MANUEL JOÃO RAMOS
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cuidado com o sapo

23/11/2022

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É muito fácil dar a outrem o direito a ter um ponto de vista distinto e até oposto ao nosso. Muito mais difícil é dar ao ponto de vista de alguém precedência sobre o nosso. Isso só pode acontecer se conseguimos alterar o ponto de vista do outro para que se assemelhe ao nosso, ou então quando nos apropriamos do seu ponto de vista tornando-o nosso.
 
Ao longo de séculos, uma relação especial desenvolveu-se entre as comunidades sedentárias portuguesas e grupos de comerciantes e trabalhadores nómadas que se cria virem do Oriente, próximo ou longínquo (do noroeste da Índia, diz-se; do Egitpo, pensava-se). Embora estes grupos se autodenominassem como rom, receberam vários epítetos, geralmente com entoações depreciativas: zíngaros, manuches, caloms, ciganos. A história deste relacionamento é complexa e pouco clara, porque grande parte dela tem sido feita através de um jogo de percepções e contra-percepções que raramente foram tidas como merecedoras de registo escrito. Mas não será de todo infundado sugerir que foi neste relacionamento secular especial, feito de desconfiança mútua, desconhecimento e preconceito recíprocos, que muitos portugueses optaram por canalizar as suas pulsões xenófobas, etnocêntricas e porventura desumanizadoras. Os “ciganos” são o nosso outro preferido, sobretudo porque a comunidade rom desenvolveu discursos e práticas de autodefesa que assumem uma forma a uma vez confrontadora e oportunística, que pode por vezes ser profundamente desconcertante: reconhecendo a dificuldade de superar o estatuto de comunidade subalterna e excluída que lhe é atribuído exteriormente, não largam mão do seu direito a ser comunidade e reter teimosamente as suas marcas identitárias, que geralmente se expressam através de um arreigado conservadorismo cultural.
 
Tive uma vez uma longa conversa com o pai de uma amiga valenciana, decano de uma orgulhosa família gitana. Falou com grande admiração da força do tradicionalismo dos “ciganos” portugueses, notando que tendo estes, ao contrário das comunidades da Europa de Leste, perdido o conhecimento da língua e religião romani, mantinham ainda assim virtualmente intactas diversas tradições e instituições que os seus congéneres espanhóis, obviamente muito mais integrados socialmente, tinham há muito abandonado. Esta visão feita ao arrepio da imagem consolidada do gitano tradicional espanhol – muito por efeito da dignificação do flamenco como forma musical nacional – levanta um interessante véu sobre os efeitos identitários da exclusão social secular a que os “ciganos” portugueses têm sido submetidos.
 
Quem passeia por Azeitão não pode deixar de notar que os portões e muros de muitas moradias ostentam figuras de cerâmica vidrada representando sapos. Não é, como se depreende, uma especificidade da vila. Os sapos de louça são tão caraterísticos das casas e lojas portuguesas como os duendes dos jardins irlandeses, os laços amarelos das varandas norte-americanas, os deuses elefantes no subcontinente indiano, e os gatinhos de porcelana que abanam a pata direita na China. Menos famosos mundialmente que os pastéis de nata, já mereceram ainda assim reportagens do canal televisivo Al Jazeera.
 
Segundo a sabedoria popular e o Google, a colocação de figuras de sapos em montras e prateleiras de lojas, assim como em portões, muretes e relvados de moradias, é suposto afastar qualquer incauto membro da comunidade “cigana”, que terá um pavor irracional de sapos, na medida em que representam beng, uma figura diabólica, e são usados em rituais de magia negra. Não posso asseverar que todos os comerciantes e habitantes que dispõem figuras de sapos à vista de todos acreditam de facto que eles têm o poder de amuleto capaz de afastar alguém, assim como estou muito longe de crer que alguém entre em estado de pânico ao ver um anfíbio de porcelana pintada de verde. Mas, ao ouvir e ler ao longo dos anos tantos depoimentos de diversos concidadãos meus, posso confirmar que o diz que disse levou a uma convicção generalizada de que essa é a razão pela qual estes sapos vidrados proliferam em Portugal.
 
No entanto, é importante referir o seguinte, para melhor enquadrar a questão dos sapos e da xenofobia lusa. A literatura enciclopédica tardo-romana e medieval associa regularmente os sapos a práticas de feitiçaria, a malefícios, nomeadamente devido à crença de que cuspiam veneno. Os bestiários, que não distinguiam os anfíbios dos répteis, descreviam-nos como animais diabólicos, mas que, sendo terráqueos e frios como as salamandras, a sua pele e ossos podiam ser, secos, usados como protecção contra os efeitos do calor ou ataques de animais. Tal como acontecia com certas serpentes lendárias, imaginava-se que guardavam na cabeça uma pedra preciosa que podia ser usada como antídoto contra envenenamento. As recolhas de folclore europeu também referem que, sendo tradicional certas mulheres romani praticarem bruxaria e adivinhação, e usarem sapos em encantamentos e em curas medicinais, foi por extensão criada uma ligação entre o receio de sapos e a desconfiança em relação à comunidade rom.
 
O antropólogo James George Frazer, que dedicou muitas páginas ao estudo do pensamento mágico, falava da lei do contágio segundo a qual uma crença psicológica de que, quando duas pessoas ou coisas entram em contacto, uma ligação persiste, cujos efeitos maléficos só poderão ser anulados através de rituais de purificação ou de esconjuro, ou pela utilização de amuletos. Os sapos de louça poderiam, nesta perspectiva, ser interpretados como fetiches que, representando um animal associado aos rom, teria o poder de enfraquecer os poderes maléficos que lhes são atribuídos. No entanto, estou mais tentado a ver os sapos de louça como subtil manifestação da capacidade humana para criar e manter mal-entendidos. Os portugueses estabeleceram um conjunto de associações confusas entre crenças tradicionais: entre poderes diabólicos e sapos, entre sapos e a prática de bruxaria, entre bruxaria e o povo rom, e acabaram por acreditar que os rom tinham, por misterioso contágio, adquirido o medo de sapos que era anteriormente o medo dos portugueses. O uso de sapos de louça para afastar “ciganos” segundo a crença de que eles teriam medo de sapos reais tornou-se num sinal claro de que quem os coloca em portas de casa e prateleiras de loja tem medo de “ciganos”. Assim, uma pessoa a quem é atribuído o epíteto de “cigano”, ao ver um sapo de louça numa casa ou loja, fica a saber que o seu proprietário é medroso e, porque quem tem medo se pode tornar violento, prefere não entrar para não ser sujeito à agressão por palavras ou actos xenófobos.
 
