MANUEL JOÃO RAMOS
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La Dulce Vita

6/10/2022

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Está a vila, a região e o país cheios de imigrantes franceses. São parte não menosprezável da nouvelle vague que tem aspergido, em anos recentes, as costas lusas. Muita água passou desde as invasões napoleónicas de má memória e esta nova presença nada deve a ensejos de expansão militarista. Antes, se quisermos enveredar por paralelismos históricos, evoca mais o súbito cosmopolitismo do país no início da era de quinhentos. As razões do fenómeno e as motivações dos novos migrantes serão, como sempre são, variadas. Mas pesou certamente a liberalização cavalgante do mercado imobiliário, a força do rent gap, o reencaminhamento do turismo de um norte de África tomado por instabilidade política, e o escandaloso programa de isenção de impostos a reformados europeus (somado ao ainda mais escandaloso programa dos vistos gold).
 
Certo é que o pendulo migratório oscilou em sentido contrário ao da histórica rota da emigração tuga com uma mão à frente e a outra atrás. A integração da diáspora lusa no tecido urbano multi-cultural francês fomentou, por lá, percepções a uma vez nostálgicas, exóticas e paternalistas em relação ao país de origem dos maçons, carreleurs e concièrges. Viemos assim a ser tomados, não propriamente como europeus, mas como simpáticos, brandos e submissos magrebinos católicos. Para as massas que tinham ganho o hábito de viajar para as kasbahs marroquinas ou argelinas, a vida em Campo de Ourique ou na Vila Rica é encarada como uma alternativa soft, com metade das moscas e o dobro do saneamento de Marrakesh e Monastir. E, além disso, há vinho castiço, queijo imitadiço, café barato nas esplanadas, e cada vez mais filmes francófonos nos canais televisivos.
 
Uma discreta torrente de filmes, romances, documentários, e álbuns de fado fusion muito contribuiram também para apimentar a curiosidade gálica pelo país do passtel dê natá. E nós correspondemos, mas – digamo-lo abertamente – com subtis “empoderamentos”. Somos os primeiros na fila das novas patisseries, mas deixámos de nos vergar à língua de Molière, cheios que estamos com a língua de Shakespeare e Eminem. Não nos deixamos impressionar pela cuisine française, sabemos que um DOP da Península de Setúbal vale dez Côtes du Rhone, preferimos ostentar Gucci a Viuton, e apoiar o Barça contra o PSG.
 
Misturados neste enxame migratório do além-Pirenéus vêm também os retornados das cages dorées, primeiras, segundas e terceiras gerações da diáspora lusitana. Vêm reformados, retirados, retratados, simplesmente saudosos, ou então desempregados do mercado de trabalho francês.
 
(Uma palavra breve sobre o sentido de chômeur em francês: trata-se de um termo que remonta à Idade Média e que significava, na origem, alguém que devido ao calor estival fazia uma pausa no trabalho (caumare, em occitano e latim); com a crise económica de 1846, passou a designar os muitos milhares de desempregados que vieram a participar na revolução de 1848 contra a chamada monarquia de Julho).
 
Na fronteira entre os concelhos de Setúbal e Sesimbra, na urbanização cogumelo do Alto das Vinhas, tive a muito grata surpresa de conhecer a Dulce, alentejana de afável olho azul e desarmante sorriso que, após 40 anos a trabalhar como maquilhadora para a TF1, a Arte e a M6, deu uma volta à vida e fez o caminho de regresso ao país natal. Percorreu o litoral em busca de pouso para o negócio que decidiu abraçar: a confecção e venda de pizzas caseiras num moderníssimo foodtruck. Aparcou brevemente na Fonte da Telha mas, porque o casario é ali todo ilegal, continuou a procurar até que encontrou uma moradia mignone com jardim entre os pinheiros do Alto das Vinhas. Quando a Câmara Municipal de Sesimbra lhe recusou licença para instalar o foodtruck em espaço público da vila, não desarmou. Perguntou ao funcionário: “mas posso instalá-lo no meu jardim?”. Como o regulamento municipal parecia ser omisso quanto à possibilidade, a resposta veio positiva e, desde então, a Dulce serve deliciosas pizzas soberbamente maquilhadas ao gosto do cliente no seu cuidado jardim, testemunho da estética fusion alentejano-parisiense.
 
E, como inevitável bónus, os clientes caem apaixonados pelas doces modulações do seu sotaque.
 
