MANUEL JOÃO RAMOS
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Em defesa do direito à romaria

8/1/2022

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Durante o séc. XIX, o estudo das sociedades e culturas era determinado por uma intenção manifestamente etnocêntrica. Supunha-se uma linha de evolução justificativa da superioridade civilizacional e intelectual do Ocidente, e equacionava-se a variedade cultural com uma incomprovada graduação das capacidades mentais. A “primitividade” dos costumes de certas sociedades era entendida como manifestação de pobreza de espírito, como estupidez colectiva. Ao longo do séc. XX, a crítica desta visão auto-centrada conduziu à valorização da riqueza e complexidade de culturas antes vistas como frustres e incivilizadas. O pressuposto anterior foi substituído por um novo, o da inteligência colectiva, como fonte da qual emanava harmonia social e criatividade cultural. Consequentemente, pressupor a existência de uma “estupidez colectiva” tornou-se tabu, particularmente entre antropólogos.
E, no entanto... quando olhamos em nossa volta, sentimos por vezes que o velho ditado castelhano sobre as bruxas se aplica a este tópico: “Yo no creo en estupidez colectiva, pero que la hay, la hay”. Isto poderia vir a propósito da aparente fatalidade do destino suicidário do ser humano actual, irremediavelmente decidido a destruir o equilíbrio ambiental que lhe assegura a sobrevivência. Mas prefiro não erguer tão alto a minha arrogância reprobatória, e ficar-me por um bem mais modesto exemplo: o da relação difícil que os portugueses parecem ter com o debate intelectual no que respeita ao tema, a uma vez jurídico, patrimonial e económico, dos “comuns” (a própria estranheza lexical do termo, tradução literal do inglês commons, sugere já ausência de reflexão e debate público sobre o assunto). Os “comuns” constituem-se como o terceiro e muito desdenhado pilar da teoria do Direito, habitando um espaço ambíguo entre o público e o privado. Em Portugal, o Direito dos “comuns” reporta-se explicitamente à gestão comunitária de terrenos incultivados, ou “baldios”. Herança de formas de auto-organização local, o comunitarismo é, no entanto, muito mais que simples gestão colectiva de terrenos de pasto por comunidades locais. É uma antiga instituição cultural que, desde a alta Idade Média, insinua uma importante brecha na concepção dualista que reduz as relações jurídicas e sociais à antinomia entre público e privado, no Direito romano.
Se olharmos em volta com um pouco de atenção, percebemos que os “comuns” não se limitam aos “baldios”. Por exemplo: a caça e a pesca são, em grande medida, usos individuais de bens comuns; assim também a vivência colectiva em espaços urbanizados, a gastronomia, e as múltiplas formas de conhecimento, tanto analógico como digital. O ar que respiramos, o mar onde nos banhamos e a terra que cheiramos são bens comuns, não públicos ou privados. Mais ainda, a própria ausência de reflexão sobre este assunto é manifestação de um outro direito comum: a estupidez colectiva (também lhe poderíamos chamar de “burrice comunitária”).
Reparei que a Quinta de El Carmen, na falda ocidental da Serra da Arrábida, se encontra à venda, pelo valor milionário de 12 milhões de euros, mas nada vem dito sobre o direito de romaria à sua ermida, nem ninguém parece querer preocupar-se com o assunto. A ermida foi privatizada pela 2ª Duquesa de Aveiro, a espanhola D. Madalena Girón, em 1560, que a ampliou e lhe atribuiu o nome presente, em honra de Nossa Senhora do Carmo (ou Del Carmen). Construída num ermo ou “baldio” que as comunidades locais usavam para a pastorícia e a obtenção de lenha e, em particular a aristocracia residente, como couto de caça, a ermida era anteriormente dedicada a Nossa Senhora da Pinha. Como a ermida do Cabo Espichel ou a do convento da Arrábida, é um antigo local de romaria local, como atesta a lenda do marido ciumento que Nossa Senhora impede de matar a mulher, atirando-lhe uma pinha à cabeça. Foi construída pelos mordomos da zona de Azeitão e paga por esmolas das comunidades. Atestam-se, ao longo dos séculos, bailes e representações dramáticas no adro da ermida. Em 1714, há notícia de que o Cabido de Lisboa mandou afixar uma nota pastoral na porta da igreja, suspendendo as festividades, sob pena de excomunhão, já que, aparentemente, não eram “tão honestas como era razão que fossem”. Os habitantes dos Casais da Serra e das Pedreiras fazem anualmente romarias à Capela de El Carmen, uns na quinta-feira de Ascensão e os outros a 18 de Agosto. Sendo parca a documentação histórica, comprova ainda assim a antiguidade das missas cantadas, dos sermões, dos arraiais com baile, e das refeições comensais.
Entalado entre o Direito público, que gere as relações entre os cidadãos e o Parque Natural da Arrábida, e o Direito privado que define os direitos e deveres de propriedade da Quinta de El Carmen, o Direito dos “comuns”, nomeadamente aquele que rege romarias, procissões, e até a apanha de pinhas, ervas aromáticas e caracóis nas faldas da serra, definha porque não encontra quem perceba a sua importância como garantia de sobrevivência de valores culturais. A estupidez colectiva é uma importante causa da "tragédia dos comuns".
 