Que fique claro: não pretendo com este texto convencer nenhum leitor, nem espero ser convencido a colocar sapos de louça no portão de minha casa.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2022
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La Dulce Vita

6/10/2022

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Está a vila, a região e o país cheios de imigrantes franceses. São parte não menosprezável da nouvelle vague que tem aspergido, em anos recentes, as costas lusas. Muita água passou desde as invasões napoleónicas de má memória e esta nova presença nada deve a ensejos de expansão militarista. Antes, se quisermos enveredar por paralelismos históricos, evoca mais o súbito cosmopolitismo do país no início da era de quinhentos. As razões do fenómeno e as motivações dos novos migrantes serão, como sempre são, variadas. Mas pesou certamente a liberalização cavalgante do mercado imobiliário, a força do rent gap, o reencaminhamento do turismo de um norte de África tomado por instabilidade política, e o escandaloso programa de isenção de impostos a reformados europeus (somado ao ainda mais escandaloso programa dos vistos gold).
 
Certo é que o pendulo migratório oscilou em sentido contrário ao da histórica rota da emigração tuga com uma mão à frente e a outra atrás. A integração da diáspora lusa no tecido urbano multi-cultural francês fomentou, por lá, percepções a uma vez nostálgicas, exóticas e paternalistas em relação ao país de origem dos maçons, carreleurs e concièrges. Viemos assim a ser tomados, não propriamente como europeus, mas como simpáticos, brandos e submissos magrebinos católicos. Para as massas que tinham ganho o hábito de viajar para as kasbahs marroquinas ou argelinas, a vida em Campo de Ourique ou na Vila Rica é encarada como uma alternativa soft, com metade das moscas e o dobro do saneamento de Marrakesh e Monastir. E, além disso, há vinho castiço, queijo imitadiço, café barato nas esplanadas, e cada vez mais filmes francófonos nos canais televisivos.
 
Uma discreta torrente de filmes, romances, documentários, e álbuns de fado fusion muito contribuiram também para apimentar a curiosidade gálica pelo país do passtel dê natá. E nós correspondemos, mas – digamo-lo abertamente – com subtis “empoderamentos”. Somos os primeiros na fila das novas patisseries, mas deixámos de nos vergar à língua de Molière, cheios que estamos com a língua de Shakespeare e Eminem. Não nos deixamos impressionar pela cuisine française, sabemos que um DOP da Península de Setúbal vale dez Côtes du Rhone, preferimos ostentar Gucci a Viuton, e apoiar o Barça contra o PSG.
 
Misturados neste enxame migratório do além-Pirenéus vêm também os retornados das cages dorées, primeiras, segundas e terceiras gerações da diáspora lusitana. Vêm reformados, retirados, retratados, simplesmente saudosos, ou então desempregados do mercado de trabalho francês.
 
(Uma palavra breve sobre o sentido de chômeur em francês: trata-se de um termo que remonta à Idade Média e que significava, na origem, alguém que devido ao calor estival fazia uma pausa no trabalho (caumare, em occitano e latim); com a crise económica de 1846, passou a designar os muitos milhares de desempregados que vieram a participar na revolução de 1848 contra a chamada monarquia de Julho).
 
Na fronteira entre os concelhos de Setúbal e Sesimbra, na urbanização cogumelo do Alto das Vinhas, tive a muito grata surpresa de conhecer a Dulce, alentejana de afável olho azul e desarmante sorriso que, após 40 anos a trabalhar como maquilhadora para a TF1, a Arte e a M6, deu uma volta à vida e fez o caminho de regresso ao país natal. Percorreu o litoral em busca de pouso para o negócio que decidiu abraçar: a confecção e venda de pizzas caseiras num moderníssimo foodtruck. Aparcou brevemente na Fonte da Telha mas, porque o casario é ali todo ilegal, continuou a procurar até que encontrou uma moradia mignone com jardim entre os pinheiros do Alto das Vinhas. Quando a Câmara Municipal de Sesimbra lhe recusou licença para instalar o foodtruck em espaço público da vila, não desarmou. Perguntou ao funcionário: “mas posso instalá-lo no meu jardim?”. Como o regulamento municipal parecia ser omisso quanto à possibilidade, a resposta veio positiva e, desde então, a Dulce serve deliciosas pizzas soberbamente maquilhadas ao gosto do cliente no seu cuidado jardim, testemunho da estética fusion alentejano-parisiense.
 
E, como inevitável bónus, os clientes caem apaixonados pelas doces modulações do seu sotaque.
 
 Jornal de Azeitão, Outubro 2022
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A VERNISSAGE

