MANUEL JOÃO RAMOS
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​Dos Cães e de outros objectos

21/3/2023

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Não é só o título que chama a atenção do leitor. A primeira frase é também crucial. É um apelo à imaginação, uma indicação do tom, do género e do estilo da escrita. E é também a presença material da intencionalidade criativa do autor. Ele há muitas maneiras de começar a contar uma história. Há o “Era uma vez, há muitos, muitos anos...” dos contos tradicionais, e o “No tempo em que os animais falavam...” das fábulas infantis. A partir daqui a literatura tornou possíveis infinitas variantes. O “Chamem-me Ishmael”, do Moby Dick de Melville, e o camusiano “A minha mãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não tenho a certeza”, anunciam relatos pseudo-autográficos. O pressagiante “Era um dia frio de Abril, e os relógios batiam as treze” do 1984 de Orwell, contrasta com o afirmativo “É uma verdade universal que um homem de fortuna necessita uma esposa”, do Orgulho e Preconceito de Jane Austen. O “Quando Gregor Samsa despertou na sua cama uma manhã após uma noite de pesadelo, descobriu que se tinha transformado num insecto gigante” oferece logo a chave do que vem a seguir. O “Numa galáxia muito, muito longe...” e o “Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia de irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor...” estabelecem de imediato o contexto temporal e espacial da história que se vai desenrolar.
Imagino que, para muitos urbanos lisboetas, uma viagem a Azeitão possa ter o refrescante sabor do exótico ao lado de casa. É, em pequena escala, equivalente à descoberta dos aromas e cores de Marrocos. Perto, mas ainda assim muito longe. Azeitão, tão plácida e incaracterística, parece, em certas coisas, um minúsculo planeta vogando numa galáxia, muito, muito longínqua. E, nessas certas coisas, evoca também o espírito irredutível dos companheiros de Asterix, o famoso herói da banda desenhada de linha clara franco-belga.
Uma viagem a Marrocos – ou a qualquer outro lugar excêntrico – é sempre um jogo de selecção do olhar e da atenção, um balanço frágil entre o apetecível e o repulsivo, que forma a nossa experiência do lugar. Dependendo do nosso gosto, da nossa tolerância à diferença, da nossa adaptabilidade, é uma experiência que, em casos extremos, pode levar-nos ao êxtase (e ao desejo de eterno retorno) ou ao abismo da repugnância. Mais normalmente, leva-nos ao meio do caminho: um gosto amargo de pessoas e coisas que preferimos esquecer, a tingir o gosto doce das pessoas e coisas que queremos lembrar.
Assim também Azeitão: o urbano lisboeta regressa todos os primeiros domingos do mês ao terreiro da feira porque, mesmo que tenha sido enganado na qualidade da toalha ou na frescura do melão, deseja reinventar a experiência, e voltar a saborear a confusão da mole humana, os gritos do “Três slipes ao preço de um”, e as bifanas mal assadas. Regressa volta e meia à pastelaria que serve “as mais típicas” tortas, e à fonte dos pasmados de água eternamente insalubre. Faz alegre e regularmente o caminho da cruz que, pela serra, leva aos parques de estacionamento sem lugares vagos no Portinho e no Creiro. Se for audaz, aventura-se num trilho pedestre, entre a caruma, as ortigas, as lagartas do pinheiro e as carraças das ovelhas. E depois, ala, regressa à cidade, que não há muito mais que ver na terra que, pensa ele, tem mais fama que proveito.
 
Há, de facto, em Azeitão algo de aldeia que resiste ainda e sempre ao invasor. E, até certo ponto, tem também algo de galáxia muito, muito longínqua. Explico-me:
Há leis da capital que não têm valor ou obediência na vila, e muito do que lá é apreciado é cá liminarmente rejeitado. Presumo que não seja por isso que os turistas lisboetas fazem por reviver experiências de exotismo, mas ainda assim convido o leitor (e, como se diz agora, num cúmulo de redundância politicamente correcta, a leitora) a passear a pé pelo meandro de ruas onde se alinham moradias de geometria perturbante, versões lusas do sonho suburbano americano. Não é conveniente fazê-lo em dia de feira, porque aí só os loucos o conseguem fazer, tal é a dimensão do engarrafamento automóvel. Nos outros dias, passear a pé obriga a andar pela rua porque os passeios estão em permanência ocupados por uma multitude de carros cujos donos são demasiado preguiçosos para os estacionar nas garagens das suas moradias. É verdade que, ficando escondidos por trás dos portões, não servem como mostra do estatuto económico do morador. Ou, porventura, as garagens estão demasiado atafulhadas de motas de grande cilindrada, para uso nas reuniões do Lavadouro e na estrada do Portinho.
Por outro lado, andar pelo meio da rua, pelo asfalto dessas ruas que, consciente ou inconscientemente, evocam o cenário do Eduardo-Mãos-de-Tesoura, é a melhor garantia de não ficar ensurdecido pelo arraial de cães de guarda das mesmas moradias, que se lançam raivosamente contra as grades e frestas dos portões, ameaçando abocanhar pernas, braços e traqueias dos viandantes. Cães que não saem à rua, e que não entram na porta. São uma espécie de imigrantes refugiados que comem e calam – quer dizer, não calam porque o seu trabalho escravo é ladrar e uivar até à loucura ou ensurdecimento da vizinhança.
 
Azeitão é um minúsculo planeta de uma galáxia de maus costumes que resiste incompreensivelmente às leis da capital. Seja as leis do ruído (obrigado, motoqueiros), as normas do Código da Estrada (obrigado, donos de SUV mal-estacionados), e as regras básicas da protecção dos animais (obrigado, donos de cães abandonados em casa própria). Talvez a razão pela qual os urbanos lisboetas gostem de regressar regularmente a Azeitão seja para ver se conseguem entrever, no topo de uma escada de alumínio, o Eduardo-Mãos-de-Tesoura, ele próprio, a desbastar violentamente as oliveiras da vila. Mas ai deles se se metem a andar a pé pela vila.
 