 Jornal de Azeitão, Novembro 2021
 
 
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A NAQBA DO PORTINHO

10/5/2021

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O mundo lá fora oferece-nos tantos espectáculos contrastantes que temos por vezes dificuldade em perceber as linhas que os ligam. Para lá do Canal da Mancha, um primeiro ministro justifica post est facto a decisão britânica de “libertar” o país da União Europeia com o “inequívoco sucesso” do processo de vacinação nacional contra a Covid19. Mais longe, nas margens orientais do Mediterrâneo, outro primeiro ministro vangloria a “esperteza” do Estado israelita, que garantiu, oferecendo a sua população como cobaia de testagem em larga escala da eficácia das vacinas anti-Covid19, um programa de vacinação rápida e quase universal dos seus cidadãos. Ainda mais longe, no subcontinente banhado pelas águas do Índico, o país que se posicionou como o principal produtor mundial dos componentes primários da polémica vacina da AstraZeneca afunda-se numa tragédia colectiva nutrida pela propagação fulgurante de variantes ultra-contagiosas do Coronavírus, pela imensa fragilidade do seu sistema hospitalar e por uma baixíssima taxa de vacinação da segunda maior população do mundo.
É fascinante verificar o actual grau de imbricamento profundo das cadeias globais de produção de vacinas, a interrelação dos fluxos de circulação internacional de humanos e de vírus, e a sucessão de políticas-barreira tendencialmente isolacionistas adoptadas por uma multitude de estados nacionais para prevenir a expansão da doença e o colapso dos sistemas de saúde. Mas é igualmente fascinante – e deprimente - observar as assimetrias profundas entre países ricos e países pobres, e a concorrente normalização de posturas de egoísmo nacionalista. Israel, o Reino Unido e os Estados Unidos contam-se entre os países onde a vacinação de prevenção da Covid19 se encontra mais avançada. Isto quer dizer, no fundo, que cada vida salva nesses países se faz à custa de vidas perdidas noutros países, devido às desigualdades profundas no sistema de distribuição mundial de vacinas. Suprema ironia deste estado de coisas é que o país que garante o sucesso da vacinação dos países ricos (e também pobres – porque o programa Covax dele depende igualmente) o faz à custa da sua própria população. Histórias tristes que os laços coloniais teceram...
É de egoísmo e ironia que quero falar. Como é sabido, o Estado Israelita nasceu e consolidou-se graças à expulsão de centenas de milhar de palestinianos para os países árabes vizinhos (conhecida como a Naqba) e à concentração em duas faixas territoriais estreitas (Gaza e Cisjordânia) da restante população palestiniana. Actualmente, a população que de acordo com a nova lei da nacionalidade israelita não tem direito de cidadania por não ser “judia” – os palestinianos e os árabes – não beneficiam senão marginalmente, por esmola, do programa de vacinação “universal” israelita.
Este egoísmo nacionalista, na medida que é uma resposta política imediatista e oportunista, contém riscos graves a longo termo porque sedimentam percepções externas que se tornam indeléveis.
Passemos agora do macro para o micro: o desassoreamento da praia do Portinho da Arrábida que levou ao desaparecimento da areia e à dissolução da duna elevada do Creiro. O Portinho ganhou fama de lugar paradisíaco quando alguma burguesia lisboeta o começou a tomar de assalto nos anos 50-60 do século passado. Sucedeu-se a construção de discretas moradias “de arquitecto”, de legalidade mais que duvidosa. É verdade que não havia ali, como na Palestina, uma população autóctone a ser expulsa. Mas o ambiente de ghetto privilegiado era manifesto. Os “palestinianos” vieram depois, nos anos posteriores ao 25 de Abril de 1974. “Palestinianos” era o termo pejorativo que os “asquenazes” lisboetas usavam para se referir à população de veraneantes que construíram as muitas dezenas de casebres clandestinos sobre a praia e no interior da mata do Creiro, e que assim destruíram o ambiente exclusivista do local. A sua reacção enojada perante o cheiro da sardinha assada nos grelhadores e a insalubridade que advinha da ausência de saneamento do casario clandestino, aliada à sua capacidade de influenciar os corredores do poder legislativo e executivo, foi premiada pelo famoso “Engenheiro Pimenta” com a erradicação de todo o casario ilegal na orla da praia. As casas “de arquitecto”, bem disfarçadas no matagal da arriba sobre a (desaparecida) Praia dos Pilotos, ficaram convenientemente excluídas do programa de limpeza das construções ilegais da Praia do Portinho.
Mas a construção da barra da Figueirinha e do molhe do Outão, no início dos anos 70, assim como a multiplicação de barcos de recreio no Portinho (era tão chique, nessa altura, mostrar aos vizinhos o último modelo de fora-de-borda...) que com as suas âncoras destruíram o manto vegetal submerso que retinha as areias, muito contribuíram para o progressivo desassoreamento da praia. É verdade que a subida do nível médio das águas do mar, a redução dos depósitos sedimentares do estuário do Sado e as dragagens constantes para manter aberto o canal para navios de grande porte, tiveram também a sua quota-parte de responsabilidade. Mas tenho para mim que o egoísmo imediatista dos burgueses privilegiados de Lisboa, que os levou a imaginar uma barreira de classe para se distinguir dos “palestinianos” – os clandestinos que reclamavam ineptamente o seu direito ao paraíso de veraneio –, foi compensação de curta duração. Os clandestinos foram-se, as autoridades do Parque continuam a proibir no Verão a circulação automóvel entre a Figueirinha e o Portinho, sempre com o pretexto de uma esperada calamidade de queda de rochas, mas o Portinho deixou de ter areia. Os “asquenazes” estiram agora as suas toalhas sobre calhaus lamacentos.

