MANUEL JOÃO RAMOS
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Quando um velho morre

21/7/2023

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“Quando um velho morre, é toda uma biblioteca que arde”. Esta frase é habitualmente referida como sendo “um antigo provérbio africano” que valoriza a importância da transmissão oral do conhecimento nas sociedades tradicionais daquele continente. 
 Os provérbios são fontes interessantes para quem investiga história oral na medida que é assumido que tendem a ser reproduzidos de geração em geração sem modificações palpáveis, sugerindo assim uma certa estabilidade dos valores éticos e das tradições culturais. São também tomados como exemplificações da sabedoria popular cuja mensagem é frequentemente capaz de sobreviver intacta a traduções em línguas diferentes e a apropriações culturais várias. Também é possível que, mesmo na ausência de contactos directos, populações longínquas formulem frases com sentidos semelhantes. Embora certos provérbios portugueses não encontrem correspondente noutras línguas europeias, é perfeitamente admissível que a expressão “a mulher quer-se pequenina como a sardinha”, que tanto quanto sei não viajou sequer até Espanha, possa ser independentemente formulada pelas populações de pigmeus das florestas do Congo ou pelos bosquímanos da Namíbia (com algumas modificações, dada a inexistência de sardinhas na floresta de M’buti e no deserto de  Kalahari). 
 No caso do “provérbio africano” acima mencionado, quem o ouve (ou lê) poderá duvidar se ele é efectivamente “antigo” e supôr, ao invés, que se trata de um pseudo-provérbio, falsamente atribuído a uma indefinida africanidade. Parece, à partida, espúria a ideia de que um provérbio “antigo” possa referir-se à existência de “bibliotecas” na África subsahariana em período pré-colonial, período em que a escrita e o uso do livro eram desconhecidos em grande parte do continente. Há, evidente, excepções – que confirmam a regra: os arquivos bibliográficos do norte do Mali, as bibliotecas no deserto marroquino, a biblioteca de Gondar, na Etiópia, por exemplo. Mas supôr uma familiaridade antiga das sociedades tradicionais africanas com o conceito de biblioteca é, no mínimo, problemático. 
 Parecerá mais provável que este “provérbio” tenha sido, na origem, uma expressão bem sucedida autorada por alguém que pretendeu manifestar legítima reverência pelas formas de produção e reprodução do conhecimento nas sociedades tradicionais de base oral em África – que confia(va)m grande parte da tarefa de preservação das memórias colectivas em anciãos conhecedores – fossem eles assim identificados por via informal ou, como por exemplo no Reino do Ruanda, explicitamente nomeados para essa função como dignatários reais. 
 Sabemos de casos em que, de facto, bibliotecas inteiras arderam. O mais famoso incêndio ocorreu, de facto, em África: o Mouseion, ou “Assento das Musas”, como era conhecida a Biblioteca Real de Alexandria no Egipto, fundada por Alexandre o Grande em 283 a.C., e contendo meio milhão de documentos escritos provenientes de lugares tão distantes como a Assíria, Grécia, Pérsia e Índia. Os historiadores não concordam com a data nem com a autoria do incêndio: Júlio César em 48 a.C., o Patriarca Teófilo em 391 d.C. e o Califa Omar em 640 d.C são habitualmente dados como os responsáveis pela tragédia – note-se a divergência de datas; é curioso que um tão famoso acontecimento não tenha sido registado por escrito, e que sete séculos separem o primeiro suspeito do terceiro. 
 Pode ser que o incêndio da Biblioteca de Alexandria tenha sobrevivido nas memórias orais africanas que, através de um “provérbio”, procuraram equiparar a morte de anciãos detentores de conhecimentos tradicionais ao desaparecimento daquela instituição egípcia. Mas, mais provavelmente, trata-se de uma expressão que ganhou foros de “antigo provérbio africano” porque quem o reproduz desconhece que Amadou Hampâté-Bâ, um escritor e antropólogo maliano de origem Peul, nascido nas encostas de Bandiagara, nomeado embaixador do Mali na UNESCO, foi o seu provável autor, quando procurava alertar as instituições internacionais para o efeito que as profundas transformações que a urbanização e a modernização do continente estavam – e estão - a ter na destruição dos saberes e conhecimentos tradicionais de várias comunidades rurais e pastoris africanas. 
 É em coisas destas que penso, quando falo com idosos – anciãos – na vila de Azeitão e nas aldeias circundantes. Sinto-os tratados como descartáveis, irrelevantes, desligados de um mundo que se confia cada vez mais cegamente a mecanismos exteriores a preservação da memória colectiva – telemóveis e terminais de computador ligados a servidores informáticos alojados em terras norte-americanas, através de micro-ondas, satélites e cabos de fibra submarinos.  
O que com eles aprendo prefiro não partilhar por via informática, para evitar alimentar ainda mais o algoritmo da chamada “inteligência artificial” que progressivamente lança a humanidade que o abraça e dele depende num estado geral de “estupidez natural”. 
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2023​
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cuidado com o sapo

