MANUEL JOÃO RAMOS
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há uma mulher em azeitão

23/11/2022

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O defunto grupo eclético-pop Astrud, constituído pela dupla Manolo Martinez e Genís Segarra, é uma daquelas preciosidades espanholas que poucos portugueses conhecem ou apreciam. Com maestria e sarcasmo, misturavam referências do ye-ye dos anos 60 com new wave, brit-pop e música marginal espanhola. Irromperam em cena em 1997 com o álbum Mi fracasso personal e presentearam o público do país irmão durante 15 anos com êxitos como Todos nos parece uma mierda (2004), Algo cambió (2006), e Tu no existes (2007), até se eclipsarem em 2012 após uma breve associação com o Col.lectiu Brossa de Barcelona.
 
Em 2005, produziram um dos vídeo-clips mais curiosos da música popular contemporânea espanhola: o Hay um hombre en España que lo hace todo, legendado em mandarim, que segue um condutor de riquexó transportando turistas chineses em visita a uma Pequim ultra-moderna. A letra é inesquecível:
 
Hay un hombre que lo hace todo en España. Es el que te coge los bajos del pantalón, es el genio visionario que se inventó el Colacao, es el que que pone anchoas dentro de las aceitunas, es amante de la infanfa y lo es de más de uma. Traduce los artículos de Le Monde Diplomatique, es el que hace los masajes en Masajes a Mil, se inventa los debates que hacen en Antena 3, es cajero del Ikea, y es teniente coronel, es el que redacta y responde las encuestas, es el gilipollas que reparte las becas...
 
Desde que ouvi pela primeira vez esta canção, não consigo deixar de olhar para Portugal sem imaginar quem será o equivalente luso deste misterioso e fantástico personagem que, tal o Charlie Chaplin do Modern Times, tem por missão fazer funcionar o melhor e o pior, o mais corriqueiro e o mais singular, da sociedade espanhola. Porque tem de haver alguém responsável pelas nossas absurdidades: um alguém que coloca repentinos sinais de 40km numa auto-estrada, que envia notificações das finanças a mortos, que corrompe este ou aquele governante, que adia operações urgentes à vesícula, e que perde os processos do fundo de desemprego.
 
Assim no país. Mas e em Azeitão? Quem será a pessoa que por faz tudo nesta mescla de nostálgica desordem tardo-rural e periurbana a escassos trinta quilómetros da metrópole lisboeta? Para que tudo funcione e não funcione em Azeitão, para que tudo se passe bem e opere mal, há-de ter de haver um responsável irresponsável, um bode expiatório e um inspirador conspiratório. E, dadas as peculiares e tradicionais relações de género na região, esse homem há-de certamente ser uma mulher. É ela o génio, o artista, o visionário, que está por baixo, por detrás e em cima de tudo o que ocorre na vila e arredores.
 
É ela quem lava diligentemente os lençóis das quintas “da família”, que puxa o lustro das super-motas que vociferam nas noites de quarta-feira, que enrola as tortas de ovos e torce os esses de canela, que varre a entrada da Santa Casa e troca receitas no grupo de Facebook.
 
É ela que faz os itinerários do autocarro que não sai da garagem por falta de motorista, que camada-a-camada faz subir o alcatrão das ruas acima da calçada, que tortura as oliveiras com penteados bonsai, que alimenta gatos e ratazanas nos esconsos dos baldios.
 
É ela que entope as sarjetas no final do Verão, que rompe os canos que o piquete reparou, que faz crescer a erva nas bermas da estrada, que deixa os cães a ladrar no quintal da moradia enquanto limpa os trilhos pedestres da serra.
 
É ela que cose os botões das camisas de escuteiro do filho enquanto o marido e a amante visitam a sex shop do Brejo, que leva a filha à escola e deixa o carro sobre o passeio, que denuncia a vizinha à Guarda porque a vizinha a denunciou primeiro, e não fala à prima que ficou com as pratas da herança.
 
Alguém sabe onde ela pára? Eu gostava de a conhecer.
 
Jornal de Azeitão, Dezembro 2022

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cuidado com o sapo

23/11/2022

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É muito fácil dar a outrem o direito a ter um ponto de vista distinto e até oposto ao nosso. Muito mais difícil é dar ao ponto de vista de alguém precedência sobre o nosso. Isso só pode acontecer se conseguimos alterar o ponto de vista do outro para que se assemelhe ao nosso, ou então quando nos apropriamos do seu ponto de vista tornando-o nosso.
 
Ao longo de séculos, uma relação especial desenvolveu-se entre as comunidades sedentárias portuguesas e grupos de comerciantes e trabalhadores nómadas que se cria virem do Oriente, próximo ou longínquo (do noroeste da Índia, diz-se; do Egitpo, pensava-se). Embora estes grupos se autodenominassem como rom, receberam vários epítetos, geralmente com entoações depreciativas: zíngaros, manuches, caloms, ciganos. A história deste relacionamento é complexa e pouco clara, porque grande parte dela tem sido feita através de um jogo de percepções e contra-percepções que raramente foram tidas como merecedoras de registo escrito. Mas não será de todo infundado sugerir que foi neste relacionamento secular especial, feito de desconfiança mútua, desconhecimento e preconceito recíprocos, que muitos portugueses optaram por canalizar as suas pulsões xenófobas, etnocêntricas e porventura desumanizadoras. Os “ciganos” são o nosso outro preferido, sobretudo porque a comunidade rom desenvolveu discursos e práticas de autodefesa que assumem uma forma a uma vez confrontadora e oportunística, que pode por vezes ser profundamente desconcertante: reconhecendo a dificuldade de superar o estatuto de comunidade subalterna e excluída que lhe é atribuído exteriormente, não largam mão do seu direito a ser comunidade e reter teimosamente as suas marcas identitárias, que geralmente se expressam através de um arreigado conservadorismo cultural.
 