Jornal de Azeitão, Maio 2021
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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A subida da serra

29/4/2021

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É possível que eu tivesse estado distraído até então, mas a primeira memória que tenho de manifestações colectivas em que os carros (e as suas buzinas) se tornaram protagonistas em Portugal foi em Setembro de 1999, em Lisboa, durante o movimento popular de apoio à independência de Timor-Leste. Não desvalorizando os cordões humanos e as concentrações em frente à sede da ONU e da embaixada dos EUA, as imagens que mais me impressionaram então foram as dos buzinões na Praça do Marquês do Pombal e na Av. Fontes Pereira de Melo. Pela primeira vez, o automóvel era usado pela população para se exprimir colectivamente. Nada de extraordinário, claro. No final do século, o carro tinha-se finalmente tornado ubíquo e a mobilidade automóvel tornou-se predominante. Em dez anos, de 1985 a 1995, o parque de viaturas ligeiras tinha passado de 400 mil para mais de 4 milhões, o que correspondeu a uma igual decuplicação do número de condutores encartados no país.
Outra imagem forte desta transformação, nas minhas memórias desse período, é a da presença nas televisões da figura anafada, inchada, obesa do campeão maratonista Carlos Lopes, antes um magrinho escanzelado.
O final do séc. XX correspondeu em Portugal, não apenas a uma transformação nos modos de mobilidade e transporte, mas a uma alteração profunda dos corpos: mais velhos, porque o país envelheceu à custa de uma diminuição drástica da natalidade, e mais gordos. Portugal tornou-se país de nómadas sedentários, circulando como nunca até então, mas permanentemente sentados no banco de automóveis.
Com esta preponderância simbólica, esfumou-se a noção de mortificação do corpo, que tinha sido tão emblemática na construção da figura do maratonista franzino vencedor dos jogos olímpicos ou no esforço do ciclista da Volta a Portugal, subindo e descendo as íngremes fragas nortenhas. A mortificação do corpo pela redenção da alma é o sedimento da peregrinação que tem, como sabemos, na marcha até Fátima o seu epítome em termos de expressão colectiva nacional. Na minha memória, pelo menos, os buzinões por Timor-Leste tiveram o condão de ser um dos primeiros – mas certamente não os últimos – actos de absurdização dos rituais milenares de glorificação comunal da mortificação. A peregrinação colectiva é antitética da busca do prazer imediato individual, sendo o automóvel uma das expressões mais conseguidas do individualismo (isto é, até à chegada do telemóvel). Uma manifestação – ou uma peregrinação – feita a partir do confortável assento do automóvel pareceu-me na altura – e parece-me ainda hoje – um total contrassenso.
Embora infinitamente mais modestas que Fátima ou Santiago de Compostela como expressões comunais desta intenção de redenção (e também de expiação) por via da marcha flageladora, os círios da Arrábida merecem ser aqui relevadas, numa altura em que, evocados os motivos de saúde pública em período pandémico, estão proibidas. É verdade que há muito que a peregrinação à ermida de Nª Senhora do Cabo Espichel deixou de ser praticada a pé a partir das freguesias saloias, mas, até ter sido proibidas no ano passado, a romaria de Sexta-feira Santa até à praia do Portinho e o Círio de Nª Senhora da Arrábida, em Julho continuavam a ser praticadas a pé (embora reconheça que parte substancial dos peregrinos, por mil razões individuais, já prefira fazê-la de carro). O galgar a serra até ao topo e descer depois o penhasco íngreme da face sul, integrado num ritual de devoção mariana, é árduo e doloroso. Mas nos dias de hoje, em que o diabo é o sedentarismo e a obesidade, merecem ser evocadas como importantes exemplos de redenção não apenas das almas, mas também da saúde pessoal e pública.

Jornal de Azeitão, Abril 2021

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DO queijo da Azóia

7/4/2021

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A história do queijo de Azeitão já foi pisada e repisada vezes sem conta: por volta de 1830, o “ratinho” Gaspar Henriques de Paiva, traz para a região de Azeitão ovelhas de raça bordalesa e, com ajuda de um queijeiro de Castelo Branco, inicia a produção de queijos, inicialmente de peso e tamanho semelhantes ao queijo da Serra, mas depois reduzido para 330gr e finalmente para os actuais 250gr. Menos se fala do queijo da Azóia e quase nada se fala das diferenças entre um e outro. Pessoalmente, prefiro o da Azóia, de sabor mais intenso e áspero, memória palatal do meio mais árido e intenso do Cabo Espichel e do azevém, da serradela, da tremocilha, da luzema e da baga de aroeira de que compõe o pasto das ovelhas da Azóia.

Antes de saber do processo de fabrico do queijo, quis ir ouvir os pastores e saber das agruras da criação de ovelhas. Segue o testemunho de um criador do Cabo:

A ovelha é um animal muito melindroso. Às vezes vou lá abaixo acompanhá-las quando elas vão para o pasto, e começo logo a vê-las: Oh, ontem andava tudo, não andava nada coxo; hoje já comeram – ê já sabia – já comeram qualquer merda que eu tenho de me pôr a pau, que a ovelha é muito melindrosa. Quando elas estão a andar coxas é porque já comeram, porque aquilo come muito, muito, muito, e ópois, quando elas vêm coxas, aquilo ópois passa. Aquilo é uma coxeira que dá e ópois passa. Mas muitas morrem. 

Ê já tive ovelhas, ê sei lá, desde que me conheço. Tenho tido sempre ovelhas. Já tive aí umas coxas mas se é pelo pico das silvas, deixo-as lá ao pasto. Quando andam ali com uma perna no ar, toda inchada, é pelo pico aí das silvas. Quando têm um espetado no casco, quer dizer, no meio dos dois cascos, saco aquilo, desinfecto, meto-lhe um palequezito pequeno, amarradinho e, olha: em três ou quatro dias, se vou curá-la novamente, já está impecável.