23/11/2022

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É muito fácil dar a outrem o direito a ter um ponto de vista distinto e até oposto ao nosso. Muito mais difícil é dar ao ponto de vista de alguém precedência sobre o nosso. Isso só pode acontecer se conseguimos alterar o ponto de vista do outro para que se assemelhe ao nosso, ou então quando nos apropriamos do seu ponto de vista tornando-o nosso.
 
Ao longo de séculos, uma relação especial desenvolveu-se entre as comunidades sedentárias portuguesas e grupos de comerciantes e trabalhadores nómadas que se cria virem do Oriente, próximo ou longínquo (do noroeste da Índia, diz-se; do Egitpo, pensava-se). Embora estes grupos se autodenominassem como rom, receberam vários epítetos, geralmente com entoações depreciativas: zíngaros, manuches, caloms, ciganos. A história deste relacionamento é complexa e pouco clara, porque grande parte dela tem sido feita através de um jogo de percepções e contra-percepções que raramente foram tidas como merecedoras de registo escrito. Mas não será de todo infundado sugerir que foi neste relacionamento secular especial, feito de desconfiança mútua, desconhecimento e preconceito recíprocos, que muitos portugueses optaram por canalizar as suas pulsões xenófobas, etnocêntricas e porventura desumanizadoras. Os “ciganos” são o nosso outro preferido, sobretudo porque a comunidade rom desenvolveu discursos e práticas de autodefesa que assumem uma forma a uma vez confrontadora e oportunística, que pode por vezes ser profundamente desconcertante: reconhecendo a dificuldade de superar o estatuto de comunidade subalterna e excluída que lhe é atribuído exteriormente, não largam mão do seu direito a ser comunidade e reter teimosamente as suas marcas identitárias, que geralmente se expressam através de um arreigado conservadorismo cultural.
 
Tive uma vez uma longa conversa com o pai de uma amiga valenciana, decano de uma orgulhosa família gitana. Falou com grande admiração da força do tradicionalismo dos “ciganos” portugueses, notando que tendo estes, ao contrário das comunidades da Europa de Leste, perdido o conhecimento da língua e religião romani, mantinham ainda assim virtualmente intactas diversas tradições e instituições que os seus congéneres espanhóis, obviamente muito mais integrados socialmente, tinham há muito abandonado. Esta visão feita ao arrepio da imagem consolidada do gitano tradicional espanhol – muito por efeito da dignificação do flamenco como forma musical nacional – levanta um interessante véu sobre os efeitos identitários da exclusão social secular a que os “ciganos” portugueses têm sido submetidos.
 
Quem passeia por Azeitão não pode deixar de notar que os portões e muros de muitas moradias ostentam figuras de cerâmica vidrada representando sapos. Não é, como se depreende, uma especificidade da vila. Os sapos de louça são tão caraterísticos das casas e lojas portuguesas como os duendes dos jardins irlandeses, os laços amarelos das varandas norte-americanas, os deuses elefantes no subcontinente indiano, e os gatinhos de porcelana que abanam a pata direita na China. Menos famosos mundialmente que os pastéis de nata, já mereceram ainda assim reportagens do canal televisivo Al Jazeera.
 