6/10/2022

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A noção de preservação do património é espinhosa. Assim como o é o entendimento do que é criação artística. Segundo os padrões da europeidade – geralmente estabelecidos nas margens do Sena, do Tamisa e do Elba (vá lá, também do Tibre) -, os portugueses são fracos preservadores do património arquitectónico. Sintra e Óbidos não competem na mesma liga que Tivoli e Rocamadour. Grão Vasco e Joana Vasconcelos passam por meros copistas das tendências da Casa Médici florentina e da Documenta de Kassel. É ponto assente pela “inteligência” alfacinha que rebocar palacetes a cimento, instalar janelas de alumínio na Casa dos Bicos, e “estragar” centros históricos com construções moderno-brutalistas é sinal de vandalismo cultural típico do vernáculo da nossa boçalidade.
Por mim, prefiro ver as coisas de outra maneira. Não me aflige substituir calçada “à portuguesa” por lajetas de cimento se isso melhora o conforto dos viandantes. Atrai-me mais o melting pot de São Teotónio que o de Óbidos, o Bairro das Fontainhas em Setúbal que a Rua Cor de Rosa e o Campo de Ourique em Lisboa. E quanto à fraca criatividade artística portuguesa... acho que os estetas procuram a musa nos lugares errados. Se queremos ver boa arte em Portugal, há que fugir da Galeria 111 e do Museu do Chiado, e percorrer as aldeias, vilas, e bordas de estrada lusas para bem apreciar a explosão de criatividade autóctone. Os portugueses não produzem Picassos, Beuyses, Pollocks ou Damien Hirsts, porque não precisam deles em cima da lareira. Antes, dedicam a sua energia, o seu ethos e o seu pathos, à produção de formas geométricas complexas a que dão o nome de “moradias”. Não há uma igual a outra, e nenhuma arquitectonicamente aborrecida, sobretudo desde que a Revolução dos Cravos veio dar rédea livre à imaginação individual e colectiva pátria. No Reino Unido diz-se que “a minha casa é o meu castelo”. Em Portugal, país de estetas espontâneos, “a minha casa é a minha obra-prima”.
Vem isto a propósito do facto da renovação de uma casa do largo da Piedade onde, no andar térreo ficava (e voltou a ficar) o café e mercearia da aldeia. Foi há coisa de dois anos que publiquei aqui um texto chamado “A morte da aldeia”. Falava sobre o encerramento iminente do café, e sobre o impacto previsível que isso teria sobre a vida dos seus habitantes, tanto os usuais como os de arribação. A verdade é que as quarentenas e outras várias restrições destruíram  o negócio do Norberto e da Olga e desde aí a aldeia ficou sem café, sem mercearia, e por isso sem um ponto certo onde as conversas podiam ser postas em dia, a terra da lavoura e o pó das obras podiam ser lavados com minis, o passado e o futuro podiam ser presentes a público.
O edifício foi posto à venda, e veio a ser comprado por um jovem casal holandês que tomou como ponto assente que tanto a mercearia como o café haviam de voltar a abrir, em parceria com a Alexandra, de raíz local. As obras são como são, as licenças camarárias são como sempre serão mas, após meses de expectativa, os sinais da renovação começaram a acumular-se. À porta do prédio, o tijolo e o cimento foram dando lugar às latas de tinta e aos materiais de pavimentação, os pedreiros deram lugar aos estucadores, e estes aos canalizadores e electricistas. No supermercado da vila, uma vizinha confidenciou-me “está para breve”, na rua da Escola outro comentou “agora é que vai ser; o café vai voltar”. Finalmente um dia, frente ao portão de ferro, apareceu um letreiro grafitado a giz tratando o leitor com uma inconfundível familiaridade empática holandesa: “Olá, aldeia! Vamos abrir  o café no dia 15 de Agosto”. E assim foi. Uma maneira diferente de fazer a festa na aldeia.
Sim, dia 15 de Agosto é, tradicionalmente, o dia final da Festa de Nossa Senhora da Conceição, na capela de São Pedro, que este ano mereceu apenas cerimonial religioso. A comissão de festas alegou que, à semelhança de 2020 e 2021, ainda se aplicavam as restrições do COVID e que, por isso, os bailes, rifas e bifanas só regressarão à aldeia no Verão de 2023. Pouco importa mais bailarico, menos bailarico. O que interessa mesmo é que o café e a mercearia estão de regresso e a vida da aldeia sente-se renascer.
Renasce diferente, como é óbvio, assim como o café. Nestes dois anos, mais ou menos, não foi só o Norberto e a Olga que deram uma volta à vida. A pandemia foi má para muita gente, mas boa para certos negócios, em particular o imobiliário. Várias quintas, moradias e casinhas de aldeia mudaram de mãos e de destino. Os casarões foram recuperados, os jardins ganharam novos ciprestes, os alojamentos locais multiplicaram-se e, com eles, as matrículas estrangeiras dos carros. Será incipiente a alteração demográfica, mas já se faz sentir na via pública: há mais passeadores de cães, mais licra a fazer jogging nos trilhos, mais sotaques de terras protestantes.
Dias antes da inauguração do café, a Sabina chamou-me do lado de lá do portão para anunciar de viva-voz a boa nova. Na parede rebocada e pintada de fresco, o novo nome foi aposto sobre o branco alvo, em ferro forjado negro: “LIMA”. Duas pipas e três mesas apareceram a decorar a entrada do café. Tudo pronto para o grande dia, portanto.
Ao chegar ao café, na segunda de manhã, já havia um grupo de fiéis lá dentro, e o Arnauld, a Sabina e a Alexandra cumprimentavam os recém-chegados de sorriso aberto e sentimento de dever cumprido. A vernissage foi um retumbante êxito: entre croquetes, fatias de bolo de laranja, galões e minis, o público apreciou a obra de arte, comentando em detalhe os materiais usados, a disposição dos espaços, não esquecendo nunca de enquadrar a peça na linha histórica da arte local. O café “Lima” é sem dúvida a nova obra-prima da fusion art azeitonenese: a forma tradicional do edifício manteve-se inalterada, mas foi convenientemente rebocada a cimento e pintada de branco; o limoeiro no topo das escadas foi podado; as barricas vieram dar à entrada um alegre toque germânico; os matraquilhos e as rifas foram-se, assim como as fraldas Lanidor e o Baygon para formigas, mas agora há um terminal multibanco muito chique e uma máquina de café reluzente; os bancos e mesas toscos do interior foram substituídos por cadeiras de ferro forjado e mesas de pedra; o pátio interior foi reaberto, prometendo noitadas de poesia francesa e fado corrido. Em suma, um primor de gentrificação suave, que alegra toda a gente, na aldeia e arredores. Só falta uma tabuleta a substituir o antigo “Aqui não se fia”: “Os críticos de arte contemporânea não são bem-vindos”.
 
Jornal de Azeitão, Setembro 2022
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Efigénia, santa africana

