MANUEL JOÃO RAMOS
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a miopia infantil

8/9/2023

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O capítulo 35 do livro 3 das Viagens de Marco Polo, onde se descreve o Reino de Abash (Abissínia, a antiga Etiópia), refere que aí os cristãos, para se distinguirem dos vizinhos muçulmanos, exibem uma cruz na testa, marca que seria feita com ferro em brasa no acto do baptismo. Ainda que possamos duvidar da informação de que a cruz fosse feita com ferro em brasa, a verdade é que ainda hoje, nas zonas rurais do norte da Etiópia, não é raro encontrar quem a exiba na testa, mas executada como tatuagem.
Também não é rara a existência de outro tipo de marcas na testa de muitos etíopes, mas estas não são sinal de fervor ou adesão religiosa. Muitas mulheres exibem tatuagens ornamentais em volta do pescoço, e é comum observar uma dupla escarificação em cada uma das fontes, tanto em homens como em mulheres: estas são o resultado de sangrias praticadas por médicos tradicionais, que têm como objectivo proteger as crianças de certo tipo de doenças. Para além destas marcas religiosas, ornamentais e rituais, é também muito habitual a existência de cicatrizes na cabeça. A origem destas cicatrizes advém de uma prática educacional curiosa, actualmente em recessão mas à qual eu assisti em diversas ocasiões: para castigar crianças desobedientes ou insolentes, os familiares mais velhos atiram-lhes pedras à cabeça. O efeito pavloviano deste castigo é tal que as mais das vezes basta fazer o gesto de apanhar uma pedra e ameaçar atirá-la para que a criança obedeça à ordem dada.
Não pretendo discutir a bondade ou perversidade desta forma de castigo corporal, tal como não venho aqui comentar a publicitação de correctivos radicais (como, por exemplo, submergir uma filha na água fria de uma piscina) contra birras infantis como forma de angariar seguidores em redes sociais. Pretendo apenas dar conta do meu pasmo permanente face aos comportamentos públicos de crianças e adultos na região de Azeitão – microscópico espelho do que, suspeito, acontece um pouco por todo o lado, dentro e fora do rectângulo luso. Não passa um dia em que não observe – seja no restaurante, no café, na loja, no parque, ou na praia – pais, tios e avós a silenciar filhos, sobrinhos e netos pondo-lhes telemóveis ou tablets na mão, para melhor poderem conviver sem interferências infantis. Quando não estão entorpecidos pelas imagens do ecrã, transformam-se em feras ditatoriais e inaturáveis a exigir toda a atenção do mundo, gritando, esperneando e correndo em círculos viciosos.
Ligar uma criança ao ecrã de um telemóvel é uma forma de hipnotismo fácil e prático no imediato, mas é também uma demissão de responsabilidades parentais cujas consequências são temíveis. Esta miopia educacional resulta, por um lado, em efectiva miopia precoce dos jovens – antigamente, havia um “caixa de óculos” na turma da escola; hoje, o elemento de distinção na turma é a cor do aro e a graduação da lente de cada aluno. Por outro lado, e muito mais preocupante, a consequência deste novo hábito é a progressiva miopia mental e emocional da juventude: desabituados do saudável balanço entre manifestação de afecto e a exigência de cumprimento de regras, resvalam para um autismo imoral, para o absoluto desrespeito, não apenas dos pais que não conseguiram fazer-se por eles respeitar, e dos professores que, na escola, com eles se confrontam impotentes, mas de todos quantos se encontram do lado de cá do ecrã. A única autoridade destes novos “meninos selvagens” é o algoritmo que gere as redes sociais e os seus avatares, conhecidos como influencers, youtubers, tiktokers, instakings e instaqueens.
Entrevistado em sua casa pouco tempo antes da sua morte aos 101 anos, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss referiu o seu profundo pesar pelo fim da diversidade cultural da humanidade e a sua repugnância pela monocultura que hoje impera. Terminou a entrevista notando que, agora que a sua existência estava perto do fim, deixava um mundo de que (já) não gostava, habitado por uma humanidade a viver num regime de envenenamento interno.
É, claro, possível duvidar desta visão apocalíptica e supor que a globalização monocultural não passa de um projecto utópico euro-americano em vias de derrapar na sua meta final. Mas não deixo de me perguntar como vão as novas gerações de azeitonenses gerir a pesada herança que vão ter de carregar.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2023​
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Inteligência natural

1/9/2023

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Sentado à mesa do café da aldeia, ouço correr histórias sobre vidas passadas...

