Em 2005, produziram um dos vídeo-clips mais curiosos da música popular contemporânea espanhola: o Hay um hombre en España que lo hace todo, legendado em mandarim, que segue um condutor de riquexó transportando turistas chineses em visita a uma Pequim ultra-moderna. A letra é inesquecível:
Hay un hombre que lo hace todo en España. Es el que te coge los bajos del pantalón, es el genio visionario que se inventó el Colacao, es el que que pone anchoas dentro de las aceitunas, es amante de la infanfa y lo es de más de uma. Traduce los artículos de Le Monde Diplomatique, es el que hace los masajes en Masajes a Mil, se inventa los debates que hacen en Antena 3, es cajero del Ikea, y es teniente coronel, es el que redacta y responde las encuestas, es el gilipollas que reparte las becas...
Desde que ouvi pela primeira vez esta canção, não consigo deixar de olhar para Portugal sem imaginar quem será o equivalente luso deste misterioso e fantástico personagem que, tal o Charlie Chaplin do Modern Times, tem por missão fazer funcionar o melhor e o pior, o mais corriqueiro e o mais singular, da sociedade espanhola. Porque tem de haver alguém responsável pelas nossas absurdidades: um alguém que coloca repentinos sinais de 40km numa auto-estrada, que envia notificações das finanças a mortos, que corrompe este ou aquele governante, que adia operações urgentes à vesícula, e que perde os processos do fundo de desemprego.
Assim no país. Mas e em Azeitão? Quem será a pessoa que por faz tudo nesta mescla de nostálgica desordem tardo-rural e periurbana a escassos trinta quilómetros da metrópole lisboeta? Para que tudo funcione e não funcione em Azeitão, para que tudo se passe bem e opere mal, há-de ter de haver um responsável irresponsável, um bode expiatório e um inspirador conspiratório. E, dadas as peculiares e tradicionais relações de género na região, esse homem há-de certamente ser uma mulher. É ela o génio, o artista, o visionário, que está por baixo, por detrás e em cima de tudo o que ocorre na vila e arredores.
É ela quem lava diligentemente os lençóis das quintas “da família”, que puxa o lustro das super-motas que vociferam nas noites de quarta-feira, que enrola as tortas de ovos e torce os esses de canela, que varre a entrada da Santa Casa e troca receitas no grupo de Facebook.
É ela que faz os itinerários do autocarro que não sai da garagem por falta de motorista, que camada-a-camada faz subir o alcatrão das ruas acima da calçada, que tortura as oliveiras com penteados bonsai, que alimenta gatos e ratazanas nos esconsos dos baldios.
É ela que entope as sarjetas no final do Verão, que rompe os canos que o piquete reparou, que faz crescer a erva nas bermas da estrada, que deixa os cães a ladrar no quintal da moradia enquanto limpa os trilhos pedestres da serra.
É ela que cose os botões das camisas de escuteiro do filho enquanto o marido e a amante visitam a sex shop do Brejo, que leva a filha à escola e deixa o carro sobre o passeio, que denuncia a vizinha à Guarda porque a vizinha a denunciou primeiro, e não fala à prima que ficou com as pratas da herança.
Alguém sabe onde ela pára? Eu gostava de a conhecer.
Jornal de Azeitão, Dezembro 2022