Mas agora, se ê as vejo coxas de comerem, fico logo à rasca. Amanhã já não as meto no pasto. Oiça lá, p´ráqui, quando se cepa o trigo, fica lá o restolho e a espiga, um gajo não pode chegar a casa e dar água aos animais. Porque depois aquilo incha e arrebenta com elas. Sabe como é que me morreram umas lá no outro dia, lá na eira? Foi a tremocilha. Eu não sabia, isso é danado. Olhe, meti-as lá nos lotes de terreno, uns gajos semearam para lá tremocilha, e elas engoliram aquilo inteiro. Oh, foi uma limpeza. Morreram-me quatro. E uma vez comprei um borrego e uma borrega ali ao Pinhal Novo, a um primo meu... não duraram quinze dias. Foram para a tremocilha, eu não sabia que havia para lá tremocilha. Morreram logo. 

E há outra. Você, por exemplo, tem ali ovelhas. Estão agora a seco, não é? Semeia para lá cevada e não sei que mais. Quando está bom para largar lá as ovelhas, se as larga lá e as deixa andar à vontade, elas vão-se todas embora. Apanham diarreia e morrem todas. Arrebentam por dentro. E sabe porquê? O animal está feito ao seco e ópois mete-se no verde, come, come, come, enchem-se e ópois chega a um ponto que é que embucha, não remói, e ópois quando ela vem por meio aquilo fica ali uma bola e arrebenta.

Uma pessoa pode largá-las no pasto verde mas é assim: larga hoje, por exemplo, mas é um quarto e hora e tiras. Rua! No outro dia, vai lá, vinte minutos. Tá a ver, vai indo assim. Até que chega a um ponto que já não faz mal, pronto, já pode-se deixar que não lhe faz mal. Agora, se vai para o pasto verde de repente... É que metê-las lá dentro de repente e deixá-las andar até elas quererem, no outro dia está tudo morto. Mas, por exemplo, agora que choveu vão rebentar aquelas ervas. Mas como elas andam por aí à solta, assim não faz mal. Faz mal é a gente tê-las presas a seco e ópois, de repente, metê-las no verde, e deixá-las andar à vontade. Isso, atão, vão-se todas embora. É a frasquilha, cresce à volta da figueira, elas vão atrás dela, mas como a erva está gelada, quando está de gelo, a erva mata-as. Chama-se a isso frasquilha. Mata-as. São melindrosas.

Ê não gosto muito deste rebanho que para aí anda. Isto é gado de carne e eu não gosto disto. Eu gosto de gado é de gado saloio: gado de leite. Nem é para tirar leite: é que a ovelha tem um borrego ou dois e a gente quer matar um borrego ou dois e mata e aquilo é só carne, tá a ver ou não? Mas agora um gajo, com estas ovelhas, atravessadas em França, charolesas e não sei que mais, um gajo mata um borrego e aquilo é só seco, não tem carne nenhuma. Para a gente ter ovelhas desta em casa, elas não prestam. Uma pessoa não se safa.

Agora, a cabra é outra coisa. Come tudo e mais alguma coisa. A cabra é safada. É um animal do diabo.


Seja de ovelha ou de cabra, de animais melindrosos ou do diabo, a verdade é que o queijo artesanal da Azóia é uma pérola quase desconhecida.

Jornal de Azeitão, Março 2021
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O palácio hiper-real

1/2/2021

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“Se ainda fosse precisa prova, o novo mamarracho do Berardo mostra mesmo que há uma lei para os grandes e uma lei para os pequenos. Eu, para fazer um telheiro, tive de pedir a um arquitecto para me fazer o projecto, tive de meter os papéis na Câmara e pagar a licença. Estive seis meses à espera da autorização, que agora por causa do Covid dizem que está tudo parado. O Berardo fez o que quis e ninguém parou a obra.”
 
Testemunhos como o deste meu vizinho são comuns, em Azeitão. Tenho-os ouvido um pouco por todo o lado. A percepção de uma justiça desigual mistura-se a sentimentos de inveja difusa, mas deixa habitualmente em silêncio quaisquer juízos estéticos ou de carácter patrimonial. O que é a razão maior da disputa entre o Estado e o empresário – a proximidade entre a histórica Quinta da Bacalhoa e a antiga estação rodoviária dos Belos, em área classificada do Parque Natural da Arrábida – não tem transparecido como preocupação válida nos desabafos que tenho recolhido. É um pouco como se, para “os pequenos”, o empresário, o governo, o ICNF e a câmara fossem faces da mesma entidade que invejam e condenam: são todos “os grandes”, ligados por laços imaginados de corrupção e abuso de que “os pequenos” se sentem excluídos.
 
O discurso anti-nepotista é fruste mas revelador. Sobretudo pelo seu pesado silêncio, é revelador do estado das ideias populares sobre ordenamento territorial e da frágil apreensão dos valores patrimoniais da região. Conceitos como “histórico”, “tradicional”, “autêntico”, que tendem a ser usados e abusados como parte de argumentos justificativos pelas diversas autoridades, soam a ocos e desgastados, e são apenas percebidos como intrusos impeditivos pela população. Vale a pena perceber porquê.
 
No já longínquo ano de 1975, Umberto Eco escreveu o ensaio Viagens à hiper-realidade no qual relatava o fascínio do imaginário norte-americano pelo simulacro. Segundo o escritor, este fascínio conduziu a uma obsessão nacional pela reprodução hiperbólica, em que o falso se conforma melhor à ideia de real que o próprio real. Se Eco tivesse escrito o seu ensaio mais recentemente, teria certamente adicionado a figura de Donald Trump ao seu catálogo de simulacros made in USA. Mais que empresário, Trump representa ser empresário; mais que milionário, ele ostenta ser milionário; e mais que político, ele finge ser político. Eco teria certamente visto grandes semelhanças entre Trump e o crocodilo robótico com o qual se confrontou ao percorrer de barco um simulacro de rio selvagem, numa das atracções da Disneylandia, na Flórida.
 