 ​Jornal de Azeitão, Março 2023

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O FAROESTE

21/3/2023

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Os Westerns são um género narrativo bem alicerçado na história do cinema que foi fulcral para a consolidação da indústria do entretenimento centrada em Hollywood. É, como sabido, um género muito variado, geralmente focado na mitificação da expansão colonizadora dos vastos territórios da região ocidental dos Estados Unidos da América, durante o séc. XIX. Um dos tópicos recorrentes dos filmes de Western é o da reinvenção arquitectónica dos espaços urbanos desse período, e da caracterização sociológica das populações que o habitavam. Há múltiplas variantes deste tópico, mas o estereotipo é o da pequena localidade com uma rua principal não pavimentada, enquadrada por um casario construído em madeira onde, para além das habitações, pontua um banco, a cadeia nas traseiras do escritório do xerife, a mercearia, o saloon e, mais distante do centro, a igreja protestante e a estação de caminho de ferro.
Ausentes ainda os veículos automóveis, o trânsito é, nesses filmes, sobretudo pedonal, perturbado apenas pela circulação de cavalos, carroças e diligências. É na rua principal que a acção central deste género de filmes tende a acontecer: o duelo entre pistoleiros, o roubo do cofre do banco, o encontro do vaqueiro com a amada, a zaragata que verte do interior das portas do saloon.
O enorme sucesso que os filmes de Western norte-americanos tiveram ao longo de décadas levaram a que, a certo momento, viessem a ser replicados noutros países. O caso mais conhecido foi o do chamado Western Spaghetti italiano nos anos sessenta e setenta do século passado, frequentemente sob o pano de fundo da meseta desértica dos arredores de Pamplona, em Espanha. O género tornou-se de tal forma influente que até na União Soviética se chegaram a produzir filmes de Western.
Sendo a indústria cinematográfica portuguesa muito incipiente, não admira que não haja exemplos nacionais de filmes do faroeste, dos chamados filmes de cowboys. Mas, caso a algum realizador luso ocorra vir a conceber um filme que, de alguma maneira, retome, reinterprete, ou reinvente o género Western em Portugal, eu aconselhá-lo-ia a olhar com atenção para Azeitão como localização excepcionalmente dotada para acolher as filmagens.
A serra da Arrábida não será tão imponente como o Grande Canyon; os areais de Coina e da Quinta do Anjo não serão tão secos como o deserto do Mojave; os nativos das redondezas não terão a pele tão avermelhada quanto a dos Apaches e dos Navajos; os agentes da GNR não serão tão nervosos com o gatilho quanto Wyat Hearp. Mas a rua principal está lá, assim como lá estão os saloons, o banco, e o mercado que faz as vezes de mercearia. Peões não abundam, é verdade, mas haverá sempre quem aceite alguns euros para fazer de figurante. Os carros podem ser facilmente ser removidos para o terreno da feira mensal, e a igreja pode ser despida das imagens de santos de forma a passar por templo evangélico.
Dir-me-ão que poderá haver alguma falta de cavalos e de cowboys para tornar credível o filme. Mas não podemos esquecer o imenso potencial, até hoje intocado, de Azeitão: a inquestionável abundância de motos e de motoqueiros na vila e arredores. Se eu fosse realizador de cinema, contratava-os para fazerem aquilo que fazem excelentemente, com um jeito natural: saírem à maluca das garagens das moradias montados nos seus cavalos de duas rodas, invadirem com sobranceria e impunidade a rua principal, fazerem piruetas e voltejos nas suas cavalgaduras, ingerirem em bando quantidades apreciáveis de álcool, e fazerem-se donos do povoado, ensurdecendo toda a população.
E, como nos filmes de Western, filmaria o povo temeroso espreitando impotente, por trás das portas de tabique do saloon, o espectáculo circense dos motoqueiros do OK Corral, ansiando por que um forasteiro com sobrolho de Clint Eastwood desça da serra para pôr a vila na ordem.

Final alternativo:
...E, como em certos filmes de
Western, filmaria a presidente da junta espreitando frágil e impotente, entre as cortinas da janela do xerifado, o espectáculo circense dos motoqueiros do OK Corral, ansiando por que um forasteiro com sobrolho de Clint Eastwood desça da serra para pôr a vila na ordem.
 
​Jornal de Azeitão, Fevereiro 2023
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A traseira

21/3/2023

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O fascínio que os pavões nos causam tem raízes históricas profundas na cultura ocidental, mas não apenas. Faz anos, deu-me para ler uma coisa ou outra sobre pavões orientais. Em particular, os estranhos caminhos percorridos, entre a Síria e a Índia, pela figura do pavão na literatura, no ritual e na arte. O chamado culto do pavão, praticado pelos Iasidis do Curdistão, é como que uma evocação local de um complexo circuito que conecta os antigos cristianismos sírio e sul-indiano. A sua ligação com a veneração de São Tomé, o evangelizador do Kerala, é tornada explícita numa série de textos alegóricos que dão conta da morte do apóstolo, trespassado pela seta de um caçador que o confundiu com um pavão que levantava vôo (ou, em certos relatos, o santo assumiu mesmo a forma da ave). A ligação metafórica entre um e outro é fundada na noção de imputrescibilidade dos corpos de ambos: tal como o cadáver de São Tomé ficou preservado ad eterno devido ao facto de ter tocado a carne de Cristo, no célebre episódio da incredulidade na Ressurreição, relatado em João 20:24–29, à carne de pavão são atribuídas qualidades muito particulares na literatura enciclopédica antiga.
 
Plínio-o-Velho refere, na História Natural, que os pavões eram criados em Roma para serem servidos em banquetes, porque a sua carne não apodrecia (X, 23). Santo Agostinho fala também sobre a carne de pavão, notando que esta tem uma particularidade miraculosa: a de resistir longamente à putrefação depois da morte. O autor da Cidade de Deus pôde comprovar, em Cartago, que mais de um ano depois de ter mandado guardar um pedaço de peito de pavão assado, a carne ainda estava em condições de ser consumida (Cidade de Deus, XXI, IV, 1, 3).
 
Fazendo-se eco das informações dos bestiários medievais sobre o pavão, Brunetto Latini nota que, apesar da sua beleza, o pavão tem um pescoço "serpentino", voz de diabo, e pés de "safira" (i.e., azuis e sem brilho). Ao voltar as costas aos homens, orgulhoso da sua plumagem, mostra a fealdade da sua "parte traseira"; ao contrário da carne da perdiz, a carne do pavão é dura e pouco saborosa (Livro do Tesouro, CLXVIX). Gossouin de Metz sublinha também a dualidade dos sentimentos expressos pelo pavão, correlativa da sua ambiguidade morfológica: olhando para a sua cauda aberta em leque, sente-se um rei, orgulhoso da sua beleza, mas quando olha os seus pés, "que são feios", deixa cair a sua cauda para os cobrir, envergonhado (Image du monde, II, VI, CD). A duplicidade que caracteriza o pavão é tema para uma descrição particularmente eloquente de Hildegard de Bingen, que refere que a carne de pavão não é saborosa, mas não apodrece facilmente (ao contrário da carne de perdiz): a vesícula pode ser conservada e aplicada sobre as escrófulas para assim "fazer sair a putrefacção" da pele; também as plumas podem ser usadas para impedir a putrefacção das queimaduras (Física, VI, III).
 