18/9/2022

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“Tradição cultural” é uma expressão comum e muito desgastada. O seu sentido deriva, ele próprio, de uma tradição cultural. Uma vez forjado, pela pena da antropologia oitocentista para qualificar a permanência temporal de usos e costumes, e em oposição às noções de modernidade e progresso, o seu sentido raramente foi sujeito a escrutínio ou revisão. É certo que o historiador Eric Hobsbawm introduziu em 1983 o conceito de “tradições inventadas”, para descrever situações em que novas práticas ou objectos são introduzidos numa dada comunidade reclamando uma continuidade ficcional com práticas ou objectos passados. Esta inovação veio provocar uma brecha na visão linear que opunha “tradição” e “modernidade”. Mas ainda assim, porque o enfoque de Hobsbawm era o debate sobre os processos de modernização, a essência da “tradição cultural” permaneceu intacta e inquestionada.
A ideia de “tradição cultural” foi essencial na criação de todo o aparelho legislativo e ideológico que a UNESCO veio a designar como “património intangível”. Não é que este equivalha àquela, mas entende-se que os processos de patrimonialização – de preservação induzida pelas autoridades estatais – se fundamentam na existência e na bondade das tradições culturais. 
Mas não será que as tradições estão sempre a ser (re)inventadas, e que a sua realidade se esfuma apenas quando é consciencializada? Se assim for, a patrimonialização cultural corresponde à sua sentença de morte. Há alguma razão para pensar que assim é, sobretudo quando tais processos de patrimonialização se tornam elementos de estratégias comerciais, muitas delas de promoção política do consumo turístico.
Os casos mais evidentes, em anos recentes, têm sido as candidaturas ao estatuto de património intangível (ou imaterial) da humanidade, da UNESCO, em que o dito “património intangível” se impôs como homónimo politicamente correcto, e comercialmente apelativo, da velha expressão “tradição cultural”. Declarar o fado, os cantares alentejanos ou o “saber fazer” trouxas de ovos como “património intangível” não serve para preservar tradições, mas para as ossificar e as subjugar à indústria turística.
Vem isto ao caso das minhas recentes pesquisas amadoras em torno do queijo de Azeitão, e sobretudo da curiosa inovação que é a produção, ainda experimental, de queijo “de Azeitão”, feito a partir do leite de cabra serpentina, na Quinta de Camarate. Já aqui referi (num texto publicado em Maio passado) o misterioso queijo das cabras serpentinas. Mas deixei de fora um dado curioso, que me tem suscitado algumas interrogações históricas admitidamente especulativas. 
O rebanho de cabras serpentinas (i.e., de Serpa) que produz o almejado leite cru vive e pasta numa pequena quinta à entrada de Setúbal. Ora, essa quinta tem um nome surpreendente: Quinta de Santa Efigénia. Digo surpreendente porque a memória desta santa é muito rarefeita em Portugal. Existe, claro, uma igreja de Santa Efigénia no Porto e outra em Penela. Um dos altares da igreja de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, é dedicado a Santa Efigénia e a Santo Eslabão. Outras ocorrências do seu culto são ainda mais esparsas e apagadas: uma pequena imagem de Santa Efigénia em terracota no Museu Municipal de Portalegre; duas estatuetas carmelitas representando São Eslabão e de Santa Efigénia na igreja do Carmo, em Faro. E pouco mais... No Brasil, pelo contrário, Santa Efigénia é muito popular desde o início do séc. XVIII, altura em que foi construída a igreja a ela dedicada em Ouro Preto, e em que se começaram, sob o seu patronato, a estabelecer diversas irmandades de escravos alforriados. Santa Efigénia foi uma princesa abissínia (ou, segundo outras fontes, núbia), convertida pelo apóstolo São Mateus; por seu lado, Santo Eslabão, rei de Axum no séc. VI, foi grande promotor do cristianismo em ambas as margens do Mar Vermelho. O culto destes santos, assim como o de São Benedito, foi um dos principais instrumentos da Igreja Católica no Brasil para converter os escravos africanos, em particular através de obras hagiográficas como: Os dois atlantes de Etiópia. Santo Elesbão, Imperador XLVII da Abissínia, advogado dos perigos do mar & Santa Ifigênia, Princesa da Núbia, publicado pelo frade carmelita José Pereira de Santana, entre 1735 e 1738.
A referência ao nome de Santa Efigénia numa quinta à entrada de Setúbal mereceria estudo histórico. Dadas as temperaturas estivais, optei por não o levar a cabo, limitando-me a notar algumas particularidades que poderão, ou não, ter alguma ligação entre si. Tal como aconteceu no Brasil, o culto dos santos Eslabão e Efigénia terá sido instrumental no processo de conversão de populações escravas e alforriadas de origem africana, em particular na Península de Setúbal e Alentejo. Na senda da descrição de populações descendentes de africanos no Vale do Sado, por José Leite de Vasconcelos, na sua Etnografia Portuguesa, os historiadores Isabel Castro Henriques e João Moreira da Silva publicaram o livro Os “Pretos do Sado”. História e Memória de uma Comunidade Alentejana de Origem Africana. Aí, referem-se especificamente às irmandades e confrarias religiosas do Vale do Sado como evidência do sucesso da conversão ao catolicismo dos muitos escravos e alforriados de origem africana para ali levados. A chamada Ribeira do Sado, faixa ribeirinha que liga Setúbal a Alcácer do Sal, era extremamente insalubre, devido à presença do mosquito anopheles, causador do paludismo ou febre terçã, o que terá suscitado o uso de mão de obra de escravos africanos, supostamente resistentes à doença, para trabalhar na agricultura e nas salinas. Por outro lado, diversas menções a africanos e mestiços em arquivos nacionais e locais, assim como alguns dados da toponímia azeitonense, como por exemplo o Pinhal de Negreiros, sugerem a possibilidade de o transporte de escravos para as plantações e salinas do Sado ter sido, pelo menos em parte, feito através da antiga estrada que ligava Almada a Setúbal.
Não custa imaginar que a Quinta de Santa Efigénia tenha recebido o nome devido à presença de mão de obra africana, ou eventualmente à existência de uma ermida que funcionava como sede de uma irmandade de antigos escravos africanos em Setúbal, ou até propriedade de família crioula africana. Especulações, eu sei, mas suportadas por inúmeros documentos de arquivo que comprovam a antiguidade da presença de populações africanas na Península de Setúbal, e pela evidência de que as tradições culturais, e em particular, religiosas, que se lhes encontram associadas estão longe de estar consciencializadas na nossa memória histórica actual. Por essa razão, esquecidas e apagadas como estão, têm escapado a ser patrimonializadas e, consequentemente, transformadas em instrumento de comércio – seja turístico, seja político. Com alguma sorte, ninguém que leia este texto cairá na tentação de valorizar a memória de Santa Efigénia.

Jornal de Azeitão, Junho 2022
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A Tragédia dos Comuns

30/5/2022

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A Quinta da Periquita, na Aldeia da Portela, hoje um “alojamento local” propriedade de investidores estrangeiros para uso de clientes também maioritariamente estrangeiros, não é propriamente um exemplo de quinta histórica ao contrário, por exemplo, da Quinta de Santo Amaro, da Quinta das Donas, ou do Casal do Bispo (a antiga Herdade da Infanta). O edifício foi reconstruído há pouco mais de 40 anos, pelo Juiz Francisco Rolão Preto, filho e homónimo do polémico monárquico integralista.
 
A quinta e o edifício em si não têm nada de particularmente notável, tirando a vista magnífica dos contrafortes da Serra da Arrábida. Para mim, uma parte do seu charme está na ligação indirecta a Rolão Preto pai. De cada vez que passo pela Estrada dos Barrancos, à saída do Largo da Portela, relembro-o, não tanto porque foi o fundador dos Camisas Azuis, o entusiasmado jovem de inclinações falangistas que conviveu com a família de Primo de Rivera, mas porque, enquanto fundador da Convergência Monárquica e posteriormente do Partido Popular Monárquico, foi um dos principais representantes do desditoso movimento comunitarista português. De facto, a mais interessante parte da sua obra literária é precisamente aquela que ele dedica à longa história do comunitarismo em Portugal e à defesa desse ideal.
 