Mas desengane-se quem pensar que este fascínio pelo simulacro é, hoje em dia, um exclusivo americano. Pode ser que, numa sociedade de abundância capitalista, seja mais fácil produzir simulacros hiperbólicos e espectaculares. Mas se deslocarmos a lupa, das luzes intensas de Orlando, Hollywood ou Las Vegas para a microscópica região de Azeitão, situada no interstício de duas áreas metropolitanas de um país pobre e periférico, encontramos curiosas semelhanças. Encontramo-las não apenas no novo “palácio” Berardo ou nos reclames azuis que são o pelotão de pedra dos soldados chineses guardando a entrada da Bacalhoa. Os sinais estão por todo o lado, na linha de palmeiras entre o vinhedo da quinta, no arco falso à entrada da vila, no lettering das casas comerciais anunciando doçaria regional, nos beirados e na traça das vivendas   desenhadas à “antiga portuguesa”, nos muretes de pedra a fazer parecer casario antigo, nos azulejos industriais modernos que se fazem passar por artesanais e antigos. Mas também nas palavras que preenchem os discursos de promoção turística da região: “velho”, “antigo”, “senhorial”, “tradicional”. E, claro, nos esforços de embelezamento da área do Parque. A “Arrábida” é manto mágico que encobre, como simulacro de si mesma, toda uma gama de acções humanas que modificam, degradam e desfeiam o espaço natural da serra. A cimenteira e as pedras são os mais evidentes arguidos, mas a multitude de casinhas e casarões que pontuam a área protegida, convenientemente apetrechados de telha cónica e lintéis em pedra talhada, são outros tantos objectos transformadores: confortáveis imitações da vida rural para repouso temporário de urbanitas que, mais que os crimes ambientais da Secil, revelam o paradoxo de pretender “preservar” valores patrimoniais numa área “natural” protegida quando os modos de vida “tradicionais” que lhes davam sentido dali desapareceram para sempre.
 
Nem poderia ser de outra forma, talvez. Pintar Azeitão com cores da “tradição”, da “história” e do “autêntico” parece ser a última linha de defesa da identidade de uma vila e de uma região que há muito deixou de ser um mundo de ruralidade para se tornar um dormitório periurbano, alojamento dos “pequenos” sem posses para habitar a cidade e alojamento dos “grandes” com posses para sair da cidade. Uns e outros irão acabar por visitar um dia o simulacro que é o “palácio” Berardo.

Jornal de Azeitão, Janeiro 2021

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Prendas da casa

30/9/2020

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Contava Raúl Brandão, n’Os Pescadores, que nos povoados pesqueiros ao longo da costa portuguesa, as mulheres fiavam e remendavam as redes, transportavam e vendiam o peixe. Mas, lembrava, não no Algarve: aí, a mulher era a prenda da casa; acumulava colares e brincos de ouro que empenhava depois para garantir alimento nos meses de míngua, e não trabalhava senão para manter imaculada a casa. Esta condição, que ele descreve magistralmente a propósito da sua passagem por Olhão, alterou-se profundamente ao longo do século XX, quando a mão de obra feminina se revelou vital para o incremento da indústria conserveira de atum, cavala e sardinha.
Também em Sesimbra as mulheres tendiam a manter-se apartadas das tarefas directamente ligadas à pesca, e eram elas a governar a casa. Mas, como no Algarve e em Setúbal, foram elas o principal recurso operário da florescente indústria conserveira que durante boa parte do século passado alimentava o mercado nacional e internacional. A elas cabia o amanhar, o limpar, o descabeçar, o cozer e o acamar das sardinhas nas latas; as tarefas masculinas nas fábricas eramç além do ofício de soldar as latas, o transporte e a arrumação do peixe que chegava das múltiplas armações que pontilhavam a costa arrabidina, e cujas estruturas arruinadas ainda se podem lobrigar nas várias covas e enseadas, da Azóia a Galapos. Mas, antes e depois da febre das fábricas de conserva que os industriais franceses introduziram em finais do séc. XIX – a Bela Vista, a Primorosa, a Pinto, a dos Gatos, do Chora, a Lusitana, a Francesa... -, era ponto de honra das mulheres dos pescadores não trabalharem, pelo menos fora de casa.
Nos anos setenta e oitenta do século passado, o aventureirismo dos pescadores garantia sem problemas este desafogo: quando começou a escassear o peixe na costa da península, aumentou-se o calado dos barcos e o que antes era impensável – a faina no alto mar – tornou-se rotina: dos mares de Sesimbra, Cascais e Peniche, a pesca alargou-se então para os bancos atlânticos do Gorrinche, das Canárias e da costa mauritana, atrás sobretudo do peixe-espada negro e do chicharro, porque agora o peixe apanhado podia vir refrigerado em gelo miúdo. A vida a bordo era inclemente: campanhas de quinze a vinte dias nos mares longínquos, trabalhando noite e dia em conveses descobertos, sem mais que breves descansos diários de duas horas em catres instalados paredes meias com as máquinas e os depósitos de fuel. Distrações eram uma miragem: o calor efémero das prostitutas de Safi ou Agadir, a sorrateira troca de garrafas de aguardente por barras de haxixe, o contrabando de óculos escuros e ténis canarinos, e sobretudo a esperança de regressar à vila para descansar alguns dias, antes da retoma da faina marítima. A parte – o soldo entregue após a venda na lota - era entregue à mulher e ala para o café e conviver com as outras companhas ao ritmo das imperiais esvaziadas. Comum era ver as mulheres irem reclamar os maridos à hora do jantar: no mar, mandava o arrais, em terra governava a mulher. Tanto mais que as saídas para o mar, que antes duravam um a três dias, passaram a ditar ausências muito mais prolongadas.
Nada desta vida passada indica, no entanto, que a condição das relações matrimoniais e laborais era fixada na pedra, ou que o trabalho na indústria conserveira tenha sido um momento sem par na história das mulheres de Sesimbra. A decadência da pesca e a expansão do turismo de veraneio na vila ditaram o regresso das mulheres da comunidade ao trabalho salariado. Mas já antes, no quarto final do séc. XVIII, por exemplo, quando a estamparia de tecidos de chita se lançou na região com a criação, pelo Marquês de Pombal, da Real Fábrica de Chitas de Azeitão, no edifício quinhentista que antes fora propriedade dos proscritos Duques de Aveiro, era encargo das mulheres de Sesimbra o fiar do algodão para alimentar os teares azeitonenses.
 