 Jornal de Azeitão, Outubro 2022
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A Tragédia dos Comuns

30/5/2022

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A Quinta da Periquita, na Aldeia da Portela, hoje um “alojamento local” propriedade de investidores estrangeiros para uso de clientes também maioritariamente estrangeiros, não é propriamente um exemplo de quinta histórica ao contrário, por exemplo, da Quinta de Santo Amaro, da Quinta das Donas, ou do Casal do Bispo (a antiga Herdade da Infanta). O edifício foi reconstruído há pouco mais de 40 anos, pelo Juiz Francisco Rolão Preto, filho e homónimo do polémico monárquico integralista.
 
A quinta e o edifício em si não têm nada de particularmente notável, tirando a vista magnífica dos contrafortes da Serra da Arrábida. Para mim, uma parte do seu charme está na ligação indirecta a Rolão Preto pai. De cada vez que passo pela Estrada dos Barrancos, à saída do Largo da Portela, relembro-o, não tanto porque foi o fundador dos Camisas Azuis, o entusiasmado jovem de inclinações falangistas que conviveu com a família de Primo de Rivera, mas porque, enquanto fundador da Convergência Monárquica e posteriormente do Partido Popular Monárquico, foi um dos principais representantes do desditoso movimento comunitarista português. De facto, a mais interessante parte da sua obra literária é precisamente aquela que ele dedica à longa história do comunitarismo em Portugal e à defesa desse ideal.
 
Essa corrente silenciosa e grandemente silenciada pretende (ou pretendeu, porque hoje pouca coisa de discussão política corre ou sequer escorre em Portugal) reviver ideias e práticas seculares de organização social local de tendências colectivistas que se cristalizaram durante a Idade Média e foram progressivamente desarticuladas à medida que o Estado se centralizava e o Direito perdia o seu tertium genus, que era o direito comum para vantagem do binómio público/privado.
 
O direito ao uso comum de terras foi consagrado juridicamente nas Ordenações Manuelinas: para “os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras”, porque “proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e outros frutos”. Desde então, foi retrocedendo até praticamente desaparecer do Direito Civil durante o Estado Novo, ressurgindo timidamente na legislação posterior ao 25 de Abril de 1974.
 
No norte do país, como na Galiza, o uso comunitário dos baldios e a defesa da propriedade comunal está ainda viva, mas o facto de o poder autárquico se poder imiscuir na sua gestão tem resultado em infelizes atropelos ao direito comum, em benefício dos cofres de juntas de freguesia que cedem os baldios para, por exemplo, colocação de parques de eólicas em elevações ventosas. Sem estruturas, ideias ou pessoas que o defendam, o espaço do direito comunitário (que os ingleses designam como law of the commons, distinta da common law) é consumido pelo direito público e pelo direito privado.
 
A Serra da Arrábida está cheia de espaços baldios, de práticas comunitárias (ou pelo menos da sua memória). Mas, num mundo em que prevalecem os interesses públicos e privados, não podemos senão assistir saudosos à lenta morte trágica dos comuns. O caso, reportado nos jornais, da polémica em torno dos direitos comunitários no que respeita ao uso colectivo de espaços nas margens e interior da Herdade da Comenda (o parque das merendas junto à Ribeira da Ajuda, o acesso à praia, o caminho de Santiago) é claro sinal do estado comatoso em que se encontram hoje os ideais comunitaristas. A indignação popular contra as vedações instaladas pelo novo dono da Comenda, o fundo imobiliário Seven Properties, da Mirpuri Foundation, levou a que os setubalenses se concentrassem para gritar “A Comenda é nossa!” em 2019, numa manifestação em defesa do interesse comum. Mas rapidamente a autarquia se acaparou do processo, que a partir daí se transformou num jogo político no qual o direito público (nomeadamente o do embargo) tem digladiado contra o direito privado dos fundos de investimento turístico. E, por esta via, o direito dos comuns se vai esboroando até desaparecer, como uma praia sem areia na maré cheia.
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2022
 
 
 
 

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A escura, enigmática, Arrábida

