MANUEL JOÃO RAMOS
  • Home
    • English >
      • Blog
      • Publications
      • Graphics
      • Videos
      • About Me
      • Contact
    • Português >
      • Publicações
      • Arte Gráfica
      • Vídeos
      • Sobre Mim
      • Contacto
      • Politica de privacidade

​Dos Cães e de outros objectos

21/3/2023

0 Comments

 
Picture


Não é só o título que chama a atenção do leitor. A primeira frase é também crucial. É um apelo à imaginação, uma indicação do tom, do género e do estilo da escrita. E é também a presença material da intencionalidade criativa do autor. Ele há muitas maneiras de começar a contar uma história. Há o “Era uma vez, há muitos, muitos anos...” dos contos tradicionais, e o “No tempo em que os animais falavam...” das fábulas infantis. A partir daqui a literatura tornou possíveis infinitas variantes. O “Chamem-me Ishmael”, do Moby Dick de Melville, e o camusiano “A minha mãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não tenho a certeza”, anunciam relatos pseudo-autográficos. O pressagiante “Era um dia frio de Abril, e os relógios batiam as treze” do 1984 de Orwell, contrasta com o afirmativo “É uma verdade universal que um homem de fortuna necessita uma esposa”, do Orgulho e Preconceito de Jane Austen. O “Quando Gregor Samsa despertou na sua cama uma manhã após uma noite de pesadelo, descobriu que se tinha transformado num insecto gigante” oferece logo a chave do que vem a seguir. O “Numa galáxia muito, muito longe...” e o “Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia de irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor...” estabelecem de imediato o contexto temporal e espacial da história que se vai desenrolar.
Imagino que, para muitos urbanos lisboetas, uma viagem a Azeitão possa ter o refrescante sabor do exótico ao lado de casa. É, em pequena escala, equivalente à descoberta dos aromas e cores de Marrocos. Perto, mas ainda assim muito longe. Azeitão, tão plácida e incaracterística, parece, em certas coisas, um minúsculo planeta vogando numa galáxia, muito, muito longínqua. E, nessas certas coisas, evoca também o espírito irredutível dos companheiros de Asterix, o famoso herói da banda desenhada de linha clara franco-belga.
Uma viagem a Marrocos – ou a qualquer outro lugar excêntrico – é sempre um jogo de selecção do olhar e da atenção, um balanço frágil entre o apetecível e o repulsivo, que forma a nossa experiência do lugar. Dependendo do nosso gosto, da nossa tolerância à diferença, da nossa adaptabilidade, é uma experiência que, em casos extremos, pode levar-nos ao êxtase (e ao desejo de eterno retorno) ou ao abismo da repugnância. Mais normalmente, leva-nos ao meio do caminho: um gosto amargo de pessoas e coisas que preferimos esquecer, a tingir o gosto doce das pessoas e coisas que queremos lembrar.
Assim também Azeitão: o urbano lisboeta regressa todos os primeiros domingos do mês ao terreiro da feira porque, mesmo que tenha sido enganado na qualidade da toalha ou na frescura do melão, deseja reinventar a experiência, e voltar a saborear a confusão da mole humana, os gritos do “Três slipes ao preço de um”, e as bifanas mal assadas. Regressa volta e meia à pastelaria que serve “as mais típicas” tortas, e à fonte dos pasmados de água eternamente insalubre. Faz alegre e regularmente o caminho da cruz que, pela serra, leva aos parques de estacionamento sem lugares vagos no Portinho e no Creiro. Se for audaz, aventura-se num trilho pedestre, entre a caruma, as ortigas, as lagartas do pinheiro e as carraças das ovelhas. E depois, ala, regressa à cidade, que não há muito mais que ver na terra que, pensa ele, tem mais fama que proveito.
 