Existem, portanto, razões óbvias para fazer do pavão um avatar de São Tomé: trata-se de sublinhar o carácter imputrescível da carne morta de um apóstolo que foi tentado pelo pecado do orgulho da sua incredulidade perante a palavra de Cristo.
 
A ideia de que a fealdade se esconde por detrás da beleza, e de que a vergonha vence o orgulho, está bem expressa nas traseiras do edifício das Caves José Maria da Fonseca, em Vila Rica. A sua fachada frontal, que incorpora a Fonte dos Pasmados, encontra-se muito bem cuidada e é legítima fonte de orgulho dos seus proprietários e dos azeitonenses em geral. Mas, se virarmos a esquina da Rua Direita (a Rua José Augusto Coelho) e entrarmos na estreita lateral cujo nome parece maior que ela (a Rua Helena da Conceição dos Santos e Silva), circundando o longo edifício caiado, deparamo-nos a certo momento com uma visão que nos faz lembrar a “parte traseira” de um pavão. Em vez de descrever o pedaço de paisagem, remeto o leitor para a fotografia anexa - porque uma imagem vale mil palavras, que são mais que aquelas que este curto texto pode comportar.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2023

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há uma mulher em azeitão

23/11/2022

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O defunto grupo eclético-pop Astrud, constituído pela dupla Manolo Martinez e Genís Segarra, é uma daquelas preciosidades espanholas que poucos portugueses conhecem ou apreciam. Com maestria e sarcasmo, misturavam referências do ye-ye dos anos 60 com new wave, brit-pop e música marginal espanhola. Irromperam em cena em 1997 com o álbum Mi fracasso personal e presentearam o público do país irmão durante 15 anos com êxitos como Todos nos parece uma mierda (2004), Algo cambió (2006), e Tu no existes (2007), até se eclipsarem em 2012 após uma breve associação com o Col.lectiu Brossa de Barcelona.
 
Em 2005, produziram um dos vídeo-clips mais curiosos da música popular contemporânea espanhola: o Hay um hombre en España que lo hace todo, legendado em mandarim, que segue um condutor de riquexó transportando turistas chineses em visita a uma Pequim ultra-moderna. A letra é inesquecível:
 
Hay un hombre que lo hace todo en España. Es el que te coge los bajos del pantalón, es el genio visionario que se inventó el Colacao, es el que que pone anchoas dentro de las aceitunas, es amante de la infanfa y lo es de más de uma. Traduce los artículos de Le Monde Diplomatique, es el que hace los masajes en Masajes a Mil, se inventa los debates que hacen en Antena 3, es cajero del Ikea, y es teniente coronel, es el que redacta y responde las encuestas, es el gilipollas que reparte las becas...
 
Desde que ouvi pela primeira vez esta canção, não consigo deixar de olhar para Portugal sem imaginar quem será o equivalente luso deste misterioso e fantástico personagem que, tal o Charlie Chaplin do Modern Times, tem por missão fazer funcionar o melhor e o pior, o mais corriqueiro e o mais singular, da sociedade espanhola. Porque tem de haver alguém responsável pelas nossas absurdidades: um alguém que coloca repentinos sinais de 40km numa auto-estrada, que envia notificações das finanças a mortos, que corrompe este ou aquele governante, que adia operações urgentes à vesícula, e que perde os processos do fundo de desemprego.
 
Assim no país. Mas e em Azeitão? Quem será a pessoa que por faz tudo nesta mescla de nostálgica desordem tardo-rural e periurbana a escassos trinta quilómetros da metrópole lisboeta? Para que tudo funcione e não funcione em Azeitão, para que tudo se passe bem e opere mal, há-de ter de haver um responsável irresponsável, um bode expiatório e um inspirador conspiratório. E, dadas as peculiares e tradicionais relações de género na região, esse homem há-de certamente ser uma mulher. É ela o génio, o artista, o visionário, que está por baixo, por detrás e em cima de tudo o que ocorre na vila e arredores.
 
É ela quem lava diligentemente os lençóis das quintas “da família”, que puxa o lustro das super-motas que vociferam nas noites de quarta-feira, que enrola as tortas de ovos e torce os esses de canela, que varre a entrada da Santa Casa e troca receitas no grupo de Facebook.
 
É ela que faz os itinerários do autocarro que não sai da garagem por falta de motorista, que camada-a-camada faz subir o alcatrão das ruas acima da calçada, que tortura as oliveiras com penteados bonsai, que alimenta gatos e ratazanas nos esconsos dos baldios.
 
É ela que entope as sarjetas no final do Verão, que rompe os canos que o piquete reparou, que faz crescer a erva nas bermas da estrada, que deixa os cães a ladrar no quintal da moradia enquanto limpa os trilhos pedestres da serra.
 
É ela que cose os botões das camisas de escuteiro do filho enquanto o marido e a amante visitam a sex shop do Brejo, que leva a filha à escola e deixa o carro sobre o passeio, que denuncia a vizinha à Guarda porque a vizinha a denunciou primeiro, e não fala à prima que ficou com as pratas da herança.
 
Alguém sabe onde ela pára? Eu gostava de a conhecer.
 
Jornal de Azeitão, Dezembro 2022

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cuidado com o sapo

23/11/2022

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É muito fácil dar a outrem o direito a ter um ponto de vista distinto e até oposto ao nosso. Muito mais difícil é dar ao ponto de vista de alguém precedência sobre o nosso. Isso só pode acontecer se conseguimos alterar o ponto de vista do outro para que se assemelhe ao nosso, ou então quando nos apropriamos do seu ponto de vista tornando-o nosso.
 