4/2/2022

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O Dunkles rätselhaftes Österreich (“A Escura, enigmática, Áustria”), de 1994, é a segunda parte de série pseudo-documental Das Fest des Huhnes ("O banquete do frango”) de Walter Wippersberger. Trata-se de uma sátira mordaz ao tradicional género do documentário cultural, em que o antropólogo (europeu ou norte-americano) visita e dá a conhecer ao público (europeu ou norte-americano) os costumes exóticos de populações tradicionais africanas ou ameríndias. Um antropólogo africano fictício, Kayonga Kagame, apresenta o programa Fremde Länder, Fremde Sitten (“Terras estrangeiras, costumes estranhos”) na fictícia estação de televisão AllAfricanTele. O antropólogo dá a conhecer ao seu público (supostamente africano) os exóticos costumes dos povos selvagens do Tirol austríaco, entrevistando os habitantes locais e explicando os seus estranhos hábitos ancestrais. Na parte final do filme, procura entender o enigmático ritual tirolês de subir em perigosa peregrinação ao topo das altas montanhas dos Alpes para depois, colocando pedaços de madeira nos pés, as voltar a descer aproveitando as encostas nevadas, e finalmente engorgitar generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio. É uma divertida visão das práticas do alpinismo e do esqui de montanha, olhadas de um imaginário ponto de vista africano que revela o absurdo do esforço e do risco físico de subir montanhas a pulso para depois, com não menos risco, as descer esquiando em grande velocidade.
 
Hoje em dia, não só há inúmeros sites na internet anunciando percursos pedestres nos trilhos da Serrra da Arrábida mas proliferam as micro-empresas oferecendo caminhadas guiadas através dos variados pontos cénicos do parque natural, de Azeitão ao Creiro pela Serra do Risco, do Castelo de Sesimbra às pegadas de dinossauro do Cabo Espichel, de Palmela à contracosta. Graças às benesses do aquecimento climático, têm-se multiplicado os fins de semana ensolarados, mesmo em pleno inverno, o que constitui irrecusável magnete para que uma cada vez mais apreciável franja da população citadina, lusa ou estrangeira, venha calcorrear os ancestrais trilhos arrabidinos. Uma destas propostas caminhadas é a que, saindo do Rossio de Vila Nogueira, ou da vizinha Fonte dos Pasmados, ruma a sul ziguezagueando pela inicialmente suave inclinação das faldas da Serra do Risco, para finalmente enfrentar os contrafortes do Alto do Formosinho, ou Monte do Alvide, e visitar o chamado “Castelo dos Mouros” (antes também conhecido como o “Jogo dos Mouros”), o local de um antigo povoado fortificado da Idade do Bronze alcandorado na crista norte da serra, no esporão calcário bem visível para quem, sem precisar arriscar-se na prática montanhista da Serra do Risco, mira a paisagem a partir das esplanadas dos cafés da Rua José Augusto Coelho.
 
Ora, se bem que os anúncios dos percursos pedestres refiram habitualmente que o trilho do “Castelo dos Mouros” segue o traçado ancestral dos acessos proto-históricos ao topo da serra, geralmente pouco se estendem sobre a história que medeia entre a Idade do Bronze e a época actual. No fundo, a história da carochinha que os sites e anúncios contam tem uma leveza narrativa muito símil à dos condutores de tuk-tuks que oferecem visitas guiadas ao casco histórico da cidade de Lisboa. São constituídos por pedaços de frases rapinadas de outros sites ou de documentos em formato PDF facilmente encontráveis numa busca por palavras-chave num qualquer browser. Nem se lhes pede mais, nem os clientes caminheiros querem saber mais. Pouco interessa, para a prática do alpinismo arrabidino, saber que a passagem do Alto do Formosinho é um os marcos mais pregnantes do antigo Círio da Nossa Senhora da Arrábida, e que a sua memória se tem diluído na consciência histórica das autoridades locais azeitonenses, a tal ponto que a romaria, que antes era realizada no Dia do Espírito Santo, em finais de Maio, acabou por ser deslocada para o mês de Julho, para coincidir com as recentemente fabricadas “Festas da Arrábida e Azeitão”. Também pouco ou nada interessa, aos caminheiros urbanos e aos seus guias turísticos, saber que na sexta-feira de Páscoa os mais ousados preferem deixar o carro em casa e sobem os trilhos da serra até ao Alto do Formosinho, para depois descer a encosta sul até à praia do Creiro onde engorgitam generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio, não a acompanhar um banquete de frango como os tiroleses, mas preferivelmente uma feijoada de choco.
 