Há, de facto, em Azeitão algo de aldeia que resiste ainda e sempre ao invasor. E, até certo ponto, tem também algo de galáxia muito, muito longínqua. Explico-me:
Há leis da capital que não têm valor ou obediência na vila, e muito do que lá é apreciado é cá liminarmente rejeitado. Presumo que não seja por isso que os turistas lisboetas fazem por reviver experiências de exotismo, mas ainda assim convido o leitor (e, como se diz agora, num cúmulo de redundância politicamente correcta, a leitora) a passear a pé pelo meandro de ruas onde se alinham moradias de geometria perturbante, versões lusas do sonho suburbano americano. Não é conveniente fazê-lo em dia de feira, porque aí só os loucos o conseguem fazer, tal é a dimensão do engarrafamento automóvel. Nos outros dias, passear a pé obriga a andar pela rua porque os passeios estão em permanência ocupados por uma multitude de carros cujos donos são demasiado preguiçosos para os estacionar nas garagens das suas moradias. É verdade que, ficando escondidos por trás dos portões, não servem como mostra do estatuto económico do morador. Ou, porventura, as garagens estão demasiado atafulhadas de motas de grande cilindrada, para uso nas reuniões do Lavadouro e na estrada do Portinho.
Por outro lado, andar pelo meio da rua, pelo asfalto dessas ruas que, consciente ou inconscientemente, evocam o cenário do Eduardo-Mãos-de-Tesoura, é a melhor garantia de não ficar ensurdecido pelo arraial de cães de guarda das mesmas moradias, que se lançam raivosamente contra as grades e frestas dos portões, ameaçando abocanhar pernas, braços e traqueias dos viandantes. Cães que não saem à rua, e que não entram na porta. São uma espécie de imigrantes refugiados que comem e calam – quer dizer, não calam porque o seu trabalho escravo é ladrar e uivar até à loucura ou ensurdecimento da vizinhança.
 
Azeitão é um minúsculo planeta de uma galáxia de maus costumes que resiste incompreensivelmente às leis da capital. Seja as leis do ruído (obrigado, motoqueiros), as normas do Código da Estrada (obrigado, donos de SUV mal-estacionados), e as regras básicas da protecção dos animais (obrigado, donos de cães abandonados em casa própria). Talvez a razão pela qual os urbanos lisboetas gostem de regressar regularmente a Azeitão seja para ver se conseguem entrever, no topo de uma escada de alumínio, o Eduardo-Mãos-de-Tesoura, ele próprio, a desbastar violentamente as oliveiras da vila. Mas ai deles se se metem a andar a pé pela vila.
 