Ao longo de séculos, uma relação especial desenvolveu-se entre as comunidades sedentárias portuguesas e grupos de comerciantes e trabalhadores nómadas que se cria virem do Oriente, próximo ou longínquo (do noroeste da Índia, diz-se; do Egitpo, pensava-se). Embora estes grupos se autodenominassem como rom, receberam vários epítetos, geralmente com entoações depreciativas: zíngaros, manuches, caloms, ciganos. A história deste relacionamento é complexa e pouco clara, porque grande parte dela tem sido feita através de um jogo de percepções e contra-percepções que raramente foram tidas como merecedoras de registo escrito. Mas não será de todo infundado sugerir que foi neste relacionamento secular especial, feito de desconfiança mútua, desconhecimento e preconceito recíprocos, que muitos portugueses optaram por canalizar as suas pulsões xenófobas, etnocêntricas e porventura desumanizadoras. Os “ciganos” são o nosso outro preferido, sobretudo porque a comunidade rom desenvolveu discursos e práticas de autodefesa que assumem uma forma a uma vez confrontadora e oportunística, que pode por vezes ser profundamente desconcertante: reconhecendo a dificuldade de superar o estatuto de comunidade subalterna e excluída que lhe é atribuído exteriormente, não largam mão do seu direito a ser comunidade e reter teimosamente as suas marcas identitárias, que geralmente se expressam através de um arreigado conservadorismo cultural.
 
Tive uma vez uma longa conversa com o pai de uma amiga valenciana, decano de uma orgulhosa família gitana. Falou com grande admiração da força do tradicionalismo dos “ciganos” portugueses, notando que tendo estes, ao contrário das comunidades da Europa de Leste, perdido o conhecimento da língua e religião romani, mantinham ainda assim virtualmente intactas diversas tradições e instituições que os seus congéneres espanhóis, obviamente muito mais integrados socialmente, tinham há muito abandonado. Esta visão feita ao arrepio da imagem consolidada do gitano tradicional espanhol – muito por efeito da dignificação do flamenco como forma musical nacional – levanta um interessante véu sobre os efeitos identitários da exclusão social secular a que os “ciganos” portugueses têm sido submetidos.
 
Quem passeia por Azeitão não pode deixar de notar que os portões e muros de muitas moradias ostentam figuras de cerâmica vidrada representando sapos. Não é, como se depreende, uma especificidade da vila. Os sapos de louça são tão caraterísticos das casas e lojas portuguesas como os duendes dos jardins irlandeses, os laços amarelos das varandas norte-americanas, os deuses elefantes no subcontinente indiano, e os gatinhos de porcelana que abanam a pata direita na China. Menos famosos mundialmente que os pastéis de nata, já mereceram ainda assim reportagens do canal televisivo Al Jazeera.
 
Segundo a sabedoria popular e o Google, a colocação de figuras de sapos em montras e prateleiras de lojas, assim como em portões, muretes e relvados de moradias, é suposto afastar qualquer incauto membro da comunidade “cigana”, que terá um pavor irracional de sapos, na medida em que representam beng, uma figura diabólica, e são usados em rituais de magia negra. Não posso asseverar que todos os comerciantes e habitantes que dispõem figuras de sapos à vista de todos acreditam de facto que eles têm o poder de amuleto capaz de afastar alguém, assim como estou muito longe de crer que alguém entre em estado de pânico ao ver um anfíbio de porcelana pintada de verde. Mas, ao ouvir e ler ao longo dos anos tantos depoimentos de diversos concidadãos meus, posso confirmar que o diz que disse levou a uma convicção generalizada de que essa é a razão pela qual estes sapos vidrados proliferam em Portugal.
 
No entanto, é importante referir o seguinte, para melhor enquadrar a questão dos sapos e da xenofobia lusa. A literatura enciclopédica tardo-romana e medieval associa regularmente os sapos a práticas de feitiçaria, a malefícios, nomeadamente devido à crença de que cuspiam veneno. Os bestiários, que não distinguiam os anfíbios dos répteis, descreviam-nos como animais diabólicos, mas que, sendo terráqueos e frios como as salamandras, a sua pele e ossos podiam ser, secos, usados como protecção contra os efeitos do calor ou ataques de animais. Tal como acontecia com certas serpentes lendárias, imaginava-se que guardavam na cabeça uma pedra preciosa que podia ser usada como antídoto contra envenenamento. As recolhas de folclore europeu também referem que, sendo tradicional certas mulheres romani praticarem bruxaria e adivinhação, e usarem sapos em encantamentos e em curas medicinais, foi por extensão criada uma ligação entre o receio de sapos e a desconfiança em relação à comunidade rom.
 
O antropólogo James George Frazer, que dedicou muitas páginas ao estudo do pensamento mágico, falava da lei do contágio segundo a qual uma crença psicológica de que, quando duas pessoas ou coisas entram em contacto, uma ligação persiste, cujos efeitos maléficos só poderão ser anulados através de rituais de purificação ou de esconjuro, ou pela utilização de amuletos. Os sapos de louça poderiam, nesta perspectiva, ser interpretados como fetiches que, representando um animal associado aos rom, teria o poder de enfraquecer os poderes maléficos que lhes são atribuídos. No entanto, estou mais tentado a ver os sapos de louça como subtil manifestação da capacidade humana para criar e manter mal-entendidos. Os portugueses estabeleceram um conjunto de associações confusas entre crenças tradicionais: entre poderes diabólicos e sapos, entre sapos e a prática de bruxaria, entre bruxaria e o povo rom, e acabaram por acreditar que os rom tinham, por misterioso contágio, adquirido o medo de sapos que era anteriormente o medo dos portugueses. O uso de sapos de louça para afastar “ciganos” segundo a crença de que eles teriam medo de sapos reais tornou-se num sinal claro de que quem os coloca em portas de casa e prateleiras de loja tem medo de “ciganos”. Assim, uma pessoa a quem é atribuído o epíteto de “cigano”, ao ver um sapo de louça numa casa ou loja, fica a saber que o seu proprietário é medroso e, porque quem tem medo se pode tornar violento, prefere não entrar para não ser sujeito à agressão por palavras ou actos xenófobos.
 
Que fique claro: não pretendo com este texto convencer nenhum leitor, nem espero ser convencido a colocar sapos de louça no portão de minha casa.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2022
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La Dulce Vita

6/10/2022

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Está a vila, a região e o país cheios de imigrantes franceses. São parte não menosprezável da nouvelle vague que tem aspergido, em anos recentes, as costas lusas. Muita água passou desde as invasões napoleónicas de má memória e esta nova presença nada deve a ensejos de expansão militarista. Antes, se quisermos enveredar por paralelismos históricos, evoca mais o súbito cosmopolitismo do país no início da era de quinhentos. As razões do fenómeno e as motivações dos novos migrantes serão, como sempre são, variadas. Mas pesou certamente a liberalização cavalgante do mercado imobiliário, a força do rent gap, o reencaminhamento do turismo de um norte de África tomado por instabilidade política, e o escandaloso programa de isenção de impostos a reformados europeus (somado ao ainda mais escandaloso programa dos vistos gold).
 