O final do filme de Wippersberger foca-se na invasão estival do Tirol por exércitos motorizados de turistas alemães e na relação subserviente que os tiroleses, por um lado tão ciosos da sua cultura independente, mantêm com os invasores endinheirados, abrindo-lhes as portas das suas casas e banqueteando-os com pratos da culinária local. Esta cínica referência aos efeitos perversos do turismo austríaco encontra, como bem sabemos, ecos óbvios na forma como o poder local e os empreendedores da vila abraçam os cifrões que pingam do irreversível e acrítico processo de turistificação da “Arrábida e Azeitão”.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2022
 
 
 
 
 
 
 
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​Azeitolândia

16/6/2021

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Se bem me lembro... foi há 15 anos, mais ano menos ano, que me sentei no gabinete do vereador da mobilidade da Câmara Municipal de Setúbal para lhe expor entusiasmado revolucionárias ideias de pedonalização da Rua José Augusto Coelho, o principal eixo viário de Vila Nogueira de Azeitão. Falei-lhe da importância de atender aos utentes frágeis na regeneração urbana, da urgência de melhorar a qualidade dos espaços públicos, da necessidade de revivificação do centro da vila. Citei-lhe, como se deve quando se pretende impressionar políticos portugueses, exemplos de grande sucesso vindos de fora, do estrangeiro. E saí da reunião certo de que tudo o que eu lhe tinha dito havia entrado por um ouvido e saído pelo outro, intocado por qualquer sinal de actividade neuronal. Na altura, admito, movia-me o fervor missionário e civilizador do arauto pregando a sustentabilidade urbana e a bondade da mudança de paradigma na gestão dos espaços públicos viários.
 
Alguns anos depois, por volta de 2012, começou a falar-se de planos de reabilitação urbana para Azeitão, com voluntariosas exposições na Casa do Povo por parte de políticos e técnicos camarários. Em 2013, a Assembleia Municipal aprovou uma deliberação definindo a área de reabilitação urbana de Azeitão (isto é, a área a intervencionar), passo prévio necessário para ser alterado o PDM e criar o plano estratégico da ORU (Operação de Reabilitação Urbana), o que veio a acontecer em 2016. O diagnóstico apresentado no preâmbulo do documento diz o óbvio para quem conhece um pouco a vila: população envelhecida, imobiliário degradado e 24% do casario devoluto. E ancora claramente toda a operação de reabilitação, não em preocupações com a melhoria da qualidade de vida da população, mas nas virtudes da promoção turística da região. Ou seja, o casco antigo da vila é olhado como isso mesmo: um casco. Um casco que, convenientemente esvaziado através de incentivos fiscais à transmissão imobiliária – nomeadamente por via da isenção do IMI e do IMT – poderá ser objecto de “reabilitação” para fazer do centro da vila uma Disneylândia para usufruto das turbas de turistas em busca do “produto Arrábida” (sic) e dos aromas de Baco. Toda a intervenção está pensada para fazer de Azeitão uma máquina de moedas. Para tal, há que lançar mão ao “património”, para o pôr a render: embelezar fontes, polir brasões, limpar fachadas, e decorar tudo a arvoredo e calçada “à portuguesa”. E lá está, preto no branco do plano estratégico, a inevitável referência à pedonalização da área.
 
O que o vereador da mobilidade não quis ouvir vindo de mim em 2005, vem agora o plano apregoar triunfantemente. Mas o entendimento do que é a função da pedonalização de espaços públicos viários alterou-se profundamente: a intervenção, segundo o ORU, não é feita a pensar em quem vive na vila, mas sim em quem a virá visitar; não serve para reter a população da vila, mas para a substituir por outra população mais afluente, provavelmente falante de francês ou de outra língua, europeia ou não. O plano estratégico da Câmara de Setúbal não é um plano de reabilitação mas sim de gentrificação e de turistificação da vila. E o que se passa no pequeno microcosmo de Azeitão, sabemos que se tem passado um pouco por todo o país – um país que pouco produz a não ser sol, que pouco vende a não ser “património”.
 
Vão longe os tempos em que, ingenuamente, me batia por melhor qualidade dos espaços públicos crendo que a pedonalização de ruas podia ser entendida pelos políticos portugueses como a atribuição (ou melhor, a reposição) dos direitos dos peões à rua. Na gíria da política nacional, a palavra “pedonalização” está intimamente ligada a visões de cifrões ganhos à custa do tolo turista que, sem ter aprendido as valiosas lições da pandemia do Covid19 e da necessidade de reduzir as emissões carbónicas das viagens aéreas, insiste em vir cá apanhar sol, afugentando dos centros urbanos os habitantes locais a que eles parecem achar tanta graça.
 