John Kegan, no seu reputado livro The History of Warfare, sublinha que não existe um conceito universal de “guerra”, porque a prossecução, percepção e compreensão da guerra é sempre ditada e condicionada culturalmente, apesar de, em si, a “guerra” ser um diálogo intercultural (geralmente violento) de transferência de ideias e tecnologias.
A dado passo da sua obra, apresenta-nos um caso raro de sageza na recusa de uma nova tecnologia militar, em função da preservação de um modo de conceber e fazer a guerra: a introdução de armas de fogo no Japão, no séc. XVI, foi entusiasticamente acolhida e os senhores da guerra japoneses lançaram-se numa verdadeira corrida às armas, produzindo versões cada vez mais aperfeiçoadas de arcabuzes, em quantidades cada vez maiores. O arcabuz mudou a face da guerra no Japão, causando carnificinas tais que, finalmente, levaram os senhores da guerra a reunir-se e decidir proibir a produção e uso de armas de fogo. Regressaram à forma tradicional japonesa de fazer a guerra, com arcos, flechas, sabres e paus, até que, no final do séc. XIX, britânicos e norte-americanos as reintroduziram, quando começaram a interferir na vida política e económica japonesa, em nome da modernização e ocidentalização do país.
Vem isto a propósito de uma nova tecnologia digital e do seu potencial destrutivo: a chamada “inteligência artificial”. Dizem alguns críticos que o termo é enganador porque sugere que os modelos de linguagem artificial são fruto de pensamento consciente. Pouco importa para o caso que quero aqui discutir: o uso cada vez mais generalizado destes modelos, em particular do muito bem-sucedido ChatGPT, na vida quotidiana, e em particular no ensino. Apresentando-se como uma ferramenta neutra e bem-intencionada de suporte informativo, tem, no entanto, duas faces sombrias. Por um lado, está longe de ser um suporte neutro e de valor público, já que os seus algoritmos são de uma companhia privada, sujeitos a instruções e condicionamentos que nos são inacessíveis, e dependentes de uma base de dados que é sobretudo norte-americana. Por outro, coloca o seu utilizador perante um paradoxo de difícil resolução: como simula ser uma entidade pensante, que responde com frases complexas e oferece uma mediana de informações convencionais, oferece-nos a ilusão de que estamos perante uma entidade pensadora que concede, a pedido do utilizador, acesso gratuito a textos organizados, que este pode “roubar”, fazendo-os passar como seus sem ser acusado de plágio.
É possível fazer uso criativo e crítico desta ferramenta, como bem mostra, por exemplo, a poetiza alemã Monika Rinck. Mas, no geral, o que promove é profunda preguiça mental e – o que é particularmente grave no processo de ensino – uma alteração profunda e com consequências imprevisíveis na aprendizagem e uma possível redução das capacidades de construção de textos e argumentos, para além de limitar a compreensão crítica da informação disponibilizada, que se apresenta como sumamente confiável. No estado actual, não prevejo que seja exequível fazer como os senhores da guerra japoneses: decidir por consenso suspender o uso desta tecnologia, cujos malefícios facilmente arriscam ser muito maiores que os benefícios.
O ChatGPT é um novo instrumento de imersão no mundo digital que pode ter efeitos devastadores. Arriscamo-nos a estar a prender as nossas capacidades intelectivas no interior de um batiscafo que se afunda no oceano com uma quantidade limitada de oxigénio e pouca ou nenhuma possibilidade de regresso à superfície.
Por mim, vejo a redenção no desligarmo-nos do mundo digital, como profetiza E. M. Foster no conto The machine stops, e na valorização do que podemos aprender no (que resta do) mundo analógico. Sentado à mesa do café da aldeia, ouço correr histórias sobre vidas passadas: os miúdos que se reuniam junto ao poço a jogar ao berlinde, os bailaricos no Verão e a matança do porco no Outono, os beijos roubados no virar da esquina, o labor nos campos e os tratamentos da bruxa com novelo e agulha para tirar o mau-olhado, o cheiro da urze e do estrume, as queimaduras do ferro de engomar aquecido a carvão, as zangas entre primos, o rapaz que fugiu para ir trabalhar na cidade, a tia que fazia milagres com a máquina Singer e um metro de chita estampada, os burros albardados a passar a ribeira no Porto de Cambas a caminho da feira de Azeitão...
O que vemos e o que imaginamos, o que ouvimos contar, o que cheiramos e saboreamos é essencial para conhecermos o mundo que está para além e para aquém dos “modelos de linguagem”. É parte fundamental da nossa inteligência natural e eficaz vacina contra a estupidez de nos submetermos à “inteligência artificial”.

PS: li agora que, nos céus da Ucrânia, voam drones kamikaze que, graças à “inteligência artificial”, funcionam de forma totalmente autónoma, identificando e destruindo alvos sem intervenção de operadores humanos.
 
Jornal de Azeitão, Julho 2023​
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esta terra não é para estranhos

3/8/2023

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Li há pouco uma curiosa (auto)reflexão sobre o carácter russo.  A tradução dizia mais ou menos isto:
 
Quando as pessoas no Ocidente falam dos russos e da Rússia, citam frequentemente a célebre frase de Churchill: “A Rússia é uma charada, envolvida em mistério, dentro de um enigma”. É uma citação elucidativa: a Rússia era e é incompreensível para um ocidental.
Como lutavam os europeus na Idade Média? O meu primo Ludovico, proprietário da quinta vizinha, embebedou-se e chamou-me idiota. Não posso aceitar o insulto, por isso junto os meus quatro vassalos, distribuo paus e forquilhas aos habitantes do meu domínio, e parto em guerra contra ele. Hurra!... Vitória. E, quando estou prestes a cortar a cabeça do maldito Ludovico, o bispo meu primo, as minhas tias e os meus tios, e mais não sei quantas pessoas intervêm, dizendo que a minha resposta não é proporcional – ele só me chamou imbecil. Em resultado, eu não mato o Ludovico.
Esta moderação feita por parentes da classe dirigente funcionava a todos os níveis, dos conflitos entre quintas vizinhas às guerras entre estados. Daí, um estranho culto da proporcionalidade desenvolveu-se no Ocidente: se eu te esfaqueio mas não te mato, tu não me cortas a cabeça.
Os eslavos e, em particular, os russos nunca lutaram assim. A guerra era “ou nós ou eles”. Sem alternativas, era uma guerra com os infiéis, sem “proporcionalidade”. Era uma guerra pela sobrevivência. Em resultado, os eslavos desenvolveram uma tradição diametralmente oposta: ou não reagir de todo ou então resolver o problema de uma vez por todas. A transição da primeira opção para a segunda é instantânea, sem aviso, definitiva e irrevogável. A linha vermelha, ela própria, para além da qual está o “matem os sobreviventes e tenham um bom dia” variava, do “é para já” dos polacos ao “quando o sol se transformar num gigante vermelho” dos búlgaros.
Os russos estão algures no meio e, para quem nasceu na tradição cultural ocidental, este “meio” é precisamente “uma charada, envolvida em mistério, dentro de um enigma”. O ocidental não se consegue impedir de espicaçar o urso com um pau para ver onde está a linha vermelha. E fará isto apesar de todas as histórias que o seu avô lhe contou sobre o seu próprio avô, que também espicaçou o urso em Estalinegrado ou em Borodino.
A este respeito, o Ocidente não é nunca capaz de aprender. A memória histórica da Idade Média é mais forte que a memória do que se passou nos últimos três séculos. (@Slaviangrad)
 
Em Sesimbra, era comum um pexito dizer que as gentes do Campo se batem por um metro quadrado do terreno do vizinho, que respondem violentamente aos seus abusos, embora estejam sempre prontos a cobiçar, eles próprios, a sua propriedade. O espírito do mar não permite estes luxos. No mar é fácil morrer porque a natureza é infinitamente mais inclemente que os humanos. Por isso, talvez, os pescadores apreciam mais a vida e respeitam mais o outro. Não que não haja competição pelo bem comum que é o peixe, mas precisamente o bem é comum, não privado.
 