Certo é que o pendulo migratório oscilou em sentido contrário ao da histórica rota da emigração tuga com uma mão à frente e a outra atrás. A integração da diáspora lusa no tecido urbano multi-cultural francês fomentou, por lá, percepções a uma vez nostálgicas, exóticas e paternalistas em relação ao país de origem dos maçons, carreleurs e concièrges. Viemos assim a ser tomados, não propriamente como europeus, mas como simpáticos, brandos e submissos magrebinos católicos. Para as massas que tinham ganho o hábito de viajar para as kasbahs marroquinas ou argelinas, a vida em Campo de Ourique ou na Vila Rica é encarada como uma alternativa soft, com metade das moscas e o dobro do saneamento de Marrakesh e Monastir. E, além disso, há vinho castiço, queijo imitadiço, café barato nas esplanadas, e cada vez mais filmes francófonos nos canais televisivos.
 
Uma discreta torrente de filmes, romances, documentários, e álbuns de fado fusion muito contribuiram também para apimentar a curiosidade gálica pelo país do passtel dê natá. E nós correspondemos, mas – digamo-lo abertamente – com subtis “empoderamentos”. Somos os primeiros na fila das novas patisseries, mas deixámos de nos vergar à língua de Molière, cheios que estamos com a língua de Shakespeare e Eminem. Não nos deixamos impressionar pela cuisine française, sabemos que um DOP da Península de Setúbal vale dez Côtes du Rhone, preferimos ostentar Gucci a Viuton, e apoiar o Barça contra o PSG.
 
Misturados neste enxame migratório do além-Pirenéus vêm também os retornados das cages dorées, primeiras, segundas e terceiras gerações da diáspora lusitana. Vêm reformados, retirados, retratados, simplesmente saudosos, ou então desempregados do mercado de trabalho francês.
 
(Uma palavra breve sobre o sentido de chômeur em francês: trata-se de um termo que remonta à Idade Média e que significava, na origem, alguém que devido ao calor estival fazia uma pausa no trabalho (caumare, em occitano e latim); com a crise económica de 1846, passou a designar os muitos milhares de desempregados que vieram a participar na revolução de 1848 contra a chamada monarquia de Julho).
 
Na fronteira entre os concelhos de Setúbal e Sesimbra, na urbanização cogumelo do Alto das Vinhas, tive a muito grata surpresa de conhecer a Dulce, alentejana de afável olho azul e desarmante sorriso que, após 40 anos a trabalhar como maquilhadora para a TF1, a Arte e a M6, deu uma volta à vida e fez o caminho de regresso ao país natal. Percorreu o litoral em busca de pouso para o negócio que decidiu abraçar: a confecção e venda de pizzas caseiras num moderníssimo foodtruck. Aparcou brevemente na Fonte da Telha mas, porque o casario é ali todo ilegal, continuou a procurar até que encontrou uma moradia mignone com jardim entre os pinheiros do Alto das Vinhas. Quando a Câmara Municipal de Sesimbra lhe recusou licença para instalar o foodtruck em espaço público da vila, não desarmou. Perguntou ao funcionário: “mas posso instalá-lo no meu jardim?”. Como o regulamento municipal parecia ser omisso quanto à possibilidade, a resposta veio positiva e, desde então, a Dulce serve deliciosas pizzas soberbamente maquilhadas ao gosto do cliente no seu cuidado jardim, testemunho da estética fusion alentejano-parisiense.
 
E, como inevitável bónus, os clientes caem apaixonados pelas doces modulações do seu sotaque.
 
 Jornal de Azeitão, Outubro 2022
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A VERNISSAGE