Essa corrente silenciosa e grandemente silenciada pretende (ou pretendeu, porque hoje pouca coisa de discussão política corre ou sequer escorre em Portugal) reviver ideias e práticas seculares de organização social local de tendências colectivistas que se cristalizaram durante a Idade Média e foram progressivamente desarticuladas à medida que o Estado se centralizava e o Direito perdia o seu tertium genus, que era o direito comum para vantagem do binómio público/privado.
 
O direito ao uso comum de terras foi consagrado juridicamente nas Ordenações Manuelinas: para “os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras”, porque “proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e outros frutos”. Desde então, foi retrocedendo até praticamente desaparecer do Direito Civil durante o Estado Novo, ressurgindo timidamente na legislação posterior ao 25 de Abril de 1974.
 
No norte do país, como na Galiza, o uso comunitário dos baldios e a defesa da propriedade comunal está ainda viva, mas o facto de o poder autárquico se poder imiscuir na sua gestão tem resultado em infelizes atropelos ao direito comum, em benefício dos cofres de juntas de freguesia que cedem os baldios para, por exemplo, colocação de parques de eólicas em elevações ventosas. Sem estruturas, ideias ou pessoas que o defendam, o espaço do direito comunitário (que os ingleses designam como law of the commons, distinta da common law) é consumido pelo direito público e pelo direito privado.
 
A Serra da Arrábida está cheia de espaços baldios, de práticas comunitárias (ou pelo menos da sua memória). Mas, num mundo em que prevalecem os interesses públicos e privados, não podemos senão assistir saudosos à lenta morte trágica dos comuns. O caso, reportado nos jornais, da polémica em torno dos direitos comunitários no que respeita ao uso colectivo de espaços nas margens e interior da Herdade da Comenda (o parque das merendas junto à Ribeira da Ajuda, o acesso à praia, o caminho de Santiago) é claro sinal do estado comatoso em que se encontram hoje os ideais comunitaristas. A indignação popular contra as vedações instaladas pelo novo dono da Comenda, o fundo imobiliário Seven Properties, da Mirpuri Foundation, levou a que os setubalenses se concentrassem para gritar “A Comenda é nossa!” em 2019, numa manifestação em defesa do interesse comum. Mas rapidamente a autarquia se acaparou do processo, que a partir daí se transformou num jogo político no qual o direito público (nomeadamente o do embargo) tem digladiado contra o direito privado dos fundos de investimento turístico. E, por esta via, o direito dos comuns se vai esboroando até desaparecer, como uma praia sem areia na maré cheia.
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2022
 
 
 
 

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Grande 25 de Abril

30/5/2022

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Não há quase terra portuguesa onde o 25 de Abril não seja invocado, em largos, ruas e avenidas. Mais precisamente, contam-se 1.600 atribuições da data, e dos seus correlatos Movimento das Forças Armadas, Capitães de Abril e Revolução de Abril, no conjunto dos municípios portugueses. Apenas 20 concelhos, todos no norte do país, não o celebram na sua toponímia, entre eles Santa Comba Dão, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro e Proença-a-Nova. Há um modesto 25 April Close, em Oldham, na periferia leste de Manchester, uma  Avenue d'Avril 25, no bairro Woluwe-Saint-Lambert, em Bruxelas, um Calle 25 de Abril em Veracruz, no México.

Curiosidade enciclopédica, o 25 de Abril é celebrado em Portugal, naturalmente, mas também em Itália, como o dia da Libertação Nacional no final 2ª Guerra Mundial; na Austrália, Nova Zelândia, Tonga e Samoa, lembrando o dia em que os ANZAC desembarcaram em Galipoli, na Turquia; na Alemanha, como Dia da Árvore; no Egipto, como o Dia da Libertação do Sinai; na Coreia do Norte, como o Dia do Exército Popular; na Suazilândia, como o Dia da Bandeira Nacional; e no Cazaquistão, como o Dia do Futebol. As Nações Unidas celebram-no como o Dia Mundial da Malária e o Dia do ADN. Actualmente, o 25 de Abril já não é comemorado em Israel, onde a assinatura dos Acordos de Camp David, em 1982, deixou de ser motivo de júbilo, nem na Etiópia, porque a comemoração da devolução do Obelisco de Axum, em 2005, transportado para Roma pelo exército italiano em 1937, foi introduzida pelo governo liderado pelos tigrínios – que se encontram agora em guerra contra o novo poder em Adis Abeba.

Várias comemorações da Igreja ortodoxa caem falsamente no 25 de Abril: a eliminação de 13 dias em Fevereiro, aquando da adopção do calendário gregoriano na União Soviética, e a criação do calendário juliano revisto fizeram que várias comemorações de santos tenham passado para o dia 12 de Abril: São Basílio, o Confessor, Zenão, Bispo de Verona, Santo Isaac, o Sírio , os Mártires Mina, David e João, a Virgem Anfusa de Omónia,  Atanásia de Egina, bem como a comemoração do ícone Murom da Mãe de Deus.

Na Roma antiga, o festival da Robigalia realizava-se também a 25 de abril, em homenagem ao deus Robigus. Era um festival agrícola que tinha lugar na fronteira do Ager Romanus, num bosque que se situava ao longo da Via Claudia, dedicado à protecção dos campos cerealíferos; Verrius Flaccus refere que, além de vários jogos, o festival incluía um sacrifício do sangue e vísceras de um cachorro não desmamado.
Azeitão e Sesimbra concorrem para esta comemoração pública com aquela que é possivelmente uma das longas e mais estranhamente designadas avenidas do país. A Avenida 25 de Abril tem não menos de 31 quilómetros e liga o Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel à aldeia de Cabanas onde, entre a Farmácia Graça e as instalações do Grupo Popular Recreativo Cabanense, se metamorfoseia em Avenida Visconde do Tojal. É um topónimo que se acoplou à mais banal nomenclatura oficial das Estradas de Portugal: a Avenida 25 de Abril recobre boa parte da N379 (não confundir com a N379-1 que, junto à costa, liga a cimenteira da Secil a Casais da Serra).
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Perguntar-me-ão qual o interesse de debitar aqui dados de Wikipedia. É simples: quis saber onde iam parar as águas das enxurradas que descem a Rua da Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense e que, devido à falta de escoamento (alguém poupou ali muito em sarjetas), vertem sobre as laterais destruindo muros e inundando o casario, nos meses de Janeiro e Fevereiro. Foi assim que fiquei a saber que esta descaracterizada artéria, em que os moradores consideram ser perfeitamente razoável estacionar sempre os carros em cima do passeio apesar de ela ser a mais larga e mais vazia das vias urbanas de Azeitão, termina na N379 ou, como o GoogleMaps me ensinou, na Avenida 25 de Abril. O assunto não tem de facto interesse nenhum, até porque, com os impactos do aquecimento global, as enxurradas de inverno parecem ser coisa do passado.
 