Jornal de Azeitão, Setembro 2020
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A Serra-catedral

27/8/2020

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O mundo lá fora dilacera-se entre variegadas investidas das políticas identitárias contra os ideais liberais da representação democrática, suportadas por sedes populistas e inclinações autoritaristas. A milésima metamorfose do capitalismo procura, pela calada, tirar proveito de crises existenciais declaradas ou previstas – corrupções, poluições, migrações, propagações virais e redes digitais. O mundo lá fora parece profundamente desequilibrado.
O ínfimo refúgio bucólico que é a Serra da Arrábida conserva – por enquanto, pelo menos – o poder encantatório, se não de nos fazer olvidar o mundo em desequilíbrio, de diminuir em muito o seu domínio sobre as nossas consciências. Ajuda, nesta empresa, ler Frei Agostinho da Cruz e Sebastião da Gama, dois poetas separados por quatro séculos, mas unidos pelo misticismo religioso e pela branda paisagem da estreita faixa arrabidina.
 
Escrevia o primeiro:
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano duma banda
E doutra já salgadas as do Tejo.
 
E o segundo respondia:
A Serra é catedral
Onde o órgão-silêncio salmodia.
 
As horrendas agressões que a sangram e desfiguram – a cimenteira de um lado e as pedreiras do outro, o casario informe que mastiga as suas bordas e brota no seu mato, o asfalto que lhe rasga as entranhas – enfraquecem mas não lhe extinguem o potencial contemplativo e a força refrigéria.
A insanidade humana deixa impunes e torna irreversíveis os actos assoladores de quem se arroga o direito de os cometer. Mas a serra absorve-os, dissolve-os e perdoa na sua brandura os algozes. A cimenteira injectada no Outão deveria ser encerrada, mas os poderes renovam-lhe a licença por mais umas décadas? Seja. A pedreira que, por gesto iníquo a Casa de Palmela concedeu nas traseiras do Calhariz continua a comer a montanha? Seja. O Palácio dos Duques de Aveiro salvo da demolição e salga na voragem do processo dos Távoras sobreviveu séculos para se plasmar agora em “hotel de charme”? Seja. O extraordinário convento arrabidino arruinou-se nas mãos de uma seita de origem coreana e é agora pousada disfarçada de uma fundação gestora do dízimo dos casinos macaenses? Seja. Os japoneses do Agar-Agar saquearam todo o coberto submarino que fazia da costa sul da Arrábida um dos mais preciosos berçários piscícolas do Atlântico Leste? Seja.
Na sua bonomia, indiferente à mesquinhez das coisas humanas, a serra-catedral tolera, perdoa, sorri – mesmo se lhe topamos, ou imaginamos topar, trejeitos tristes nos seus cantos silenciosos. A dança da orografia garante-lhe por mais uns milénios não apenas solidez mas mesmo um ligeiro incremento do alçado – ao fim e ao cabo, a serra ergueu-se das águas, empurrada pela força das placas tectónicas, e não se entrevê o seu afundamento em futuro de médio prazo.
E se a sua cobertura vegetal única de cotovelo mediterrânico enfaixado no Atlântico um dia se perder por incêndio malicioso ou catastrófica mudança climática? Será triste ver a linha do seu cabeço descabelada, mas ainda assim a catedral continuará a ser catedral, até ao dia em que os últimos fiéis deixem de a frequentar e de nela buscar refúgio do mundo lá de fora – que seja para aí rezar em desespero por uma qualquer salvação temporal, ou mais singelamente para nela contemplar as silhuetas inescrutáveis da eternidade.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2020

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PEXITOS

9/7/2020

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Fotografia de Luis Carlos Chagas Rodrigues (2006)
É (ainda) comum ouvir às gentes “do campo” arrabidino a expressão “pexito” para identificar um habitante da vila de Sesimbra. É um termo popular que realça, senão antagonismo, pelo menos uma certa diferenciação tradicional entre duas identidades locais.
A tradição popular é um bicho estranho. Passa de geração em geração sem suscitar dúvidas, mesmo quando o seu sentido se fragmenta e a compreensão se vai perdendo. Umas vezes é renovada, outras esquecida. Mas também acontece que os enigmas que nela se acumulam ganhem, com o tempo, o curioso direito de nela subsistir sem ser questionados ou reinterpretados. A tradição é reportada e revivida sem despertar dúvidas: conta-se assim ou faz-se assado porque sim. A falta de curiosidade em relação à razão de ser de um enigma torna-se ela própria parte integrante da tradição.
Tomemos como exemplo o caso da lenda da origem do culto do Senhor Jesus das Chagas, padroeiro da vila de Sesimbra. Não obstante algumas variações pontuais, a história contada pouco tem mudado nos últimos séculos:
 
No período da reforma anglicana, em início do séc. XVI, em que a destruição das imagens dos santos foi ordenada por Henrique VIII, a sua mulher procurou preservá-las colocando-as em caixotes e lançando-as ao mar. Entre elas, contava-se a imagem de Jesus que veio a aparecer milagrosamente erigida sobre a Pedra Alta, no areal de Sesimbra. No entanto, faltava-lhe um braço e nenhuma das tentativas de o substituir vingou.
Certo dia, uma velha que recolhia madeira na serra para a sua lareira encontrou um tronco, possivelmente de zimbro, que ao arder sem se queimar revelou ser o braço que faltava à imagem de Jesus.