6/10/2022

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A noção de preservação do património é espinhosa. Assim como o é o entendimento do que é criação artística. Segundo os padrões da europeidade – geralmente estabelecidos nas margens do Sena, do Tamisa e do Elba (vá lá, também do Tibre) -, os portugueses são fracos preservadores do património arquitectónico. Sintra e Óbidos não competem na mesma liga que Tivoli e Rocamadour. Grão Vasco e Joana Vasconcelos passam por meros copistas das tendências da Casa Médici florentina e da Documenta de Kassel. É ponto assente pela “inteligência” alfacinha que rebocar palacetes a cimento, instalar janelas de alumínio na Casa dos Bicos, e “estragar” centros históricos com construções moderno-brutalistas é sinal de vandalismo cultural típico do vernáculo da nossa boçalidade.
Por mim, prefiro ver as coisas de outra maneira. Não me aflige substituir calçada “à portuguesa” por lajetas de cimento se isso melhora o conforto dos viandantes. Atrai-me mais o melting pot de São Teotónio que o de Óbidos, o Bairro das Fontainhas em Setúbal que a Rua Cor de Rosa e o Campo de Ourique em Lisboa. E quanto à fraca criatividade artística portuguesa... acho que os estetas procuram a musa nos lugares errados. Se queremos ver boa arte em Portugal, há que fugir da Galeria 111 e do Museu do Chiado, e percorrer as aldeias, vilas, e bordas de estrada lusas para bem apreciar a explosão de criatividade autóctone. Os portugueses não produzem Picassos, Beuyses, Pollocks ou Damien Hirsts, porque não precisam deles em cima da lareira. Antes, dedicam a sua energia, o seu ethos e o seu pathos, à produção de formas geométricas complexas a que dão o nome de “moradias”. Não há uma igual a outra, e nenhuma arquitectonicamente aborrecida, sobretudo desde que a Revolução dos Cravos veio dar rédea livre à imaginação individual e colectiva pátria. No Reino Unido diz-se que “a minha casa é o meu castelo”. Em Portugal, país de estetas espontâneos, “a minha casa é a minha obra-prima”.
Vem isto a propósito do facto da renovação de uma casa do largo da Piedade onde, no andar térreo ficava (e voltou a ficar) o café e mercearia da aldeia. Foi há coisa de dois anos que publiquei aqui um texto chamado “A morte da aldeia”. Falava sobre o encerramento iminente do café, e sobre o impacto previsível que isso teria sobre a vida dos seus habitantes, tanto os usuais como os de arribação. A verdade é que as quarentenas e outras várias restrições destruíram  o negócio do Norberto e da Olga e desde aí a aldeia ficou sem café, sem mercearia, e por isso sem um ponto certo onde as conversas podiam ser postas em dia, a terra da lavoura e o pó das obras podiam ser lavados com minis, o passado e o futuro podiam ser presentes a público.
O edifício foi posto à venda, e veio a ser comprado por um jovem casal holandês que tomou como ponto assente que tanto a mercearia como o café haviam de voltar a abrir, em parceria com a Alexandra, de raíz local. As obras são como são, as licenças camarárias são como sempre serão mas, após meses de expectativa, os sinais da renovação começaram a acumular-se. À porta do prédio, o tijolo e o cimento foram dando lugar às latas de tinta e aos materiais de pavimentação, os pedreiros deram lugar aos estucadores, e estes aos canalizadores e electricistas. No supermercado da vila, uma vizinha confidenciou-me “está para breve”, na rua da Escola outro comentou “agora é que vai ser; o café vai voltar”. Finalmente um dia, frente ao portão de ferro, apareceu um letreiro grafitado a giz tratando o leitor com uma inconfundível familiaridade empática holandesa: “Olá, aldeia! Vamos abrir  o café no dia 15 de Agosto”. E assim foi. Uma maneira diferente de fazer a festa na aldeia.
Sim, dia 15 de Agosto é, tradicionalmente, o dia final da Festa de Nossa Senhora da Conceição, na capela de São Pedro, que este ano mereceu apenas cerimonial religioso. A comissão de festas alegou que, à semelhança de 2020 e 2021, ainda se aplicavam as restrições do COVID e que, por isso, os bailes, rifas e bifanas só regressarão à aldeia no Verão de 2023. Pouco importa mais bailarico, menos bailarico. O que interessa mesmo é que o café e a mercearia estão de regresso e a vida da aldeia sente-se renascer.
Renasce diferente, como é óbvio, assim como o café. Nestes dois anos, mais ou menos, não foi só o Norberto e a Olga que deram uma volta à vida. A pandemia foi má para muita gente, mas boa para certos negócios, em particular o imobiliário. Várias quintas, moradias e casinhas de aldeia mudaram de mãos e de destino. Os casarões foram recuperados, os jardins ganharam novos ciprestes, os alojamentos locais multiplicaram-se e, com eles, as matrículas estrangeiras dos carros. Será incipiente a alteração demográfica, mas já se faz sentir na via pública: há mais passeadores de cães, mais licra a fazer jogging nos trilhos, mais sotaques de terras protestantes.
Dias antes da inauguração do café, a Sabina chamou-me do lado de lá do portão para anunciar de viva-voz a boa nova. Na parede rebocada e pintada de fresco, o novo nome foi aposto sobre o branco alvo, em ferro forjado negro: “LIMA”. Duas pipas e três mesas apareceram a decorar a entrada do café. Tudo pronto para o grande dia, portanto.
Ao chegar ao café, na segunda de manhã, já havia um grupo de fiéis lá dentro, e o Arnauld, a Sabina e a Alexandra cumprimentavam os recém-chegados de sorriso aberto e sentimento de dever cumprido. A vernissage foi um retumbante êxito: entre croquetes, fatias de bolo de laranja, galões e minis, o público apreciou a obra de arte, comentando em detalhe os materiais usados, a disposição dos espaços, não esquecendo nunca de enquadrar a peça na linha histórica da arte local. O café “Lima” é sem dúvida a nova obra-prima da fusion art azeitonenese: a forma tradicional do edifício manteve-se inalterada, mas foi convenientemente rebocada a cimento e pintada de branco; o limoeiro no topo das escadas foi podado; as barricas vieram dar à entrada um alegre toque germânico; os matraquilhos e as rifas foram-se, assim como as fraldas Lanidor e o Baygon para formigas, mas agora há um terminal multibanco muito chique e uma máquina de café reluzente; os bancos e mesas toscos do interior foram substituídos por cadeiras de ferro forjado e mesas de pedra; o pátio interior foi reaberto, prometendo noitadas de poesia francesa e fado corrido. Em suma, um primor de gentrificação suave, que alegra toda a gente, na aldeia e arredores. Só falta uma tabuleta a substituir o antigo “Aqui não se fia”: “Os críticos de arte contemporânea não são bem-vindos”.
 
Jornal de Azeitão, Setembro 2022
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Efigénia, santa africana