O Campo é agora, em grande medida, a Vila. Ainda assim, como dizia o russo, a memória dos tempos antigos é muito forte, encastra-se, encasqueta-se, como uma marca indelével. Hoje em dia, na Vila, os conflitos do metro quadrado de terreno passaram para as moradias geminadas sem que a memória do comportamento ancestral se perca. Abusa-se de novas maneiras: subindo muros e construindo anexos ilegais, disfarçando puxadas de água, fazendo barulho, estacionando o carro sobre o passeio público, fazendo cavalinhos em cima de motas, deixando os cães a ladrar dia e noite no quintal. O resultado é uma constante tensão colectiva, nascida de um sobranceiro desinteresse pelo direito privado dos outros e pelo bem comum que são os espaços públicos (e pelo ar que se respira).
 
Quem vem de fora desespera com esta maneira de viver agressiva e disfuncional. Ao fim de algum tempo a tentar socializar e conviver nesta Vila em permanente estado de bulha de aldeia de gauleses, acaba por desistir e rumar a outras paragens. Mas há que ver as coisas pelo lado positivo: é bom para o comércio imobiliário porque há sempre casas à venda para o próximo forasteiro incauto, e garante que a tradição cultural não se perde. Quem não gosta dela, que vá para Sesimbra.
 
 
 Jornal de Azeitão, Junho 2023​
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Quando um velho morre

21/7/2023

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“Quando um velho morre, é toda uma biblioteca que arde”. Esta frase é habitualmente referida como sendo “um antigo provérbio africano” que valoriza a importância da transmissão oral do conhecimento nas sociedades tradicionais daquele continente. 
 Os provérbios são fontes interessantes para quem investiga história oral na medida que é assumido que tendem a ser reproduzidos de geração em geração sem modificações palpáveis, sugerindo assim uma certa estabilidade dos valores éticos e das tradições culturais. São também tomados como exemplificações da sabedoria popular cuja mensagem é frequentemente capaz de sobreviver intacta a traduções em línguas diferentes e a apropriações culturais várias. Também é possível que, mesmo na ausência de contactos directos, populações longínquas formulem frases com sentidos semelhantes. Embora certos provérbios portugueses não encontrem correspondente noutras línguas europeias, é perfeitamente admissível que a expressão “a mulher quer-se pequenina como a sardinha”, que tanto quanto sei não viajou sequer até Espanha, possa ser independentemente formulada pelas populações de pigmeus das florestas do Congo ou pelos bosquímanos da Namíbia (com algumas modificações, dada a inexistência de sardinhas na floresta de M’buti e no deserto de  Kalahari). 
 No caso do “provérbio africano” acima mencionado, quem o ouve (ou lê) poderá duvidar se ele é efectivamente “antigo” e supôr, ao invés, que se trata de um pseudo-provérbio, falsamente atribuído a uma indefinida africanidade. Parece, à partida, espúria a ideia de que um provérbio “antigo” possa referir-se à existência de “bibliotecas” na África subsahariana em período pré-colonial, período em que a escrita e o uso do livro eram desconhecidos em grande parte do continente. Há, evidente, excepções – que confirmam a regra: os arquivos bibliográficos do norte do Mali, as bibliotecas no deserto marroquino, a biblioteca de Gondar, na Etiópia, por exemplo. Mas supôr uma familiaridade antiga das sociedades tradicionais africanas com o conceito de biblioteca é, no mínimo, problemático. 
 Parecerá mais provável que este “provérbio” tenha sido, na origem, uma expressão bem sucedida autorada por alguém que pretendeu manifestar legítima reverência pelas formas de produção e reprodução do conhecimento nas sociedades tradicionais de base oral em África – que confia(va)m grande parte da tarefa de preservação das memórias colectivas em anciãos conhecedores – fossem eles assim identificados por via informal ou, como por exemplo no Reino do Ruanda, explicitamente nomeados para essa função como dignatários reais. 
 Sabemos de casos em que, de facto, bibliotecas inteiras arderam. O mais famoso incêndio ocorreu, de facto, em África: o Mouseion, ou “Assento das Musas”, como era conhecida a Biblioteca Real de Alexandria no Egipto, fundada por Alexandre o Grande em 283 a.C., e contendo meio milhão de documentos escritos provenientes de lugares tão distantes como a Assíria, Grécia, Pérsia e Índia. Os historiadores não concordam com a data nem com a autoria do incêndio: Júlio César em 48 a.C., o Patriarca Teófilo em 391 d.C. e o Califa Omar em 640 d.C são habitualmente dados como os responsáveis pela tragédia – note-se a divergência de datas; é curioso que um tão famoso acontecimento não tenha sido registado por escrito, e que sete séculos separem o primeiro suspeito do terceiro. 
 Pode ser que o incêndio da Biblioteca de Alexandria tenha sobrevivido nas memórias orais africanas que, através de um “provérbio”, procuraram equiparar a morte de anciãos detentores de conhecimentos tradicionais ao desaparecimento daquela instituição egípcia. Mas, mais provavelmente, trata-se de uma expressão que ganhou foros de “antigo provérbio africano” porque quem o reproduz desconhece que Amadou Hampâté-Bâ, um escritor e antropólogo maliano de origem Peul, nascido nas encostas de Bandiagara, nomeado embaixador do Mali na UNESCO, foi o seu provável autor, quando procurava alertar as instituições internacionais para o efeito que as profundas transformações que a urbanização e a modernização do continente estavam – e estão - a ter na destruição dos saberes e conhecimentos tradicionais de várias comunidades rurais e pastoris africanas. 
 É em coisas destas que penso, quando falo com idosos – anciãos – na vila de Azeitão e nas aldeias circundantes. Sinto-os tratados como descartáveis, irrelevantes, desligados de um mundo que se confia cada vez mais cegamente a mecanismos exteriores a preservação da memória colectiva – telemóveis e terminais de computador ligados a servidores informáticos alojados em terras norte-americanas, através de micro-ondas, satélites e cabos de fibra submarinos.  
O que com eles aprendo prefiro não partilhar por via informática, para evitar alimentar ainda mais o algoritmo da chamada “inteligência artificial” que progressivamente lança a humanidade que o abraça e dele depende num estado geral de “estupidez natural”. 
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2023​
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À Escuta no Café