 
É estranha a inclusão, na lenda, da imagem de Jesus no catálogo das imagens de santos a destruir pelos iconoclastas ingleses. Seria apressado presumir que ela se deveu a uma deficiente compreensão, por parte dos católicos sesimbrenses, do sentido das reformas protestantes do norte da Europa. Como não podemos chegar a saber o porquê da inclusão, fiquemo-nos pela constatação de que tal inclusão não é problemática para quem conta e ouve a lenda.
Que a imagem tenha aparecido sem braço e que este tenha sido descoberto, não no mar mas na serra, e por uma velha, também não causa perturbação nem origina qualquer explicação – apesar de ser óbvia a analogia com a sarça ardente do episódio da epifania de Moisés na montanha. É, tal como a própria aparição milagrosa da imagem na Pedra Alta, um enigma que se quer enigma – um mistério, propriamente dito. Podemos, claro, imaginar que a velha representa uma figura de curandeira ou mesmo de parteira, dadas as propriedades farmacológicas que eram antigamente atribuídas ao zimbro, mas a verdade é que o episódio não requer interpretação por parte de quem o relata ou o escuta.
A lenda é contada e revivida em Sesimbra durante a festa e procissão do Senhor Jesus das Chagas a cada dia 4 de Maio, dia em que a velha encontrou o braço na serra (este ano, pela primeira vez, celebrada à porta fechada, devido à pandemia). Não requer interpretação nem explicitação. Mas, como o gato que se esconde com a cauda de fora, relembra todos os anos que a imagem do padroeiro é compósita: se o corpo é de origem marítima e migratória, o braço é de local e serrano, e é nele que se concentra a sua força taumatúrgica. O braço enxertado, tal como a distinção popular entre “pexitos” e “gente do campo”, conta uma história que não necessita ser explicitada para ser entendida. Um amador de história local pode, ainda assim, suspeitar que a lenda sesimbrense evoca uma relação secular problemática entre dois modos de produção e de vida que, ao longo de séculos, marcaram a rivalidade entre Azeitão e Sesimbra e acabaram por levar, primeiro, à desanexação da freguesia de São Lourenço do município de Sesimbra (em 1729) e depois, por irracionalidade administrativa do liberalismo oitocentista, à sua diluição no município de Setúbal (em 1855).
 
 Jornal de Azeitão, Julho 2020
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ir a banhos

30/6/2020

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Lota na praia de Sesimbra, fotografia de Artur Pastor, 1960
Entre as muitas frases memoráveis do filme Lawrence da Arábia, de David Lean, destacam-se duas sobre o deserto. A primeira é do Príncipe Faisal, que acusa Lawrence de não ser de mais que um “inglês amante do deserto”: “Nenhum árabe ama o deserto. Adoramos água e árvores verdes. No deserto não há nada, e ninguém precisa de nada.” A segunda é do próprio Lawrence, respondendo ao jornalista americano que lhe pergunta porque se sente atraído pelo deserto: “porque é limpo”.
 
O que atrai numa praia, pequena amostra de deserto banhada por água não potável? Vale a pena lembrarmos a história desta atracção, agora que, pela primeira vez desde que a polícia marítima do Estado Novo deixou de assediar banhistas de bikini, as autoridades regulamentam acessos e fiscalizam comportamentos a ter nas praias portuguesas, devido ao receio de propagação viral em pleno Verão.
 
Os hábitos balneares nasceram em finais do séc. XIX entre as camadas mais abastadas das populações urbanas europeias. Em Portugal, a ideia de “ir a banhos” para apanhar sol e ar carregado de iodo e sal foi impulsionada pela família real e pela alta burguesia. A urbanização que acompanhou a linha férrea Lisboa-Cascais tornou-se um mostruário das diferenças de classe: veranear não era simplesmente “ir à praia”, mas sim replicar a vida urbana cosmopolita numa atmosfera de lazer, repleta de visitas sociais, festas, jogos e complementar bisbilhotice, construindo em modo acelerado palacetes e “villas” numa orla marítima que nunca antes teria sido considerada viável para urbanização. Enquanto as altas esferas se divertiam no pequeno povoado piscatório de Cascais que tinham tomado de assalto, a pequena burguesia deleitava-se nas praias da Cruz Quebrada e Algés.
 