 ​Jornal de Azeitão, Março 2023

Tags:
0 Comments

O FAROESTE

21/3/2023

0 Comments

 
Picture
Os Westerns são um género narrativo bem alicerçado na história do cinema que foi fulcral para a consolidação da indústria do entretenimento centrada em Hollywood. É, como sabido, um género muito variado, geralmente focado na mitificação da expansão colonizadora dos vastos territórios da região ocidental dos Estados Unidos da América, durante o séc. XIX. Um dos tópicos recorrentes dos filmes de Western é o da reinvenção arquitectónica dos espaços urbanos desse período, e da caracterização sociológica das populações que o habitavam. Há múltiplas variantes deste tópico, mas o estereotipo é o da pequena localidade com uma rua principal não pavimentada, enquadrada por um casario construído em madeira onde, para além das habitações, pontua um banco, a cadeia nas traseiras do escritório do xerife, a mercearia, o saloon e, mais distante do centro, a igreja protestante e a estação de caminho de ferro.
Ausentes ainda os veículos automóveis, o trânsito é, nesses filmes, sobretudo pedonal, perturbado apenas pela circulação de cavalos, carroças e diligências. É na rua principal que a acção central deste género de filmes tende a acontecer: o duelo entre pistoleiros, o roubo do cofre do banco, o encontro do vaqueiro com a amada, a zaragata que verte do interior das portas do saloon.
O enorme sucesso que os filmes de Western norte-americanos tiveram ao longo de décadas levaram a que, a certo momento, viessem a ser replicados noutros países. O caso mais conhecido foi o do chamado Western Spaghetti italiano nos anos sessenta e setenta do século passado, frequentemente sob o pano de fundo da meseta desértica dos arredores de Pamplona, em Espanha. O género tornou-se de tal forma influente que até na União Soviética se chegaram a produzir filmes de Western.
Sendo a indústria cinematográfica portuguesa muito incipiente, não admira que não haja exemplos nacionais de filmes do faroeste, dos chamados filmes de cowboys. Mas, caso a algum realizador luso ocorra vir a conceber um filme que, de alguma maneira, retome, reinterprete, ou reinvente o género Western em Portugal, eu aconselhá-lo-ia a olhar com atenção para Azeitão como localização excepcionalmente dotada para acolher as filmagens.
A serra da Arrábida não será tão imponente como o Grande Canyon; os areais de Coina e da Quinta do Anjo não serão tão secos como o deserto do Mojave; os nativos das redondezas não terão a pele tão avermelhada quanto a dos Apaches e dos Navajos; os agentes da GNR não serão tão nervosos com o gatilho quanto Wyat Hearp. Mas a rua principal está lá, assim como lá estão os saloons, o banco, e o mercado que faz as vezes de mercearia. Peões não abundam, é verdade, mas haverá sempre quem aceite alguns euros para fazer de figurante. Os carros podem ser facilmente ser removidos para o terreno da feira mensal, e a igreja pode ser despida das imagens de santos de forma a passar por templo evangélico.
Dir-me-ão que poderá haver alguma falta de cavalos e de cowboys para tornar credível o filme. Mas não podemos esquecer o imenso potencial, até hoje intocado, de Azeitão: a inquestionável abundância de motos e de motoqueiros na vila e arredores. Se eu fosse realizador de cinema, contratava-os para fazerem aquilo que fazem excelentemente, com um jeito natural: saírem à maluca das garagens das moradias montados nos seus cavalos de duas rodas, invadirem com sobranceria e impunidade a rua principal, fazerem piruetas e voltejos nas suas cavalgaduras, ingerirem em bando quantidades apreciáveis de álcool, e fazerem-se donos do povoado, ensurdecendo toda a população.
E, como nos filmes de Western, filmaria o povo temeroso espreitando impotente, por trás das portas de tabique do saloon, o espectáculo circense dos motoqueiros do OK Corral, ansiando por que um forasteiro com sobrolho de Clint Eastwood desça da serra para pôr a vila na ordem.

Final alternativo:
...E, como em certos filmes de
Western, filmaria a presidente da junta espreitando frágil e impotente, entre as cortinas da janela do xerifado, o espectáculo circense dos motoqueiros do OK Corral, ansiando por que um forasteiro com sobrolho de Clint Eastwood desça da serra para pôr a vila na ordem.
 
​Jornal de Azeitão, Fevereiro 2023
Tags:
0 Comments

A traseira

21/3/2023

0 Comments

 
Picture
O fascínio que os pavões nos causam tem raízes históricas profundas na cultura ocidental, mas não apenas. Faz anos, deu-me para ler uma coisa ou outra sobre pavões orientais. Em particular, os estranhos caminhos percorridos, entre a Síria e a Índia, pela figura do pavão na literatura, no ritual e na arte. O chamado culto do pavão, praticado pelos Iasidis do Curdistão, é como que uma evocação local de um complexo circuito que conecta os antigos cristianismos sírio e sul-indiano. A sua ligação com a veneração de São Tomé, o evangelizador do Kerala, é tornada explícita numa série de textos alegóricos que dão conta da morte do apóstolo, trespassado pela seta de um caçador que o confundiu com um pavão que levantava vôo (ou, em certos relatos, o santo assumiu mesmo a forma da ave). A ligação metafórica entre um e outro é fundada na noção de imputrescibilidade dos corpos de ambos: tal como o cadáver de São Tomé ficou preservado ad eterno devido ao facto de ter tocado a carne de Cristo, no célebre episódio da incredulidade na Ressurreição, relatado em João 20:24–29, à carne de pavão são atribuídas qualidades muito particulares na literatura enciclopédica antiga.
 