 Jornal de Azeitão, Junho 2021
 

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ir a banhos

30/6/2020

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Lota na praia de Sesimbra, fotografia de Artur Pastor, 1960
Entre as muitas frases memoráveis do filme Lawrence da Arábia, de David Lean, destacam-se duas sobre o deserto. A primeira é do Príncipe Faisal, que acusa Lawrence de não ser de mais que um “inglês amante do deserto”: “Nenhum árabe ama o deserto. Adoramos água e árvores verdes. No deserto não há nada, e ninguém precisa de nada.” A segunda é do próprio Lawrence, respondendo ao jornalista americano que lhe pergunta porque se sente atraído pelo deserto: “porque é limpo”.
 
O que atrai numa praia, pequena amostra de deserto banhada por água não potável? Vale a pena lembrarmos a história desta atracção, agora que, pela primeira vez desde que a polícia marítima do Estado Novo deixou de assediar banhistas de bikini, as autoridades regulamentam acessos e fiscalizam comportamentos a ter nas praias portuguesas, devido ao receio de propagação viral em pleno Verão.
 
Os hábitos balneares nasceram em finais do séc. XIX entre as camadas mais abastadas das populações urbanas europeias. Em Portugal, a ideia de “ir a banhos” para apanhar sol e ar carregado de iodo e sal foi impulsionada pela família real e pela alta burguesia. A urbanização que acompanhou a linha férrea Lisboa-Cascais tornou-se um mostruário das diferenças de classe: veranear não era simplesmente “ir à praia”, mas sim replicar a vida urbana cosmopolita numa atmosfera de lazer, repleta de visitas sociais, festas, jogos e complementar bisbilhotice, construindo em modo acelerado palacetes e “villas” numa orla marítima que nunca antes teria sido considerada viável para urbanização. Enquanto as altas esferas se divertiam no pequeno povoado piscatório de Cascais que tinham tomado de assalto, a pequena burguesia deleitava-se nas praias da Cruz Quebrada e Algés.
 
As diversas vagas de urbanização da orla costeira dão conta da progressiva popularidade destes hábitos, que se foram solidificando à medida que o direito à pausa no trabalho assalariado se implantava nas várias profissões, primeiro do sector terciário, depois secundário, e finalmente primário. As razões de origem eram já aquelas que nos levam hoje às praias no Verão: a limpeza e higiene sanitária. Fugia-se, como hoje, da poluição e dos miasmas das cidades insalubres para recobrar forças vitais para os meses invernais. Tornámo-nos progressivamente “ingleses amantes do deserto”, que suplantámos os “árabes” que o habitavam. Assim foi invadida Sesimbra, depois o Portinho da Arrábida, e mais recentemente a Aldeia do Meco e a Lagoa de Albufeira. Em Sesimbra, a arte da xávega é agora apenas praticada como atracção turística por iniciativa camarária; a lota na praia, dos dois lados do Forte de Santiago, desapareceu no início dos anos setenta; os grupos de pescadores que “desemachuchavam” os aparelhos de espinhel e consertavam as redes de emalhar foram escorraçados do areal (e das ruas da vila) nos anos noventa. As várias “covas” (pequenas enseadas) na costa sul da Serra da Arrábida, do Portinho à Azóia, albergam ainda algumas ruínas dos edifícios das armações de pesca da sardinha, mas os únicos habitantes ocasionais são os veraneantes que chegam por barco ou descem as escarpas a pique. As praias, as tais amostras de deserto que são hoje um bem raro democraticamente cobiçado, eram antes simples espaços funcionais para o trabalho das populações piscatórias (ancoradouros, lotas, etc.) ou então parte de circuitos de peregrinação religiosa: desde a “Pedra Alta” da praia de Sesimbra, onde primeiro apareceu a imagem do Senhor Jesus das Chagas, ao Creiro, onde na Semana Santa as populações rurais de Azeitão se dirigiam em marcha processional, ou às milenares festas da Senhora do Cabo, onde às populações locais se juntavam os peregrinos das freguesias saloias e, até ao séc. XIX, a própria casa real e alta nobreza senhorial... As praias eram locais de culto que, diz-se, antes de serem cristãos tinham sido muçulmanos. Antes de nos tornarmos “ingleses” urbanos, os “árabes” rurais que já fomos não víamos nos areais costeiros muito mais que nada.


Jornal de Azeitão, Junho 2020
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    Manuel joão ramos

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