19/7/2023

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A figura da velha de lenço negro que espreita pela janela e controla tudo o que se passa na vizinhança é um estereótipo famoso sobre o qual assenta uma longa história de coscuvilhice e censura social. Menos conhecida é a figura do etnógrafo que, com um ar fingidamente cândido e distraído, ouve tudo o que se diz à sua volta. Leite de Vasconcellos, ele próprio, conta que de modo a poder recolher elementos do dialecto barranquenho que os locais se recusavam a falar na presença de estranhos, se encostava às portas e colocava a orelha junto à madeira para os poder ouvir sem que eles se apercebessem.
 
Não tenho os dotes e a persistência do grande etnógrafo, mas volta não volta surpreendo-me a mim próprio a olhar para o vazio do ecrã do telemóvel enquanto aprecio o sol sentado na esplanada do café e – involuntariamente, claro – fico de ouvido à escuta do que se diz na mesa do lado. Basta que um tom de voz destoe do burburinho geral ou que uma palavra solta me prenda a atenção para que eu entre em modo velha de lenço negro.
 
Há alguns dias, bebia eu o meu café matinal numa esplanada ensolarada da vila quando, atrás de mim, ouvi alguém falar do ladrar de cães por trás de portões. A voz era pausada, feminina, e relatava um episódio ainda fresco. Pelo que percebi, a senhora tinha assentado arraiais na vila há dois ou três anos, vinda da metrópole, e adquiriu o hábito de levar o seu cão ao parque das oliveiras. O que seria normalmente um passeio higiénico e quase pastoral é, pelo que me pareceu, uma dolorosa expiação. Para chegar ao parque tem de atravessar uma zona de moradias, a maior parte das quais guardada por cães que, mal pressentem uma presença na rua, desatam a ladrar e a rosnar em coro, infernalizando-lhe o passeio porque o seu cão é tomado de pânico.
 
Naquela mesma manhã, ao passar com ele numa rua onde, por trás de um muro alto, vivem cinco cães de ladrar especialmente vigoroso, foi subitamente abordada pela dona da casa fronteira. Agitada, a senhora, que se exprimia num forte sotaque gálico, pediu-lhe por tudo que deixasse de passar por ali. A cara da viandante lisboeta terá evidenciado tal pasmo que a moradora francesa se desfez então em explicações e justificações. Teria chegado à vila, como a passeadora, há coisa de três anos, na expectativa de poder aproveitar uma imagino que legítima reforma tranquila em terras azeitonenses. Tinha comprado aquela moradia, feito obras, trazido de França os seus haveres e o marido, mais que disposta a viver entre os berberes católicos que nós, portugueses, somos.
 
O problema da compra de casa é que, ao contrário do que acontece com a compra de carro, não dá para fazer um test run, isto é, dormir nela um par de noites antes de entregar o cheque para sinalizar o contrato de compra e venda. Comprada, restaurada e mobilada a casa, só quando para lá foi viver se apercebeu que tinha chegado, não ao paraíso, mas ao inferno: faça dia ou noite, verão ou inverno, o ladroar dos três cães da moradia em frente nunca pára e multiplica-se quando alguém, particularmente alguém que passeia incauto o seu cão, passa pela rua. Há três anos que a senhora se queixa em vão aos vizinhos, à junta de freguesia, à GNR e, mais recentemente, à psicoterapeuta.
 
Cansada de tanto encolher de ombros das autoridades e de tanto receituário de anti-depressivos, optou desesperada por aquele inaudito último recurso: pedir a quem passa pela rua que por ali não passe, para que os cães enclausurados na moradia fronteira não se manifestem tanto; suplicar aos viandantes que aceitem prescindir do seu direito ao espaço público porque os vizinhos não prescindem de abusar de um mais que duvidoso direito privado a prender cães ruidosos no seu quintal.
 
Fiquei sem perceber qual a resposta ao pedido porque, entretanto, um grupo de motoqueiros chegou ao café e as conversas foram abafadas pelo ronronar dos motores de grande cilindrada. O ruído e o cheiro que as motas exalavam ditaram a minha fuga precipitada do local. Contente por não ter cão que entrasse em pânico com as motas, fui passear pela rua direita cogitando sobre o pedaço de história que tinha ouvido. Até que alguém me apresente argumento em contrário, vou assumir que Azeitão é uma vila onde, com dificuldade, coabitam três castas: os “locais”, os “lisboetas” e os “estrangeiros”, que interagem mas não se confundem, se confrontam mas não dialogam. Vou também assumir que esta dinâmica social é bem conhecida das “autoridades” que, face às tensões que a coabitação gera, optam por fazer o que os enforcers do Estado costumam sempre fazer: alhear-se quando as normas legais ameaçam alterar o frágil equilíbrio das relações de força entre as castas em confronto.
 