Plínio-o-Velho refere, na História Natural, que os pavões eram criados em Roma para serem servidos em banquetes, porque a sua carne não apodrecia (X, 23). Santo Agostinho fala também sobre a carne de pavão, notando que esta tem uma particularidade miraculosa: a de resistir longamente à putrefação depois da morte. O autor da Cidade de Deus pôde comprovar, em Cartago, que mais de um ano depois de ter mandado guardar um pedaço de peito de pavão assado, a carne ainda estava em condições de ser consumida (Cidade de Deus, XXI, IV, 1, 3).
 
Fazendo-se eco das informações dos bestiários medievais sobre o pavão, Brunetto Latini nota que, apesar da sua beleza, o pavão tem um pescoço "serpentino", voz de diabo, e pés de "safira" (i.e., azuis e sem brilho). Ao voltar as costas aos homens, orgulhoso da sua plumagem, mostra a fealdade da sua "parte traseira"; ao contrário da carne da perdiz, a carne do pavão é dura e pouco saborosa (Livro do Tesouro, CLXVIX). Gossouin de Metz sublinha também a dualidade dos sentimentos expressos pelo pavão, correlativa da sua ambiguidade morfológica: olhando para a sua cauda aberta em leque, sente-se um rei, orgulhoso da sua beleza, mas quando olha os seus pés, "que são feios", deixa cair a sua cauda para os cobrir, envergonhado (Image du monde, II, VI, CD). A duplicidade que caracteriza o pavão é tema para uma descrição particularmente eloquente de Hildegard de Bingen, que refere que a carne de pavão não é saborosa, mas não apodrece facilmente (ao contrário da carne de perdiz): a vesícula pode ser conservada e aplicada sobre as escrófulas para assim "fazer sair a putrefacção" da pele; também as plumas podem ser usadas para impedir a putrefacção das queimaduras (Física, VI, III).
 
Existem, portanto, razões óbvias para fazer do pavão um avatar de São Tomé: trata-se de sublinhar o carácter imputrescível da carne morta de um apóstolo que foi tentado pelo pecado do orgulho da sua incredulidade perante a palavra de Cristo.
 
A ideia de que a fealdade se esconde por detrás da beleza, e de que a vergonha vence o orgulho, está bem expressa nas traseiras do edifício das Caves José Maria da Fonseca, em Vila Rica. A sua fachada frontal, que incorpora a Fonte dos Pasmados, encontra-se muito bem cuidada e é legítima fonte de orgulho dos seus proprietários e dos azeitonenses em geral. Mas, se virarmos a esquina da Rua Direita (a Rua José Augusto Coelho) e entrarmos na estreita lateral cujo nome parece maior que ela (a Rua Helena da Conceição dos Santos e Silva), circundando o longo edifício caiado, deparamo-nos a certo momento com uma visão que nos faz lembrar a “parte traseira” de um pavão. Em vez de descrever o pedaço de paisagem, remeto o leitor para a fotografia anexa - porque uma imagem vale mil palavras, que são mais que aquelas que este curto texto pode comportar.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2023

Tags:
0 Comments

    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

    Archives

    March 2023
    November 2022
    October 2022
    September 2022
    August 2022
    July 2022
    May 2022
    April 2022
    February 2022
    January 2022
    November 2021
    October 2021
    September 2021
    August 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    April 2020
    March 2020

    Categories

    All
    Ambiente
    Arrabida
    Arte
    Censura
    Comuns
    Conflito
    Etiopia
    Gentrificacao
    Historia
    Jornal De Azeitao
    Mobilidade
    Mobility
    O Publico
    Oralidade
    Palestina
    Pandemia
    Pandemic
    Pesca
    Política
    Pollution
    Poluicao
    Portugal
    Risco Rodoviario
    Ritual
    Turismo
    Ucrania
    Universidade
    Urbanismo

    RSS Feed