Jornal de Azeitão, Março 2022
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A Magia de coina

3/4/2022

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Há, sobre o conjunto das cidades, vilas e aldeias portuguesas, um tesouro de curiosas elucubrações saídas da pena de corógrafos locais que abnegadamente especulam, no espírito filológico de Giambattista Vicco, sobre o porquê das várias toponímias locais e fabricam explicações fantasiadas sobre as suas origens. Tenho por hábito ler estes tratados amadores, com admitida inveja da liberdade criativa e do enciclopedismo caoticista que anima quem os escreve. À sua maneira, são actos de prestidigitação intelectual que, como num espectáculo de magia, despertam no leitor um estranho enlevo, o de querer ser convencido do que suspeita ser impossível: acreditar que a assistente do mágico está a ser serrada a meio, sabendo que não o está a ser, não é muito distinto de acreditar que Ulisses fundou a cidade de Lisboa que não fundou.

Os exemplos desta inventividade etimológica não só se multiplicam, de norte a sul do país, e do interior à costa, como se correspondem e dialogam entre si. As correspondências fonéticas entrelaçam-se com evocações pseudo-históricas e imaginações arqueológicas, em fantásticos cenários onde celtas, iberos, fenícios, romanos e árabes são liberalmente convocados para dar conta do rol de topónimos cujo sentido primordial não conseguimos captar. Imaginamo-lo enterrado sob o pó da passagem dos tempos, enclausurado por trás de muros linguísticos, esvanecido pela luz dos tempos presentes. E, sabendo que os meios de prova são praticamente nulos, gostamos ainda assim de crer nos devaneios dos corógrafos.

A região da Arrábida tem, neste cômputo, a sua quota-parte de especulações etimológicas. Desde logo o nome da serra, árabe sem dúvida, porque não é preciso duvidar. Setúbal, celta romanizado claro. Sesimbra, humildemente originária do zimbro, fosse ele árabe ou latino. Azóia, Alfarim e Aiana, árabes também. Mas, e o Meco? Vá-se lá saber. Azeitão, árabe certamente. Palmela, do latim “pequena palma”. E Coina?

Coina é um topónimo anatematizado por várias gerações de gracejos juvenis. A Coina actual, a norte da Quinta do Conde, é banhada por uma ribeira do mesmo nome, hoje praticamente invisível, que desagua num braço do Tejo, junto ao Barreiro. Foi conhecida como Coina-a-Nova, para a distinguir – claro – de Coina-a-Velha. Desenvolveu-se como centro industrial que aproveitava a navegabilidade da ribeira para expedir a produção da Real Fábrica de Vidros Cristalinos, que D. João V aí mandou instalar. Por sua vez, Coina-a-Velha era o nome de uma povoação sobranceira ao Porto de Cambas, ponto a partir do qual a ribeira, cuja nascente é a Serra do Risco, se tornava navegável. Em finais do séc. XVII, foi rebaptizada com o nome de Aldeia de Nossa Senhora da Piedade, hoje simplesmente Aldeia da Piedade, por iniciativa do então proprietário da Quinta das Donas, Diogo da Silva de Carvalho.
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No vizinho Casal do Bispo, fronteiras à ermida seiscentista de São Pedro, localizam-se as ruínas de um antigo castelo, diz-se de origem árabe, destruído em data indeterminada após a morte de Dom Sancho I, que teria feito, com os de Sesimbra e Palmela, parte da linha defensiva muçulmana da península de Setúbal. Aí, também, foram encontrados vestígios de um povoado pré-histórico. Chega-se lá através da “estrada dos romanos”, uma estreita via que parte do cruzamento da estrada Azeitão-Sesimbra com a que leva, por Casais da Serra, ao Portinho. Esse seria o Castelo de Coina, cujo nome tem sido objecto de esparsas indagações, que repetem sempre a mesma explicação: Coina nasceu como corruptela – culpa dos árabes? – do topónimo latino Equabona (ou seria Aquabona?). Equabona vem referida no Itinerário de Antonino, do séc. III, como estação da estrada que ligava Olisipo a Ebora, por via de Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal). Não há qualquer referência precisa à sua localização, nem qualquer indicação de como ou quando Equabona se transmutou em Coina. Deste “castelo dos mouros”, subsistem ainda sinais de muralhas e torres, e de uma cisterna. O corógrafo oitocentista Joaquim Rasteiro reporta sobre o castelo uma versão local de uma lenda medieval de tons moralistas: o castelo teria três quartos subterrâneos, um já descoberto (a cisterna) onde eram depositadas as armas, e outros dois – um com ouro e outro com peste - que ninguém se atreve a explorar com receio de, ao procurar o ouro, encontrar a peste.
O leitor não pode deixar de se maravilhar com a audácia dos corógrafos que, quais prestidigitadores, serram a meio as palavras modernas para expor o ouro dos seus sentidos originais, sem receio de lá encontrar a peste do absurdo.

Jornal de Azeitão, Fevereiro 2022
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A escura, enigmática, Arrábida

4/2/2022

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O Dunkles rätselhaftes Österreich (“A Escura, enigmática, Áustria”), de 1994, é a segunda parte de série pseudo-documental Das Fest des Huhnes ("O banquete do frango”) de Walter Wippersberger. Trata-se de uma sátira mordaz ao tradicional género do documentário cultural, em que o antropólogo (europeu ou norte-americano) visita e dá a conhecer ao público (europeu ou norte-americano) os costumes exóticos de populações tradicionais africanas ou ameríndias. Um antropólogo africano fictício, Kayonga Kagame, apresenta o programa Fremde Länder, Fremde Sitten (“Terras estrangeiras, costumes estranhos”) na fictícia estação de televisão AllAfricanTele. O antropólogo dá a conhecer ao seu público (supostamente africano) os exóticos costumes dos povos selvagens do Tirol austríaco, entrevistando os habitantes locais e explicando os seus estranhos hábitos ancestrais. Na parte final do filme, procura entender o enigmático ritual tirolês de subir em perigosa peregrinação ao topo das altas montanhas dos Alpes para depois, colocando pedaços de madeira nos pés, as voltar a descer aproveitando as encostas nevadas, e finalmente engorgitar generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio. É uma divertida visão das práticas do alpinismo e do esqui de montanha, olhadas de um imaginário ponto de vista africano que revela o absurdo do esforço e do risco físico de subir montanhas a pulso para depois, com não menos risco, as descer esquiando em grande velocidade.
 