Segundo a sabedoria popular e o Google, a colocação de figuras de sapos em montras e prateleiras de lojas, assim como em portões, muretes e relvados de moradias, é suposto afastar qualquer incauto membro da comunidade “cigana”, que terá um pavor irracional de sapos, na medida em que representam beng, uma figura diabólica, e são usados em rituais de magia negra. Não posso asseverar que todos os comerciantes e habitantes que dispõem figuras de sapos à vista de todos acreditam de facto que eles têm o poder de amuleto capaz de afastar alguém, assim como estou muito longe de crer que alguém entre em estado de pânico ao ver um anfíbio de porcelana pintada de verde. Mas, ao ouvir e ler ao longo dos anos tantos depoimentos de diversos concidadãos meus, posso confirmar que o diz que disse levou a uma convicção generalizada de que essa é a razão pela qual estes sapos vidrados proliferam em Portugal.
 
No entanto, é importante referir o seguinte, para melhor enquadrar a questão dos sapos e da xenofobia lusa. A literatura enciclopédica tardo-romana e medieval associa regularmente os sapos a práticas de feitiçaria, a malefícios, nomeadamente devido à crença de que cuspiam veneno. Os bestiários, que não distinguiam os anfíbios dos répteis, descreviam-nos como animais diabólicos, mas que, sendo terráqueos e frios como as salamandras, a sua pele e ossos podiam ser, secos, usados como protecção contra os efeitos do calor ou ataques de animais. Tal como acontecia com certas serpentes lendárias, imaginava-se que guardavam na cabeça uma pedra preciosa que podia ser usada como antídoto contra envenenamento. As recolhas de folclore europeu também referem que, sendo tradicional certas mulheres romani praticarem bruxaria e adivinhação, e usarem sapos em encantamentos e em curas medicinais, foi por extensão criada uma ligação entre o receio de sapos e a desconfiança em relação à comunidade rom.
 
O antropólogo James George Frazer, que dedicou muitas páginas ao estudo do pensamento mágico, falava da lei do contágio segundo a qual uma crença psicológica de que, quando duas pessoas ou coisas entram em contacto, uma ligação persiste, cujos efeitos maléficos só poderão ser anulados através de rituais de purificação ou de esconjuro, ou pela utilização de amuletos. Os sapos de louça poderiam, nesta perspectiva, ser interpretados como fetiches que, representando um animal associado aos rom, teria o poder de enfraquecer os poderes maléficos que lhes são atribuídos. No entanto, estou mais tentado a ver os sapos de louça como subtil manifestação da capacidade humana para criar e manter mal-entendidos. Os portugueses estabeleceram um conjunto de associações confusas entre crenças tradicionais: entre poderes diabólicos e sapos, entre sapos e a prática de bruxaria, entre bruxaria e o povo rom, e acabaram por acreditar que os rom tinham, por misterioso contágio, adquirido o medo de sapos que era anteriormente o medo dos portugueses. O uso de sapos de louça para afastar “ciganos” segundo a crença de que eles teriam medo de sapos reais tornou-se num sinal claro de que quem os coloca em portas de casa e prateleiras de loja tem medo de “ciganos”. Assim, uma pessoa a quem é atribuído o epíteto de “cigano”, ao ver um sapo de louça numa casa ou loja, fica a saber que o seu proprietário é medroso e, porque quem tem medo se pode tornar violento, prefere não entrar para não ser sujeito à agressão por palavras ou actos xenófobos.
 
Que fique claro: não pretendo com este texto convencer nenhum leitor, nem espero ser convencido a colocar sapos de louça no portão de minha casa.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2022
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DO queijo da Azóia

7/4/2021

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A história do queijo de Azeitão já foi pisada e repisada vezes sem conta: por volta de 1830, o “ratinho” Gaspar Henriques de Paiva, traz para a região de Azeitão ovelhas de raça bordalesa e, com ajuda de um queijeiro de Castelo Branco, inicia a produção de queijos, inicialmente de peso e tamanho semelhantes ao queijo da Serra, mas depois reduzido para 330gr e finalmente para os actuais 250gr. Menos se fala do queijo da Azóia e quase nada se fala das diferenças entre um e outro. Pessoalmente, prefiro o da Azóia, de sabor mais intenso e áspero, memória palatal do meio mais árido e intenso do Cabo Espichel e do azevém, da serradela, da tremocilha, da luzema e da baga de aroeira de que compõe o pasto das ovelhas da Azóia.