 
Jornal de Azeitão, Abril 2023
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​Dos Cães e de outros objectos

21/3/2023

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Não é só o título que chama a atenção do leitor. A primeira frase é também crucial. É um apelo à imaginação, uma indicação do tom, do género e do estilo da escrita. E é também a presença material da intencionalidade criativa do autor. Ele há muitas maneiras de começar a contar uma história. Há o “Era uma vez, há muitos, muitos anos...” dos contos tradicionais, e o “No tempo em que os animais falavam...” das fábulas infantis. A partir daqui a literatura tornou possíveis infinitas variantes. O “Chamem-me Ishmael”, do Moby Dick de Melville, e o camusiano “A minha mãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não tenho a certeza”, anunciam relatos pseudo-autográficos. O pressagiante “Era um dia frio de Abril, e os relógios batiam as treze” do 1984 de Orwell, contrasta com o afirmativo “É uma verdade universal que um homem de fortuna necessita uma esposa”, do Orgulho e Preconceito de Jane Austen. O “Quando Gregor Samsa despertou na sua cama uma manhã após uma noite de pesadelo, descobriu que se tinha transformado num insecto gigante” oferece logo a chave do que vem a seguir. O “Numa galáxia muito, muito longe...” e o “Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia de irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor...” estabelecem de imediato o contexto temporal e espacial da história que se vai desenrolar.
Imagino que, para muitos urbanos lisboetas, uma viagem a Azeitão possa ter o refrescante sabor do exótico ao lado de casa. É, em pequena escala, equivalente à descoberta dos aromas e cores de Marrocos. Perto, mas ainda assim muito longe. Azeitão, tão plácida e incaracterística, parece, em certas coisas, um minúsculo planeta vogando numa galáxia, muito, muito longínqua. E, nessas certas coisas, evoca também o espírito irredutível dos companheiros de Asterix, o famoso herói da banda desenhada de linha clara franco-belga.
Uma viagem a Marrocos – ou a qualquer outro lugar excêntrico – é sempre um jogo de selecção do olhar e da atenção, um balanço frágil entre o apetecível e o repulsivo, que forma a nossa experiência do lugar. Dependendo do nosso gosto, da nossa tolerância à diferença, da nossa adaptabilidade, é uma experiência que, em casos extremos, pode levar-nos ao êxtase (e ao desejo de eterno retorno) ou ao abismo da repugnância. Mais normalmente, leva-nos ao meio do caminho: um gosto amargo de pessoas e coisas que preferimos esquecer, a tingir o gosto doce das pessoas e coisas que queremos lembrar.
Assim também Azeitão: o urbano lisboeta regressa todos os primeiros domingos do mês ao terreiro da feira porque, mesmo que tenha sido enganado na qualidade da toalha ou na frescura do melão, deseja reinventar a experiência, e voltar a saborear a confusão da mole humana, os gritos do “Três slipes ao preço de um”, e as bifanas mal assadas. Regressa volta e meia à pastelaria que serve “as mais típicas” tortas, e à fonte dos pasmados de água eternamente insalubre. Faz alegre e regularmente o caminho da cruz que, pela serra, leva aos parques de estacionamento sem lugares vagos no Portinho e no Creiro. Se for audaz, aventura-se num trilho pedestre, entre a caruma, as ortigas, as lagartas do pinheiro e as carraças das ovelhas. E depois, ala, regressa à cidade, que não há muito mais que ver na terra que, pensa ele, tem mais fama que proveito.
 
Há, de facto, em Azeitão algo de aldeia que resiste ainda e sempre ao invasor. E, até certo ponto, tem também algo de galáxia muito, muito longínqua. Explico-me:
Há leis da capital que não têm valor ou obediência na vila, e muito do que lá é apreciado é cá liminarmente rejeitado. Presumo que não seja por isso que os turistas lisboetas fazem por reviver experiências de exotismo, mas ainda assim convido o leitor (e, como se diz agora, num cúmulo de redundância politicamente correcta, a leitora) a passear a pé pelo meandro de ruas onde se alinham moradias de geometria perturbante, versões lusas do sonho suburbano americano. Não é conveniente fazê-lo em dia de feira, porque aí só os loucos o conseguem fazer, tal é a dimensão do engarrafamento automóvel. Nos outros dias, passear a pé obriga a andar pela rua porque os passeios estão em permanência ocupados por uma multitude de carros cujos donos são demasiado preguiçosos para os estacionar nas garagens das suas moradias. É verdade que, ficando escondidos por trás dos portões, não servem como mostra do estatuto económico do morador. Ou, porventura, as garagens estão demasiado atafulhadas de motas de grande cilindrada, para uso nas reuniões do Lavadouro e na estrada do Portinho.
Por outro lado, andar pelo meio da rua, pelo asfalto dessas ruas que, consciente ou inconscientemente, evocam o cenário do Eduardo-Mãos-de-Tesoura, é a melhor garantia de não ficar ensurdecido pelo arraial de cães de guarda das mesmas moradias, que se lançam raivosamente contra as grades e frestas dos portões, ameaçando abocanhar pernas, braços e traqueias dos viandantes. Cães que não saem à rua, e que não entram na porta. São uma espécie de imigrantes refugiados que comem e calam – quer dizer, não calam porque o seu trabalho escravo é ladrar e uivar até à loucura ou ensurdecimento da vizinhança.
 
Azeitão é um minúsculo planeta de uma galáxia de maus costumes que resiste incompreensivelmente às leis da capital. Seja as leis do ruído (obrigado, motoqueiros), as normas do Código da Estrada (obrigado, donos de SUV mal-estacionados), e as regras básicas da protecção dos animais (obrigado, donos de cães abandonados em casa própria). Talvez a razão pela qual os urbanos lisboetas gostem de regressar regularmente a Azeitão seja para ver se conseguem entrever, no topo de uma escada de alumínio, o Eduardo-Mãos-de-Tesoura, ele próprio, a desbastar violentamente as oliveiras da vila. Mas ai deles se se metem a andar a pé pela vila.
 