Hoje em dia, não só há inúmeros sites na internet anunciando percursos pedestres nos trilhos da Serrra da Arrábida mas proliferam as micro-empresas oferecendo caminhadas guiadas através dos variados pontos cénicos do parque natural, de Azeitão ao Creiro pela Serra do Risco, do Castelo de Sesimbra às pegadas de dinossauro do Cabo Espichel, de Palmela à contracosta. Graças às benesses do aquecimento climático, têm-se multiplicado os fins de semana ensolarados, mesmo em pleno inverno, o que constitui irrecusável magnete para que uma cada vez mais apreciável franja da população citadina, lusa ou estrangeira, venha calcorrear os ancestrais trilhos arrabidinos. Uma destas propostas caminhadas é a que, saindo do Rossio de Vila Nogueira, ou da vizinha Fonte dos Pasmados, ruma a sul ziguezagueando pela inicialmente suave inclinação das faldas da Serra do Risco, para finalmente enfrentar os contrafortes do Alto do Formosinho, ou Monte do Alvide, e visitar o chamado “Castelo dos Mouros” (antes também conhecido como o “Jogo dos Mouros”), o local de um antigo povoado fortificado da Idade do Bronze alcandorado na crista norte da serra, no esporão calcário bem visível para quem, sem precisar arriscar-se na prática montanhista da Serra do Risco, mira a paisagem a partir das esplanadas dos cafés da Rua José Augusto Coelho.
 
Ora, se bem que os anúncios dos percursos pedestres refiram habitualmente que o trilho do “Castelo dos Mouros” segue o traçado ancestral dos acessos proto-históricos ao topo da serra, geralmente pouco se estendem sobre a história que medeia entre a Idade do Bronze e a época actual. No fundo, a história da carochinha que os sites e anúncios contam tem uma leveza narrativa muito símil à dos condutores de tuk-tuks que oferecem visitas guiadas ao casco histórico da cidade de Lisboa. São constituídos por pedaços de frases rapinadas de outros sites ou de documentos em formato PDF facilmente encontráveis numa busca por palavras-chave num qualquer browser. Nem se lhes pede mais, nem os clientes caminheiros querem saber mais. Pouco interessa, para a prática do alpinismo arrabidino, saber que a passagem do Alto do Formosinho é um os marcos mais pregnantes do antigo Círio da Nossa Senhora da Arrábida, e que a sua memória se tem diluído na consciência histórica das autoridades locais azeitonenses, a tal ponto que a romaria, que antes era realizada no Dia do Espírito Santo, em finais de Maio, acabou por ser deslocada para o mês de Julho, para coincidir com as recentemente fabricadas “Festas da Arrábida e Azeitão”. Também pouco ou nada interessa, aos caminheiros urbanos e aos seus guias turísticos, saber que na sexta-feira de Páscoa os mais ousados preferem deixar o carro em casa e sobem os trilhos da serra até ao Alto do Formosinho, para depois descer a encosta sul até à praia do Creiro onde engorgitam generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio, não a acompanhar um banquete de frango como os tiroleses, mas preferivelmente uma feijoada de choco.
 
O final do filme de Wippersberger foca-se na invasão estival do Tirol por exércitos motorizados de turistas alemães e na relação subserviente que os tiroleses, por um lado tão ciosos da sua cultura independente, mantêm com os invasores endinheirados, abrindo-lhes as portas das suas casas e banqueteando-os com pratos da culinária local. Esta cínica referência aos efeitos perversos do turismo austríaco encontra, como bem sabemos, ecos óbvios na forma como o poder local e os empreendedores da vila abraçam os cifrões que pingam do irreversível e acrítico processo de turistificação da “Arrábida e Azeitão”.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2022
 
 
 
 
 
 
 
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Em defesa do direito à romaria

8/1/2022

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Durante o séc. XIX, o estudo das sociedades e culturas era determinado por uma intenção manifestamente etnocêntrica. Supunha-se uma linha de evolução justificativa da superioridade civilizacional e intelectual do Ocidente, e equacionava-se a variedade cultural com uma incomprovada graduação das capacidades mentais. A “primitividade” dos costumes de certas sociedades era entendida como manifestação de pobreza de espírito, como estupidez colectiva. Ao longo do séc. XX, a crítica desta visão auto-centrada conduziu à valorização da riqueza e complexidade de culturas antes vistas como frustres e incivilizadas. O pressuposto anterior foi substituído por um novo, o da inteligência colectiva, como fonte da qual emanava harmonia social e criatividade cultural. Consequentemente, pressupor a existência de uma “estupidez colectiva” tornou-se tabu, particularmente entre antropólogos.
E, no entanto... quando olhamos em nossa volta, sentimos por vezes que o velho ditado castelhano sobre as bruxas se aplica a este tópico: “Yo no creo en estupidez colectiva, pero que la hay, la hay”. Isto poderia vir a propósito da aparente fatalidade do destino suicidário do ser humano actual, irremediavelmente decidido a destruir o equilíbrio ambiental que lhe assegura a sobrevivência. Mas prefiro não erguer tão alto a minha arrogância reprobatória, e ficar-me por um bem mais modesto exemplo: o da relação difícil que os portugueses parecem ter com o debate intelectual no que respeita ao tema, a uma vez jurídico, patrimonial e económico, dos “comuns” (a própria estranheza lexical do termo, tradução literal do inglês commons, sugere já ausência de reflexão e debate público sobre o assunto). Os “comuns” constituem-se como o terceiro e muito desdenhado pilar da teoria do Direito, habitando um espaço ambíguo entre o público e o privado. Em Portugal, o Direito dos “comuns” reporta-se explicitamente à gestão comunitária de terrenos incultivados, ou “baldios”. Herança de formas de auto-organização local, o comunitarismo é, no entanto, muito mais que simples gestão colectiva de terrenos de pasto por comunidades locais. É uma antiga instituição cultural que, desde a alta Idade Média, insinua uma importante brecha na concepção dualista que reduz as relações jurídicas e sociais à antinomia entre público e privado, no Direito romano.
Se olharmos em volta com um pouco de atenção, percebemos que os “comuns” não se limitam aos “baldios”. Por exemplo: a caça e a pesca são, em grande medida, usos individuais de bens comuns; assim também a vivência colectiva em espaços urbanizados, a gastronomia, e as múltiplas formas de conhecimento, tanto analógico como digital. O ar que respiramos, o mar onde nos banhamos e a terra que cheiramos são bens comuns, não públicos ou privados. Mais ainda, a própria ausência de reflexão sobre este assunto é manifestação de um outro direito comum: a estupidez colectiva (também lhe poderíamos chamar de “burrice comunitária”).
Reparei que a Quinta de El Carmen, na falda ocidental da Serra da Arrábida, se encontra à venda, pelo valor milionário de 12 milhões de euros, mas nada vem dito sobre o direito de romaria à sua ermida, nem ninguém parece querer preocupar-se com o assunto. A ermida foi privatizada pela 2ª Duquesa de Aveiro, a espanhola D. Madalena Girón, em 1560, que a ampliou e lhe atribuiu o nome presente, em honra de Nossa Senhora do Carmo (ou Del Carmen). Construída num ermo ou “baldio” que as comunidades locais usavam para a pastorícia e a obtenção de lenha e, em particular a aristocracia residente, como couto de caça, a ermida era anteriormente dedicada a Nossa Senhora da Pinha. Como a ermida do Cabo Espichel ou a do convento da Arrábida, é um antigo local de romaria local, como atesta a lenda do marido ciumento que Nossa Senhora impede de matar a mulher, atirando-lhe uma pinha à cabeça. Foi construída pelos mordomos da zona de Azeitão e paga por esmolas das comunidades. Atestam-se, ao longo dos séculos, bailes e representações dramáticas no adro da ermida. Em 1714, há notícia de que o Cabido de Lisboa mandou afixar uma nota pastoral na porta da igreja, suspendendo as festividades, sob pena de excomunhão, já que, aparentemente, não eram “tão honestas como era razão que fossem”. Os habitantes dos Casais da Serra e das Pedreiras fazem anualmente romarias à Capela de El Carmen, uns na quinta-feira de Ascensão e os outros a 18 de Agosto. Sendo parca a documentação histórica, comprova ainda assim a antiguidade das missas cantadas, dos sermões, dos arraiais com baile, e das refeições comensais.
Entalado entre o Direito público, que gere as relações entre os cidadãos e o Parque Natural da Arrábida, e o Direito privado que define os direitos e deveres de propriedade da Quinta de El Carmen, o Direito dos “comuns”, nomeadamente aquele que rege romarias, procissões, e até a apanha de pinhas, ervas aromáticas e caracóis nas faldas da serra, definha porque não encontra quem perceba a sua importância como garantia de sobrevivência de valores culturais. A estupidez colectiva é uma importante causa da "tragédia dos comuns".
 