18/9/2022

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“Tradição cultural” é uma expressão comum e muito desgastada. O seu sentido deriva, ele próprio, de uma tradição cultural. Uma vez forjado, pela pena da antropologia oitocentista para qualificar a permanência temporal de usos e costumes, e em oposição às noções de modernidade e progresso, o seu sentido raramente foi sujeito a escrutínio ou revisão. É certo que o historiador Eric Hobsbawm introduziu em 1983 o conceito de “tradições inventadas”, para descrever situações em que novas práticas ou objectos são introduzidos numa dada comunidade reclamando uma continuidade ficcional com práticas ou objectos passados. Esta inovação veio provocar uma brecha na visão linear que opunha “tradição” e “modernidade”. Mas ainda assim, porque o enfoque de Hobsbawm era o debate sobre os processos de modernização, a essência da “tradição cultural” permaneceu intacta e inquestionada.
A ideia de “tradição cultural” foi essencial na criação de todo o aparelho legislativo e ideológico que a UNESCO veio a designar como “património intangível”. Não é que este equivalha àquela, mas entende-se que os processos de patrimonialização – de preservação induzida pelas autoridades estatais – se fundamentam na existência e na bondade das tradições culturais. 
Mas não será que as tradições estão sempre a ser (re)inventadas, e que a sua realidade se esfuma apenas quando é consciencializada? Se assim for, a patrimonialização cultural corresponde à sua sentença de morte. Há alguma razão para pensar que assim é, sobretudo quando tais processos de patrimonialização se tornam elementos de estratégias comerciais, muitas delas de promoção política do consumo turístico.
Os casos mais evidentes, em anos recentes, têm sido as candidaturas ao estatuto de património intangível (ou imaterial) da humanidade, da UNESCO, em que o dito “património intangível” se impôs como homónimo politicamente correcto, e comercialmente apelativo, da velha expressão “tradição cultural”. Declarar o fado, os cantares alentejanos ou o “saber fazer” trouxas de ovos como “património intangível” não serve para preservar tradições, mas para as ossificar e as subjugar à indústria turística.
Vem isto ao caso das minhas recentes pesquisas amadoras em torno do queijo de Azeitão, e sobretudo da curiosa inovação que é a produção, ainda experimental, de queijo “de Azeitão”, feito a partir do leite de cabra serpentina, na Quinta de Camarate. Já aqui referi (num texto publicado em Maio passado) o misterioso queijo das cabras serpentinas. Mas deixei de fora um dado curioso, que me tem suscitado algumas interrogações históricas admitidamente especulativas. 
O rebanho de cabras serpentinas (i.e., de Serpa) que produz o almejado leite cru vive e pasta numa pequena quinta à entrada de Setúbal. Ora, essa quinta tem um nome surpreendente: Quinta de Santa Efigénia. Digo surpreendente porque a memória desta santa é muito rarefeita em Portugal. Existe, claro, uma igreja de Santa Efigénia no Porto e outra em Penela. Um dos altares da igreja de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, é dedicado a Santa Efigénia e a Santo Eslabão. Outras ocorrências do seu culto são ainda mais esparsas e apagadas: uma pequena imagem de Santa Efigénia em terracota no Museu Municipal de Portalegre; duas estatuetas carmelitas representando São Eslabão e de Santa Efigénia na igreja do Carmo, em Faro. E pouco mais... No Brasil, pelo contrário, Santa Efigénia é muito popular desde o início do séc. XVIII, altura em que foi construída a igreja a ela dedicada em Ouro Preto, e em que se começaram, sob o seu patronato, a estabelecer diversas irmandades de escravos alforriados. Santa Efigénia foi uma princesa abissínia (ou, segundo outras fontes, núbia), convertida pelo apóstolo São Mateus; por seu lado, Santo Eslabão, rei de Axum no séc. VI, foi grande promotor do cristianismo em ambas as margens do Mar Vermelho. O culto destes santos, assim como o de São Benedito, foi um dos principais instrumentos da Igreja Católica no Brasil para converter os escravos africanos, em particular através de obras hagiográficas como: Os dois atlantes de Etiópia. Santo Elesbão, Imperador XLVII da Abissínia, advogado dos perigos do mar & Santa Ifigênia, Princesa da Núbia, publicado pelo frade carmelita José Pereira de Santana, entre 1735 e 1738.
A referência ao nome de Santa Efigénia numa quinta à entrada de Setúbal mereceria estudo histórico. Dadas as temperaturas estivais, optei por não o levar a cabo, limitando-me a notar algumas particularidades que poderão, ou não, ter alguma ligação entre si. Tal como aconteceu no Brasil, o culto dos santos Eslabão e Efigénia terá sido instrumental no processo de conversão de populações escravas e alforriadas de origem africana, em particular na Península de Setúbal e Alentejo. Na senda da descrição de populações descendentes de africanos no Vale do Sado, por José Leite de Vasconcelos, na sua Etnografia Portuguesa, os historiadores Isabel Castro Henriques e João Moreira da Silva publicaram o livro Os “Pretos do Sado”. História e Memória de uma Comunidade Alentejana de Origem Africana. Aí, referem-se especificamente às irmandades e confrarias religiosas do Vale do Sado como evidência do sucesso da conversão ao catolicismo dos muitos escravos e alforriados de origem africana para ali levados. A chamada Ribeira do Sado, faixa ribeirinha que liga Setúbal a Alcácer do Sal, era extremamente insalubre, devido à presença do mosquito anopheles, causador do paludismo ou febre terçã, o que terá suscitado o uso de mão de obra de escravos africanos, supostamente resistentes à doença, para trabalhar na agricultura e nas salinas. Por outro lado, diversas menções a africanos e mestiços em arquivos nacionais e locais, assim como alguns dados da toponímia azeitonense, como por exemplo o Pinhal de Negreiros, sugerem a possibilidade de o transporte de escravos para as plantações e salinas do Sado ter sido, pelo menos em parte, feito através da antiga estrada que ligava Almada a Setúbal.
Não custa imaginar que a Quinta de Santa Efigénia tenha recebido o nome devido à presença de mão de obra africana, ou eventualmente à existência de uma ermida que funcionava como sede de uma irmandade de antigos escravos africanos em Setúbal, ou até propriedade de família crioula africana. Especulações, eu sei, mas suportadas por inúmeros documentos de arquivo que comprovam a antiguidade da presença de populações africanas na Península de Setúbal, e pela evidência de que as tradições culturais, e em particular, religiosas, que se lhes encontram associadas estão longe de estar consciencializadas na nossa memória histórica actual. Por essa razão, esquecidas e apagadas como estão, têm escapado a ser patrimonializadas e, consequentemente, transformadas em instrumento de comércio – seja turístico, seja político. Com alguma sorte, ninguém que leia este texto cairá na tentação de valorizar a memória de Santa Efigénia.

Jornal de Azeitão, Junho 2022
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A Tragédia dos Comuns

30/5/2022

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A Quinta da Periquita, na Aldeia da Portela, hoje um “alojamento local” propriedade de investidores estrangeiros para uso de clientes também maioritariamente estrangeiros, não é propriamente um exemplo de quinta histórica ao contrário, por exemplo, da Quinta de Santo Amaro, da Quinta das Donas, ou do Casal do Bispo (a antiga Herdade da Infanta). O edifício foi reconstruído há pouco mais de 40 anos, pelo Juiz Francisco Rolão Preto, filho e homónimo do polémico monárquico integralista.
 
A quinta e o edifício em si não têm nada de particularmente notável, tirando a vista magnífica dos contrafortes da Serra da Arrábida. Para mim, uma parte do seu charme está na ligação indirecta a Rolão Preto pai. De cada vez que passo pela Estrada dos Barrancos, à saída do Largo da Portela, relembro-o, não tanto porque foi o fundador dos Camisas Azuis, o entusiasmado jovem de inclinações falangistas que conviveu com a família de Primo de Rivera, mas porque, enquanto fundador da Convergência Monárquica e posteriormente do Partido Popular Monárquico, foi um dos principais representantes do desditoso movimento comunitarista português. De facto, a mais interessante parte da sua obra literária é precisamente aquela que ele dedica à longa história do comunitarismo em Portugal e à defesa desse ideal.
 
Essa corrente silenciosa e grandemente silenciada pretende (ou pretendeu, porque hoje pouca coisa de discussão política corre ou sequer escorre em Portugal) reviver ideias e práticas seculares de organização social local de tendências colectivistas que se cristalizaram durante a Idade Média e foram progressivamente desarticuladas à medida que o Estado se centralizava e o Direito perdia o seu tertium genus, que era o direito comum para vantagem do binómio público/privado.
 