 ​Jornal de Azeitão, Março 2023

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O FAROESTE

21/3/2023

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Os Westerns são um género narrativo bem alicerçado na história do cinema que foi fulcral para a consolidação da indústria do entretenimento centrada em Hollywood. É, como sabido, um género muito variado, geralmente focado na mitificação da expansão colonizadora dos vastos territórios da região ocidental dos Estados Unidos da América, durante o séc. XIX. Um dos tópicos recorrentes dos filmes de Western é o da reinvenção arquitectónica dos espaços urbanos desse período, e da caracterização sociológica das populações que o habitavam. Há múltiplas variantes deste tópico, mas o estereotipo é o da pequena localidade com uma rua principal não pavimentada, enquadrada por um casario construído em madeira onde, para além das habitações, pontua um banco, a cadeia nas traseiras do escritório do xerife, a mercearia, o saloon e, mais distante do centro, a igreja protestante e a estação de caminho de ferro.
Ausentes ainda os veículos automóveis, o trânsito é, nesses filmes, sobretudo pedonal, perturbado apenas pela circulação de cavalos, carroças e diligências. É na rua principal que a acção central deste género de filmes tende a acontecer: o duelo entre pistoleiros, o roubo do cofre do banco, o encontro do vaqueiro com a amada, a zaragata que verte do interior das portas do saloon.
O enorme sucesso que os filmes de Western norte-americanos tiveram ao longo de décadas levaram a que, a certo momento, viessem a ser replicados noutros países. O caso mais conhecido foi o do chamado Western Spaghetti italiano nos anos sessenta e setenta do século passado, frequentemente sob o pano de fundo da meseta desértica dos arredores de Pamplona, em Espanha. O género tornou-se de tal forma influente que até na União Soviética se chegaram a produzir filmes de Western.
Sendo a indústria cinematográfica portuguesa muito incipiente, não admira que não haja exemplos nacionais de filmes do faroeste, dos chamados filmes de cowboys. Mas, caso a algum realizador luso ocorra vir a conceber um filme que, de alguma maneira, retome, reinterprete, ou reinvente o género Western em Portugal, eu aconselhá-lo-ia a olhar com atenção para Azeitão como localização excepcionalmente dotada para acolher as filmagens.
A serra da Arrábida não será tão imponente como o Grande Canyon; os areais de Coina e da Quinta do Anjo não serão tão secos como o deserto do Mojave; os nativos das redondezas não terão a pele tão avermelhada quanto a dos Apaches e dos Navajos; os agentes da GNR não serão tão nervosos com o gatilho quanto Wyat Hearp. Mas a rua principal está lá, assim como lá estão os saloons, o banco, e o mercado que faz as vezes de mercearia. Peões não abundam, é verdade, mas haverá sempre quem aceite alguns euros para fazer de figurante. Os carros podem ser facilmente ser removidos para o terreno da feira mensal, e a igreja pode ser despida das imagens de santos de forma a passar por templo evangélico.
Dir-me-ão que poderá haver alguma falta de cavalos e de cowboys para tornar credível o filme. Mas não podemos esquecer o imenso potencial, até hoje intocado, de Azeitão: a inquestionável abundância de motos e de motoqueiros na vila e arredores. Se eu fosse realizador de cinema, contratava-os para fazerem aquilo que fazem excelentemente, com um jeito natural: saírem à maluca das garagens das moradias montados nos seus cavalos de duas rodas, invadirem com sobranceria e impunidade a rua principal, fazerem piruetas e voltejos nas suas cavalgaduras, ingerirem em bando quantidades apreciáveis de álcool, e fazerem-se donos do povoado, ensurdecendo toda a população.
E, como nos filmes de Western, filmaria o povo temeroso espreitando impotente, por trás das portas de tabique do saloon, o espectáculo circense dos motoqueiros do OK Corral, ansiando por que um forasteiro com sobrolho de Clint Eastwood desça da serra para pôr a vila na ordem.

Final alternativo:
...E, como em certos filmes de
Western, filmaria a presidente da junta espreitando frágil e impotente, entre as cortinas da janela do xerifado, o espectáculo circense dos motoqueiros do OK Corral, ansiando por que um forasteiro com sobrolho de Clint Eastwood desça da serra para pôr a vila na ordem.
 
​Jornal de Azeitão, Fevereiro 2023
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A traseira

21/3/2023

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O fascínio que os pavões nos causam tem raízes históricas profundas na cultura ocidental, mas não apenas. Faz anos, deu-me para ler uma coisa ou outra sobre pavões orientais. Em particular, os estranhos caminhos percorridos, entre a Síria e a Índia, pela figura do pavão na literatura, no ritual e na arte. O chamado culto do pavão, praticado pelos Iasidis do Curdistão, é como que uma evocação local de um complexo circuito que conecta os antigos cristianismos sírio e sul-indiano. A sua ligação com a veneração de São Tomé, o evangelizador do Kerala, é tornada explícita numa série de textos alegóricos que dão conta da morte do apóstolo, trespassado pela seta de um caçador que o confundiu com um pavão que levantava vôo (ou, em certos relatos, o santo assumiu mesmo a forma da ave). A ligação metafórica entre um e outro é fundada na noção de imputrescibilidade dos corpos de ambos: tal como o cadáver de São Tomé ficou preservado ad eterno devido ao facto de ter tocado a carne de Cristo, no célebre episódio da incredulidade na Ressurreição, relatado em João 20:24–29, à carne de pavão são atribuídas qualidades muito particulares na literatura enciclopédica antiga.
 
Plínio-o-Velho refere, na História Natural, que os pavões eram criados em Roma para serem servidos em banquetes, porque a sua carne não apodrecia (X, 23). Santo Agostinho fala também sobre a carne de pavão, notando que esta tem uma particularidade miraculosa: a de resistir longamente à putrefação depois da morte. O autor da Cidade de Deus pôde comprovar, em Cartago, que mais de um ano depois de ter mandado guardar um pedaço de peito de pavão assado, a carne ainda estava em condições de ser consumida (Cidade de Deus, XXI, IV, 1, 3).
 
Fazendo-se eco das informações dos bestiários medievais sobre o pavão, Brunetto Latini nota que, apesar da sua beleza, o pavão tem um pescoço "serpentino", voz de diabo, e pés de "safira" (i.e., azuis e sem brilho). Ao voltar as costas aos homens, orgulhoso da sua plumagem, mostra a fealdade da sua "parte traseira"; ao contrário da carne da perdiz, a carne do pavão é dura e pouco saborosa (Livro do Tesouro, CLXVIX). Gossouin de Metz sublinha também a dualidade dos sentimentos expressos pelo pavão, correlativa da sua ambiguidade morfológica: olhando para a sua cauda aberta em leque, sente-se um rei, orgulhoso da sua beleza, mas quando olha os seus pés, "que são feios", deixa cair a sua cauda para os cobrir, envergonhado (Image du monde, II, VI, CD). A duplicidade que caracteriza o pavão é tema para uma descrição particularmente eloquente de Hildegard de Bingen, que refere que a carne de pavão não é saborosa, mas não apodrece facilmente (ao contrário da carne de perdiz): a vesícula pode ser conservada e aplicada sobre as escrófulas para assim "fazer sair a putrefacção" da pele; também as plumas podem ser usadas para impedir a putrefacção das queimaduras (Física, VI, III).
 