 Jornal de Azeitão, Novembro 2021
 
 
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BERARDIZAÇÃO

24/7/2021

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Apesar de relativamente recente, kitsch é uma palavra de etimologia dúbia. Popularizada no mercado artístico de Munique, em finais do séc. XIX, para designar obras de mau gosto, superficiais, imitadoras, terá ganho o seu sentido a partir do verbo dialectal bávaro kitschen (“apanhar lama da rua”). Um outro verbo com a mesma raíz, Verkitschen, significa “vender algo acima do preço”. Nasceu portanto como um termo pejorativo, como marca de distinção entre valores estéticos “elevados”, porque criativos e originais, e “baixos”, porque imitadores e desinspirados, e usado para designar objectos pseudo-artísticos produzidos de forma mecanizada para consumo das massas.
A palavra pastiche é a adaptação francesa do termo italiano pasticcio, e na sua origem significa algo como “pastelada”, uma mescla heteróclita. Tem o mesmo atributo de arte superficial, imitadora. Como o kitsch, o pastiche começou por designar um tipo de arte barata, superficial, de mau gosto, embora tenham sido recuperados durante o séc. XX como intenções de questionamento crítico de acepções artísticas elitistas.
Pechisbeque é o aportuguesamento de um termo inglês que também designa imitações de baixo valor, e que advém do nome de um relojoeiro do séc. XVIII, o londrino Christopher Pinchbeck, o criado de uma liga de cobre e zinco que simulava a cor do ouro. Neste caso, é o material e não o estilo e a forma que revelam o carácter imitador e enganador do objecto em relação ao qual se usa o atributo pejorativo.
É curioso que se saiba mais da etimologia de termos alemães, ingleses ou franceses (e italianos) que dos seus equivalentes portugueses. A origem do significado actual das palavras “parolo”, “foleiro”, “possidónio” e “piroso” é bastante obscura. “Parolo” virá de parole e terá começado por designar alguém que procura imitar de forma desajeitada determinadas formas de falar; “foleiro” (ou “fuleiro”), que pode tanto vir de “fole” como de “fula”, refere-se também a alguém pretensioso e com mau gosto; “possidónio” advém de um nome próprio (Possidónio, aportuguesamento do grego Poseidon) e virá da expressão brasileira que designava um político oriundo da província e procurava imitar as maneiras da capital; “piroso” é a adjectivização de “pires” e poderá ter começado por se referir ao uso pretensioso, pela pequena burguesia de finais do séc. XIX, de pequenos pratinhos para suportar chávenas, imitando as maneiras das classes aristocráticas.
De certa forma, é um pouco parolo, piroso, possidónio e foleiro, usar estrangeirismos como kitsch, pastiche ou pechisbeque, para designar de forma pejorativa certos objectos, acções ou pessoas a quem pretendemos atribuir qualificativos como “superficial”, “imitador” e “pretensioso”.
Nos últimos anos, têm proliferado nos espaços públicos azeitonenses intervenções profundamente foleiras, parolas, pirosas e possidónias. Morangos e cachos de uvas gigantes em fibra de vidro, ovelhas em cimento, arcos pseudo-setecentistas em betão,  oliveiras ajeitadas à maneira de bucho, ciclovias em curvas de guitarra e fontanários pintados a acrílico têm sido depositados em rotundas, esquinas e parques como dejectos de pombo. Ou melhor, como adereços de um cenário de opereta imitadora, alindamentos superficiais – boçais, mesmo - que resultam numa mescla desinspirada de estilos e parasitam de forma primária, pretendendo ser homenagem, elementos patrimoniais da vila e da região.
Diga-se com todas as palavras: os espaços públicos de Azeitão têm sido capturados por uma coligação de interesses de mau gosto e pior ética – os interesses de uma administração local ávida de “obra feita” e dependente das chamadas “contrapartidas” (resultantes da cedência de bens públicos a entidades privadas), e os interesses de autopromoção de certos empresários que, plagiando o super-kitsch, super-pastiche, super-pechisbeque Donald Trump, assentam as suas pseudo-beneméritas doações em mesquinhos programas de fuga aos impostos.
Diga-se numa só palavra, que compila todas as outras: a freguesia de São Lourenço foi berardizada.
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 Jornal de Azeitão, Julho 2021
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    Manuel joão ramos

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