Antes de saber do processo de fabrico do queijo, quis ir ouvir os pastores e saber das agruras da criação de ovelhas. Segue o testemunho de um criador do Cabo:

A ovelha é um animal muito melindroso. Às vezes vou lá abaixo acompanhá-las quando elas vão para o pasto, e começo logo a vê-las: Oh, ontem andava tudo, não andava nada coxo; hoje já comeram – ê já sabia – já comeram qualquer merda que eu tenho de me pôr a pau, que a ovelha é muito melindrosa. Quando elas estão a andar coxas é porque já comeram, porque aquilo come muito, muito, muito, e ópois, quando elas vêm coxas, aquilo ópois passa. Aquilo é uma coxeira que dá e ópois passa. Mas muitas morrem. 

Ê já tive ovelhas, ê sei lá, desde que me conheço. Tenho tido sempre ovelhas. Já tive aí umas coxas mas se é pelo pico das silvas, deixo-as lá ao pasto. Quando andam ali com uma perna no ar, toda inchada, é pelo pico aí das silvas. Quando têm um espetado no casco, quer dizer, no meio dos dois cascos, saco aquilo, desinfecto, meto-lhe um palequezito pequeno, amarradinho e, olha: em três ou quatro dias, se vou curá-la novamente, já está impecável.

Mas agora, se ê as vejo coxas de comerem, fico logo à rasca. Amanhã já não as meto no pasto. Oiça lá, p´ráqui, quando se cepa o trigo, fica lá o restolho e a espiga, um gajo não pode chegar a casa e dar água aos animais. Porque depois aquilo incha e arrebenta com elas. Sabe como é que me morreram umas lá no outro dia, lá na eira? Foi a tremocilha. Eu não sabia, isso é danado. Olhe, meti-as lá nos lotes de terreno, uns gajos semearam para lá tremocilha, e elas engoliram aquilo inteiro. Oh, foi uma limpeza. Morreram-me quatro. E uma vez comprei um borrego e uma borrega ali ao Pinhal Novo, a um primo meu... não duraram quinze dias. Foram para a tremocilha, eu não sabia que havia para lá tremocilha. Morreram logo. 

E há outra. Você, por exemplo, tem ali ovelhas. Estão agora a seco, não é? Semeia para lá cevada e não sei que mais. Quando está bom para largar lá as ovelhas, se as larga lá e as deixa andar à vontade, elas vão-se todas embora. Apanham diarreia e morrem todas. Arrebentam por dentro. E sabe porquê? O animal está feito ao seco e ópois mete-se no verde, come, come, come, enchem-se e ópois chega a um ponto que é que embucha, não remói, e ópois quando ela vem por meio aquilo fica ali uma bola e arrebenta.

Uma pessoa pode largá-las no pasto verde mas é assim: larga hoje, por exemplo, mas é um quarto e hora e tiras. Rua! No outro dia, vai lá, vinte minutos. Tá a ver, vai indo assim. Até que chega a um ponto que já não faz mal, pronto, já pode-se deixar que não lhe faz mal. Agora, se vai para o pasto verde de repente... É que metê-las lá dentro de repente e deixá-las andar até elas quererem, no outro dia está tudo morto. Mas, por exemplo, agora que choveu vão rebentar aquelas ervas. Mas como elas andam por aí à solta, assim não faz mal. Faz mal é a gente tê-las presas a seco e ópois, de repente, metê-las no verde, e deixá-las andar à vontade. Isso, atão, vão-se todas embora. É a frasquilha, cresce à volta da figueira, elas vão atrás dela, mas como a erva está gelada, quando está de gelo, a erva mata-as. Chama-se a isso frasquilha. Mata-as. São melindrosas.

Ê não gosto muito deste rebanho que para aí anda. Isto é gado de carne e eu não gosto disto. Eu gosto de gado é de gado saloio: gado de leite. Nem é para tirar leite: é que a ovelha tem um borrego ou dois e a gente quer matar um borrego ou dois e mata e aquilo é só carne, tá a ver ou não? Mas agora um gajo, com estas ovelhas, atravessadas em França, charolesas e não sei que mais, um gajo mata um borrego e aquilo é só seco, não tem carne nenhuma. Para a gente ter ovelhas desta em casa, elas não prestam. Uma pessoa não se safa.

Agora, a cabra é outra coisa. Come tudo e mais alguma coisa. A cabra é safada. É um animal do diabo.


Seja de ovelha ou de cabra, de animais melindrosos ou do diabo, a verdade é que o queijo artesanal da Azóia é uma pérola quase desconhecida.

Jornal de Azeitão, Março 2021
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