Existem, portanto, razões óbvias para fazer do pavão um avatar de São Tomé: trata-se de sublinhar o carácter imputrescível da carne morta de um apóstolo que foi tentado pelo pecado do orgulho da sua incredulidade perante a palavra de Cristo.
 
A ideia de que a fealdade se esconde por detrás da beleza, e de que a vergonha vence o orgulho, está bem expressa nas traseiras do edifício das Caves José Maria da Fonseca, em Vila Rica. A sua fachada frontal, que incorpora a Fonte dos Pasmados, encontra-se muito bem cuidada e é legítima fonte de orgulho dos seus proprietários e dos azeitonenses em geral. Mas, se virarmos a esquina da Rua Direita (a Rua José Augusto Coelho) e entrarmos na estreita lateral cujo nome parece maior que ela (a Rua Helena da Conceição dos Santos e Silva), circundando o longo edifício caiado, deparamo-nos a certo momento com uma visão que nos faz lembrar a “parte traseira” de um pavão. Em vez de descrever o pedaço de paisagem, remeto o leitor para a fotografia anexa - porque uma imagem vale mil palavras, que são mais que aquelas que este curto texto pode comportar.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2023

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há uma mulher em azeitão

23/11/2022

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O defunto grupo eclético-pop Astrud, constituído pela dupla Manolo Martinez e Genís Segarra, é uma daquelas preciosidades espanholas que poucos portugueses conhecem ou apreciam. Com maestria e sarcasmo, misturavam referências do ye-ye dos anos 60 com new wave, brit-pop e música marginal espanhola. Irromperam em cena em 1997 com o álbum Mi fracasso personal e presentearam o público do país irmão durante 15 anos com êxitos como Todos nos parece uma mierda (2004), Algo cambió (2006), e Tu no existes (2007), até se eclipsarem em 2012 após uma breve associação com o Col.lectiu Brossa de Barcelona.
 
Em 2005, produziram um dos vídeo-clips mais curiosos da música popular contemporânea espanhola: o Hay um hombre en España que lo hace todo, legendado em mandarim, que segue um condutor de riquexó transportando turistas chineses em visita a uma Pequim ultra-moderna. A letra é inesquecível:
 
Hay un hombre que lo hace todo en España. Es el que te coge los bajos del pantalón, es el genio visionario que se inventó el Colacao, es el que que pone anchoas dentro de las aceitunas, es amante de la infanfa y lo es de más de uma. Traduce los artículos de Le Monde Diplomatique, es el que hace los masajes en Masajes a Mil, se inventa los debates que hacen en Antena 3, es cajero del Ikea, y es teniente coronel, es el que redacta y responde las encuestas, es el gilipollas que reparte las becas...
 
Desde que ouvi pela primeira vez esta canção, não consigo deixar de olhar para Portugal sem imaginar quem será o equivalente luso deste misterioso e fantástico personagem que, tal o Charlie Chaplin do Modern Times, tem por missão fazer funcionar o melhor e o pior, o mais corriqueiro e o mais singular, da sociedade espanhola. Porque tem de haver alguém responsável pelas nossas absurdidades: um alguém que coloca repentinos sinais de 40km numa auto-estrada, que envia notificações das finanças a mortos, que corrompe este ou aquele governante, que adia operações urgentes à vesícula, e que perde os processos do fundo de desemprego.
 
Assim no país. Mas e em Azeitão? Quem será a pessoa que por faz tudo nesta mescla de nostálgica desordem tardo-rural e periurbana a escassos trinta quilómetros da metrópole lisboeta? Para que tudo funcione e não funcione em Azeitão, para que tudo se passe bem e opere mal, há-de ter de haver um responsável irresponsável, um bode expiatório e um inspirador conspiratório. E, dadas as peculiares e tradicionais relações de género na região, esse homem há-de certamente ser uma mulher. É ela o génio, o artista, o visionário, que está por baixo, por detrás e em cima de tudo o que ocorre na vila e arredores.
 
É ela quem lava diligentemente os lençóis das quintas “da família”, que puxa o lustro das super-motas que vociferam nas noites de quarta-feira, que enrola as tortas de ovos e torce os esses de canela, que varre a entrada da Santa Casa e troca receitas no grupo de Facebook.
 
É ela que faz os itinerários do autocarro que não sai da garagem por falta de motorista, que camada-a-camada faz subir o alcatrão das ruas acima da calçada, que tortura as oliveiras com penteados bonsai, que alimenta gatos e ratazanas nos esconsos dos baldios.
 
É ela que entope as sarjetas no final do Verão, que rompe os canos que o piquete reparou, que faz crescer a erva nas bermas da estrada, que deixa os cães a ladrar no quintal da moradia enquanto limpa os trilhos pedestres da serra.
 
É ela que cose os botões das camisas de escuteiro do filho enquanto o marido e a amante visitam a sex shop do Brejo, que leva a filha à escola e deixa o carro sobre o passeio, que denuncia a vizinha à Guarda porque a vizinha a denunciou primeiro, e não fala à prima que ficou com as pratas da herança.
 
Alguém sabe onde ela pára? Eu gostava de a conhecer.
 
Jornal de Azeitão, Dezembro 2022

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cuidado com o sapo

23/11/2022

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É muito fácil dar a outrem o direito a ter um ponto de vista distinto e até oposto ao nosso. Muito mais difícil é dar ao ponto de vista de alguém precedência sobre o nosso. Isso só pode acontecer se conseguimos alterar o ponto de vista do outro para que se assemelhe ao nosso, ou então quando nos apropriamos do seu ponto de vista tornando-o nosso.
 
