Lancet Countdown on Health and Climate Change and the Royal College of Physicians revealed that air pollution levels in 44 cities in the UK are above the recommended World Health Organization guidelines. The Royal College of Paediatricians, the Royal College of Physicians and Unicef have all made comment about unsafe air pollution and increased mortality associated with winter and influenza deaths. 

Published in TruePublica, 14 April 2020
Publié à MediaPart, 11 Avril 2020
Publicat a L'Accent, 11 Abril 2020
Publicado n'O Público, 10 Abril 2020

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A UNIVERSIDADE SEM PROFESSORES

13/3/2020

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Estrela Alpha Orionis (Betelgeuse)
No seu livro Contagious: Cultures, Carriers and the Outbreak Narrative, Priscilla Wald analisa a génese e cristalização de uma fórmula narrativa mundial sobre doenças transmissíveis: a “narrativa do surto”. Não sendo porventura o termo “narrativa” o mais apropriado, já que vem amalgamar “relato”, “representação” e “ritual”, a análise é ainda assim perspicaz: evidencia que, desde o HIV ao SARS, as declarações de pandemia desencadeiam fenómenos de histeria colectiva com estruturas discursivas e agenciais recorrentes: os tipos de personagens e seus posicionamentos, os estágios do drama e as formas vocabulares de um novo surto elaboram-se sobre os do surto anterior.

A “narrativa do surto” começa com a identificação de uma infecção emergente, ilumina mediaticamente casos paradigmáticos de contacto e contágio, espraia-se em definições e descrições de “pacientes zero”, “transmissores” e “sintomas”, debita estatísticas efémeras e contraditórias, e termina em panegírico do trabalho epidemiológico transnacional que a finalmente contém. Merece também atenção a conexão genealógica que a autora estabelece entre a dramatização dos pânicos colectivos despoletados por narrativas de surtos microbianos contemporâneos e aqueles causados, durante o período da Guerra Fria, pelas ameaças alienígenas, os sequestros, as lavagens cerebrais e outras fantasias de ficção científica.

Uma “narrativa” tem sempre um contexto ideológico e uma das consequências – como nos mostrou à saciedade a “guerra contra o terrorismo” – é a instalação de políticas públicas que tendem a aumentar a capacidade de intrusão das autoridades nas esferas privada e comunitária. Uma crise é sempre uma oportunidade de mudança.

O presente drama global – a pandemia do Coronavirus (que está para o COVID19 um pouco como o Terreiro do Paço está para a Praça do Comércio) – tem produzido alterações extraordinárias na normalidade da mobilidade internacional, nacional e local. Os seus efeitos humanitários, sociais, económicos e políticos são ainda incalculáveis. Mas há um domínio em que a sua previsibilidade parece ser já semi-manifesta, e o qual tenho seguido mais de perto: o do ensino, e em particular, o universitário. O cancelamento coercivo de eventos internacionais, a suspensão de aulas e o encerramento de instalações são apenas a face mais imediata e visível da reacção-transformação em curso. O interessante (ou o preocupante, conforme o ponto de vista) é a recorrência com que expressões como “e-learning”, “ensino à distância” e “ferramentas digitais” têm emergido como soluções de aparência paliativa, para precaver quebras na acção lectiva e certificadora das universidades.
Por curiosidade diletante, tenho lido alguma literatura sobre o impacto da peste bubónica no mundo universitário medieval. Por comparação com o conjunto das populações afectadas no séc. XIV, o meio universitário parece ter sido relativamente poupado. Nos casos para os quais há dados quantitativos, os casos fatais mostraram ser bastante reduzidos e os números globais, seja da população estudantil ou docente, não sofreram grandes alterações ao longo do século. Mas há uma correlação temporal entre os anos de ocorrência da “peste negra” e certas transformações (certos autores falam especificamente de “declínio”) na qualidade do ensino, na organização dos curricula e na preparação prévia dos estudantes. É fortemente provável a peste negra ter causado alterações no mercado de trabalho e nas expectativas dos estudantes. É até possível que tenha contribuído para reforçar uma tendência para a reorganização interna das universidades (como aconteceu com a criação dos colleges de Oxford). Mas os dados parecem sobretudo apontar para o facto de a crise interna, relacionada com o seu financiamento, ser anterior à epidemia.

Uma analogia histórica vale o que vale como argumento. Serve para pouco, para além de nos inspirar a reflectir sobre o presente, sem quaisquer pretensões deterministas. Seria difícil argumentar em poucas palavras sobre a realidade da crise em que as universidades se encontram actualmente. Que, de corporações elitistas, se transformaram em empresas certificadoras de massa, parece haver pouca dúvida. Que a desqualificação do estatuto e funções dos docentes e investigadores é generalizada, também é certo. Que a precarização do trabalho universitário serve sobretudo os interesses das gestões empresariais é inquestionável. E já se falava de “e-learning” e de “ensino à distância” muito antes da epifania que o Coronavirus parece estar a provocar nos gabinetes das reitorias e conselhos directivos universitários. Mas não seria de todo inimaginável que o provisório passasse a definitivo, e que uma solução de recurso viesse a ser a porta que esperava ser aberta para uma transformação radical do sistema de ensino universitário. Os gestores já andavam a questionar há muito a racionalidade económica de manter um corpo docente contratado que cria problemas constantes no deve-e-haver das instituições. Mas não há como uma boa “narrativa do surto” para fazer vingar a solução óbvia: a universidade sem professores.

Publicado n'O Público, 12 Março 2020
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    Manuel joão ramos

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