Tive uma vez uma longa conversa com o pai de uma amiga valenciana, decano de uma orgulhosa família gitana. Falou com grande admiração da força do tradicionalismo dos “ciganos” portugueses, notando que tendo estes, ao contrário das comunidades da Europa de Leste, perdido o conhecimento da língua e religião romani, mantinham ainda assim virtualmente intactas diversas tradições e instituições que os seus congéneres espanhóis, obviamente muito mais integrados socialmente, tinham há muito abandonado. Esta visão feita ao arrepio da imagem consolidada do gitano tradicional espanhol – muito por efeito da dignificação do flamenco como forma musical nacional – levanta um interessante véu sobre os efeitos identitários da exclusão social secular a que os “ciganos” portugueses têm sido submetidos.
 
Quem passeia por Azeitão não pode deixar de notar que os portões e muros de muitas moradias ostentam figuras de cerâmica vidrada representando sapos. Não é, como se depreende, uma especificidade da vila. Os sapos de louça são tão caraterísticos das casas e lojas portuguesas como os duendes dos jardins irlandeses, os laços amarelos das varandas norte-americanas, os deuses elefantes no subcontinente indiano, e os gatinhos de porcelana que abanam a pata direita na China. Menos famosos mundialmente que os pastéis de nata, já mereceram ainda assim reportagens do canal televisivo Al Jazeera.
 
Segundo a sabedoria popular e o Google, a colocação de figuras de sapos em montras e prateleiras de lojas, assim como em portões, muretes e relvados de moradias, é suposto afastar qualquer incauto membro da comunidade “cigana”, que terá um pavor irracional de sapos, na medida em que representam beng, uma figura diabólica, e são usados em rituais de magia negra. Não posso asseverar que todos os comerciantes e habitantes que dispõem figuras de sapos à vista de todos acreditam de facto que eles têm o poder de amuleto capaz de afastar alguém, assim como estou muito longe de crer que alguém entre em estado de pânico ao ver um anfíbio de porcelana pintada de verde. Mas, ao ouvir e ler ao longo dos anos tantos depoimentos de diversos concidadãos meus, posso confirmar que o diz que disse levou a uma convicção generalizada de que essa é a razão pela qual estes sapos vidrados proliferam em Portugal.
 
No entanto, é importante referir o seguinte, para melhor enquadrar a questão dos sapos e da xenofobia lusa. A literatura enciclopédica tardo-romana e medieval associa regularmente os sapos a práticas de feitiçaria, a malefícios, nomeadamente devido à crença de que cuspiam veneno. Os bestiários, que não distinguiam os anfíbios dos répteis, descreviam-nos como animais diabólicos, mas que, sendo terráqueos e frios como as salamandras, a sua pele e ossos podiam ser, secos, usados como protecção contra os efeitos do calor ou ataques de animais. Tal como acontecia com certas serpentes lendárias, imaginava-se que guardavam na cabeça uma pedra preciosa que podia ser usada como antídoto contra envenenamento. As recolhas de folclore europeu também referem que, sendo tradicional certas mulheres romani praticarem bruxaria e adivinhação, e usarem sapos em encantamentos e em curas medicinais, foi por extensão criada uma ligação entre o receio de sapos e a desconfiança em relação à comunidade rom.
 
O antropólogo James George Frazer, que dedicou muitas páginas ao estudo do pensamento mágico, falava da lei do contágio segundo a qual uma crença psicológica de que, quando duas pessoas ou coisas entram em contacto, uma ligação persiste, cujos efeitos maléficos só poderão ser anulados através de rituais de purificação ou de esconjuro, ou pela utilização de amuletos. Os sapos de louça poderiam, nesta perspectiva, ser interpretados como fetiches que, representando um animal associado aos rom, teria o poder de enfraquecer os poderes maléficos que lhes são atribuídos. No entanto, estou mais tentado a ver os sapos de louça como subtil manifestação da capacidade humana para criar e manter mal-entendidos. Os portugueses estabeleceram um conjunto de associações confusas entre crenças tradicionais: entre poderes diabólicos e sapos, entre sapos e a prática de bruxaria, entre bruxaria e o povo rom, e acabaram por acreditar que os rom tinham, por misterioso contágio, adquirido o medo de sapos que era anteriormente o medo dos portugueses. O uso de sapos de louça para afastar “ciganos” segundo a crença de que eles teriam medo de sapos reais tornou-se num sinal claro de que quem os coloca em portas de casa e prateleiras de loja tem medo de “ciganos”. Assim, uma pessoa a quem é atribuído o epíteto de “cigano”, ao ver um sapo de louça numa casa ou loja, fica a saber que o seu proprietário é medroso e, porque quem tem medo se pode tornar violento, prefere não entrar para não ser sujeito à agressão por palavras ou actos xenófobos.
 
Que fique claro: não pretendo com este texto convencer nenhum leitor, nem espero ser convencido a colocar sapos de louça no portão de minha casa.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2022
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