O direito ao uso comum de terras foi consagrado juridicamente nas Ordenações Manuelinas: para “os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras”, porque “proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e outros frutos”. Desde então, foi retrocedendo até praticamente desaparecer do Direito Civil durante o Estado Novo, ressurgindo timidamente na legislação posterior ao 25 de Abril de 1974.
 
No norte do país, como na Galiza, o uso comunitário dos baldios e a defesa da propriedade comunal está ainda viva, mas o facto de o poder autárquico se poder imiscuir na sua gestão tem resultado em infelizes atropelos ao direito comum, em benefício dos cofres de juntas de freguesia que cedem os baldios para, por exemplo, colocação de parques de eólicas em elevações ventosas. Sem estruturas, ideias ou pessoas que o defendam, o espaço do direito comunitário (que os ingleses designam como law of the commons, distinta da common law) é consumido pelo direito público e pelo direito privado.
 
A Serra da Arrábida está cheia de espaços baldios, de práticas comunitárias (ou pelo menos da sua memória). Mas, num mundo em que prevalecem os interesses públicos e privados, não podemos senão assistir saudosos à lenta morte trágica dos comuns. O caso, reportado nos jornais, da polémica em torno dos direitos comunitários no que respeita ao uso colectivo de espaços nas margens e interior da Herdade da Comenda (o parque das merendas junto à Ribeira da Ajuda, o acesso à praia, o caminho de Santiago) é claro sinal do estado comatoso em que se encontram hoje os ideais comunitaristas. A indignação popular contra as vedações instaladas pelo novo dono da Comenda, o fundo imobiliário Seven Properties, da Mirpuri Foundation, levou a que os setubalenses se concentrassem para gritar “A Comenda é nossa!” em 2019, numa manifestação em defesa do interesse comum. Mas rapidamente a autarquia se acaparou do processo, que a partir daí se transformou num jogo político no qual o direito público (nomeadamente o do embargo) tem digladiado contra o direito privado dos fundos de investimento turístico. E, por esta via, o direito dos comuns se vai esboroando até desaparecer, como uma praia sem areia na maré cheia.
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2022
 
 
 
 

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Grande 25 de Abril

30/5/2022

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Não há quase terra portuguesa onde o 25 de Abril não seja invocado, em largos, ruas e avenidas. Mais precisamente, contam-se 1.600 atribuições da data, e dos seus correlatos Movimento das Forças Armadas, Capitães de Abril e Revolução de Abril, no conjunto dos municípios portugueses. Apenas 20 concelhos, todos no norte do país, não o celebram na sua toponímia, entre eles Santa Comba Dão, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro e Proença-a-Nova. Há um modesto 25 April Close, em Oldham, na periferia leste de Manchester, uma  Avenue d'Avril 25, no bairro Woluwe-Saint-Lambert, em Bruxelas, um Calle 25 de Abril em Veracruz, no México.

Curiosidade enciclopédica, o 25 de Abril é celebrado em Portugal, naturalmente, mas também em Itália, como o dia da Libertação Nacional no final 2ª Guerra Mundial; na Austrália, Nova Zelândia, Tonga e Samoa, lembrando o dia em que os ANZAC desembarcaram em Galipoli, na Turquia; na Alemanha, como Dia da Árvore; no Egipto, como o Dia da Libertação do Sinai; na Coreia do Norte, como o Dia do Exército Popular; na Suazilândia, como o Dia da Bandeira Nacional; e no Cazaquistão, como o Dia do Futebol. As Nações Unidas celebram-no como o Dia Mundial da Malária e o Dia do ADN. Actualmente, o 25 de Abril já não é comemorado em Israel, onde a assinatura dos Acordos de Camp David, em 1982, deixou de ser motivo de júbilo, nem na Etiópia, porque a comemoração da devolução do Obelisco de Axum, em 2005, transportado para Roma pelo exército italiano em 1937, foi introduzida pelo governo liderado pelos tigrínios – que se encontram agora em guerra contra o novo poder em Adis Abeba.

Várias comemorações da Igreja ortodoxa caem falsamente no 25 de Abril: a eliminação de 13 dias em Fevereiro, aquando da adopção do calendário gregoriano na União Soviética, e a criação do calendário juliano revisto fizeram que várias comemorações de santos tenham passado para o dia 12 de Abril: São Basílio, o Confessor, Zenão, Bispo de Verona, Santo Isaac, o Sírio , os Mártires Mina, David e João, a Virgem Anfusa de Omónia,  Atanásia de Egina, bem como a comemoração do ícone Murom da Mãe de Deus.

Na Roma antiga, o festival da Robigalia realizava-se também a 25 de abril, em homenagem ao deus Robigus. Era um festival agrícola que tinha lugar na fronteira do Ager Romanus, num bosque que se situava ao longo da Via Claudia, dedicado à protecção dos campos cerealíferos; Verrius Flaccus refere que, além de vários jogos, o festival incluía um sacrifício do sangue e vísceras de um cachorro não desmamado.
Azeitão e Sesimbra concorrem para esta comemoração pública com aquela que é possivelmente uma das longas e mais estranhamente designadas avenidas do país. A Avenida 25 de Abril tem não menos de 31 quilómetros e liga o Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel à aldeia de Cabanas onde, entre a Farmácia Graça e as instalações do Grupo Popular Recreativo Cabanense, se metamorfoseia em Avenida Visconde do Tojal. É um topónimo que se acoplou à mais banal nomenclatura oficial das Estradas de Portugal: a Avenida 25 de Abril recobre boa parte da N379 (não confundir com a N379-1 que, junto à costa, liga a cimenteira da Secil a Casais da Serra).
​
Perguntar-me-ão qual o interesse de debitar aqui dados de Wikipedia. É simples: quis saber onde iam parar as águas das enxurradas que descem a Rua da Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense e que, devido à falta de escoamento (alguém poupou ali muito em sarjetas), vertem sobre as laterais destruindo muros e inundando o casario, nos meses de Janeiro e Fevereiro. Foi assim que fiquei a saber que esta descaracterizada artéria, em que os moradores consideram ser perfeitamente razoável estacionar sempre os carros em cima do passeio apesar de ela ser a mais larga e mais vazia das vias urbanas de Azeitão, termina na N379 ou, como o GoogleMaps me ensinou, na Avenida 25 de Abril. O assunto não tem de facto interesse nenhum, até porque, com os impactos do aquecimento global, as enxurradas de inverno parecem ser coisa do passado.
 
Jornal de Azeitão, Março 2022
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    Manuel joão ramos

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