As diversas vagas de urbanização da orla costeira dão conta da progressiva popularidade destes hábitos, que se foram solidificando à medida que o direito à pausa no trabalho assalariado se implantava nas várias profissões, primeiro do sector terciário, depois secundário, e finalmente primário. As razões de origem eram já aquelas que nos levam hoje às praias no Verão: a limpeza e higiene sanitária. Fugia-se, como hoje, da poluição e dos miasmas das cidades insalubres para recobrar forças vitais para os meses invernais. Tornámo-nos progressivamente “ingleses amantes do deserto”, que suplantámos os “árabes” que o habitavam. Assim foi invadida Sesimbra, depois o Portinho da Arrábida, e mais recentemente a Aldeia do Meco e a Lagoa de Albufeira. Em Sesimbra, a arte da xávega é agora apenas praticada como atracção turística por iniciativa camarária; a lota na praia, dos dois lados do Forte de Santiago, desapareceu no início dos anos setenta; os grupos de pescadores que “desemachuchavam” os aparelhos de espinhel e consertavam as redes de emalhar foram escorraçados do areal (e das ruas da vila) nos anos noventa. As várias “covas” (pequenas enseadas) na costa sul da Serra da Arrábida, do Portinho à Azóia, albergam ainda algumas ruínas dos edifícios das armações de pesca da sardinha, mas os únicos habitantes ocasionais são os veraneantes que chegam por barco ou descem as escarpas a pique. As praias, as tais amostras de deserto que são hoje um bem raro democraticamente cobiçado, eram antes simples espaços funcionais para o trabalho das populações piscatórias (ancoradouros, lotas, etc.) ou então parte de circuitos de peregrinação religiosa: desde a “Pedra Alta” da praia de Sesimbra, onde primeiro apareceu a imagem do Senhor Jesus das Chagas, ao Creiro, onde na Semana Santa as populações rurais de Azeitão se dirigiam em marcha processional, ou às milenares festas da Senhora do Cabo, onde às populações locais se juntavam os peregrinos das freguesias saloias e, até ao séc. XIX, a própria casa real e alta nobreza senhorial... As praias eram locais de culto que, diz-se, antes de serem cristãos tinham sido muçulmanos. Antes de nos tornarmos “ingleses” urbanos, os “árabes” rurais que já fomos não víamos nos areais costeiros muito mais que nada.


Jornal de Azeitão, Junho 2020
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O Monstro do Parque

30/6/2020

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Fotografia: dinheirovivo.pt
A estrada que liga, junto ao mar, o Vale da Rasca ao Portinho da Arrábida é uma estrada emblemática e, como se sabe, agora com trânsito muito condicionado. A ligação foi rasgada no início dos anos setenta e sempre causou tensão entre o apetite popular pelo acesso facilitado às praias e as intenções conservacionistas do Parque Natural. O risco de queda de rochas, sendo real, tem servido como justificação mal explicada e, por isso, mal compreendida, para um progressivo controlo draconiano do trânsito e do estacionamento dos veículos de quem vai a banhos na Figueirinha, em Galápos ou no Creiro. Até 1970, parava umas centenas de metros antes da praia de Galápos. Hoje, quase invisível na rocha, ainda se podem adivinhar os vestígios da pequena tasca que ali havia e depois se deslocou para a praia (é hoje o Restaurante O João). A estrada servia sobretudo de acesso a duas estruturas antitéticas nascidas no início do século XX, uma para curar os males que a outra amplificava: o sanatório, agora hospital, do Outão e a cimenteira da SECIL.
Atravessar o perímetro da cimenteira é uma experiência visual perturbante, tanto porque impressiona como porque choca. É difícil não nos perguntarmos, de cada vez que por lá passamos, porque razão uma cimenteira – e a pedreira anexa - é autorizada a operar bem no âmago de um parque natural, como uma chaga purulenta numa paisagem protegida reconhecida como das mais belas do país. Mas antigamente a experiência era muito mais intensa: à aproximação da cimenteira, os odores execrandos dos fornos penetravam nos pulmões como facas e as poeiras giravam no ar e manchavam toda a paisagem.
Hoje em dia, a poluição tornou-se mais insidiosa. Como a dos automóveis, deixou de ser tão visível, mas nem por isso menos perigosa. As micropartículas que se libertam dos fornos de co-incineração (onde se queimam resíduos quimicamente nocivos) são, por virtude dos ventos dominantes na zona, geralmente transportadas para a baía de Setúbal, preservando os doentes do hospital do Outão, poucos quilómetros para Oeste. Em Setúbal, misturam-se com as micropartículas emitidas pelos motores a diesel, pelo fuel dos navios e pelo sem número de fábricas poluentes da região. Ao contrário das partículas de monóxido de carbono, as micropartículas conseguem penetrar na corrente sanguínea e atingem todos os órgãos (dos seres humanos, como dos animais e dos vegetais). São, globalmente, responsáveis pela morte de quatro a sete milhões de pessoas todos os anos.
É por isso irónico que uma das causas principais de poluição ambiental da região tenha a sua origem num parque natural, que deveria ser precisamente um espaço sacro de protecção ambiental. A cimenteira deveria, não fosse a renovação da concessão motivada precisamente pelo programa de coinceneração, encerrar portas em 2021. Assim, vai continuar a contribuir para adoecer e matar a população de Setúbal até 2044. É também irónico que o Hospital do Outão, que nasceu como sanatório para curar doenças respiratórias, esteja em vias de ser desactivado e deslocado para a cidade, onde os doentes serão muito mais afectados pela poluição atmosférica que junto à beira-mar, numa paisagem idílica.
Neste momento em que o mundo se confronta com a pandemia de uma doença respiratória que mata sobretudo quem tem as defesas imunitárias enfraquecidas pela poluição atmosférica, há que reconhecer que somos vítimas de más opções passadas e aproveitar esta crise como oportunidade para repensar o futuro, valorizando em vez de continuar a destruir o extraordinário património que é o Parque Natural da Serra da Arrábida. Uma opção sensata seria encerrar já a cimenteira e voltar a dar ao hospital do Outão a sua nobre função de unidade para recuperação de doentes com doenças respiratórias. Houvesse coragem política para tal...
 
Jornal de Azeitão, Maio 2020
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    Manuel joão ramos

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