Ao longo de séculos, uma relação especial desenvolveu-se entre as comunidades sedentárias portuguesas e grupos de comerciantes e trabalhadores nómadas que se cria virem do Oriente, próximo ou longínquo (do noroeste da Índia, diz-se; do Egitpo, pensava-se). Embora estes grupos se autodenominassem como rom, receberam vários epítetos, geralmente com entoações depreciativas: zíngaros, manuches, caloms, ciganos. A história deste relacionamento é complexa e pouco clara, porque grande parte dela tem sido feita através de um jogo de percepções e contra-percepções que raramente foram tidas como merecedoras de registo escrito. Mas não será de todo infundado sugerir que foi neste relacionamento secular especial, feito de desconfiança mútua, desconhecimento e preconceito recíprocos, que muitos portugueses optaram por canalizar as suas pulsões xenófobas, etnocêntricas e porventura desumanizadoras. Os “ciganos” são o nosso outro preferido, sobretudo porque a comunidade rom desenvolveu discursos e práticas de autodefesa que assumem uma forma a uma vez confrontadora e oportunística, que pode por vezes ser profundamente desconcertante: reconhecendo a dificuldade de superar o estatuto de comunidade subalterna e excluída que lhe é atribuído exteriormente, não largam mão do seu direito a ser comunidade e reter teimosamente as suas marcas identitárias, que geralmente se expressam através de um arreigado conservadorismo cultural.
 
Tive uma vez uma longa conversa com o pai de uma amiga valenciana, decano de uma orgulhosa família gitana. Falou com grande admiração da força do tradicionalismo dos “ciganos” portugueses, notando que tendo estes, ao contrário das comunidades da Europa de Leste, perdido o conhecimento da língua e religião romani, mantinham ainda assim virtualmente intactas diversas tradições e instituições que os seus congéneres espanhóis, obviamente muito mais integrados socialmente, tinham há muito abandonado. Esta visão feita ao arrepio da imagem consolidada do gitano tradicional espanhol – muito por efeito da dignificação do flamenco como forma musical nacional – levanta um interessante véu sobre os efeitos identitários da exclusão social secular a que os “ciganos” portugueses têm sido submetidos.
 
Quem passeia por Azeitão não pode deixar de notar que os portões e muros de muitas moradias ostentam figuras de cerâmica vidrada representando sapos. Não é, como se depreende, uma especificidade da vila. Os sapos de louça são tão caraterísticos das casas e lojas portuguesas como os duendes dos jardins irlandeses, os laços amarelos das varandas norte-americanas, os deuses elefantes no subcontinente indiano, e os gatinhos de porcelana que abanam a pata direita na China. Menos famosos mundialmente que os pastéis de nata, já mereceram ainda assim reportagens do canal televisivo Al Jazeera.
 
Segundo a sabedoria popular e o Google, a colocação de figuras de sapos em montras e prateleiras de lojas, assim como em portões, muretes e relvados de moradias, é suposto afastar qualquer incauto membro da comunidade “cigana”, que terá um pavor irracional de sapos, na medida em que representam beng, uma figura diabólica, e são usados em rituais de magia negra. Não posso asseverar que todos os comerciantes e habitantes que dispõem figuras de sapos à vista de todos acreditam de facto que eles têm o poder de amuleto capaz de afastar alguém, assim como estou muito longe de crer que alguém entre em estado de pânico ao ver um anfíbio de porcelana pintada de verde. Mas, ao ouvir e ler ao longo dos anos tantos depoimentos de diversos concidadãos meus, posso confirmar que o diz que disse levou a uma convicção generalizada de que essa é a razão pela qual estes sapos vidrados proliferam em Portugal.
 
No entanto, é importante referir o seguinte, para melhor enquadrar a questão dos sapos e da xenofobia lusa. A literatura enciclopédica tardo-romana e medieval associa regularmente os sapos a práticas de feitiçaria, a malefícios, nomeadamente devido à crença de que cuspiam veneno. Os bestiários, que não distinguiam os anfíbios dos répteis, descreviam-nos como animais diabólicos, mas que, sendo terráqueos e frios como as salamandras, a sua pele e ossos podiam ser, secos, usados como protecção contra os efeitos do calor ou ataques de animais. Tal como acontecia com certas serpentes lendárias, imaginava-se que guardavam na cabeça uma pedra preciosa que podia ser usada como antídoto contra envenenamento. As recolhas de folclore europeu também referem que, sendo tradicional certas mulheres romani praticarem bruxaria e adivinhação, e usarem sapos em encantamentos e em curas medicinais, foi por extensão criada uma ligação entre o receio de sapos e a desconfiança em relação à comunidade rom.
 
O antropólogo James George Frazer, que dedicou muitas páginas ao estudo do pensamento mágico, falava da lei do contágio segundo a qual uma crença psicológica de que, quando duas pessoas ou coisas entram em contacto, uma ligação persiste, cujos efeitos maléficos só poderão ser anulados através de rituais de purificação ou de esconjuro, ou pela utilização de amuletos. Os sapos de louça poderiam, nesta perspectiva, ser interpretados como fetiches que, representando um animal associado aos rom, teria o poder de enfraquecer os poderes maléficos que lhes são atribuídos. No entanto, estou mais tentado a ver os sapos de louça como subtil manifestação da capacidade humana para criar e manter mal-entendidos. Os portugueses estabeleceram um conjunto de associações confusas entre crenças tradicionais: entre poderes diabólicos e sapos, entre sapos e a prática de bruxaria, entre bruxaria e o povo rom, e acabaram por acreditar que os rom tinham, por misterioso contágio, adquirido o medo de sapos que era anteriormente o medo dos portugueses. O uso de sapos de louça para afastar “ciganos” segundo a crença de que eles teriam medo de sapos reais tornou-se num sinal claro de que quem os coloca em portas de casa e prateleiras de loja tem medo de “ciganos”. Assim, uma pessoa a quem é atribuído o epíteto de “cigano”, ao ver um sapo de louça numa casa ou loja, fica a saber que o seu proprietário é medroso e, porque quem tem medo se pode tornar violento, prefere não entrar para não ser sujeito à agressão por palavras ou actos xenófobos.
 
Que fique claro: não pretendo com este texto convencer nenhum leitor, nem espero ser convencido a colocar sapos de louça no portão de minha casa.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2022
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    Manuel joão ramos

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