MANUEL JOÃO RAMOS
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A formiga à chuva

21/3/2025

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“A nova sensação da Internet é um ‘drone’ da Marinha que fez ‘plof’”. Era este o título da notícia d’O Público que, a 18 de Abril de 2014, dava conta da aparentemente pouco auspiciosa estreia do Tekever AR4 Light Ray, o primeiro veículo aéreo não tripulado da Marinha portuguesa na base naval do Alfeite. A segunda tentativa foi bem-sucedida e o então ministro da defesa Aguiar Branco “terá gostado do que viu”, prevendo mesmo um futuro de sucesso para o “drone” militar português.
Certamente que o ministro da altura, agora presidente da Assembleia da República, não antecipou que, quase exactamente 10 anos depois, dois drones AR3 VTOL da mesma empresa Tekever viriam a protagonizar um duplo ataque a estações de radar de alerta antecipado do sistema de defesa estratégica nuclear da Federação Russa, em Armavir e em Orsk, no sul do país. E quase ninguém poderia também prever que, após o mediático falhanço do primeiro lançamento do AR4 nos idos de 2014, um tão profundo manto de silêncio viesse pousar sobre o temerário (ou insensato) sucesso dos AR3 na guerra que opõe hoje a Rússia à Nato por interposta Ucrânia.
Ao desabilitar esses dois radares, o ataque dos “drones” teve como consequência cegar momentaneamente a parte do complexo estratégico nuclear russo que cobre o território iraniano e a base naval norte-americana no Golfo Pérsico. O ministério da defesa ucraniano assumiu de imediato, e orgulhosamente, o feito, mas sem se pronunciar sobre a irrelevância do ataque no que respeita aos níveis táctico e operacional do conflito (os radares – de longuíssimo alcance – não têm qualquer utilidade militar no campo de batalha ucraniano). E também não se pronunciou de todo sobre o facto de a programação e operação dos drones ter sido feita por especialistas militares britânicos, de a tecnologia AI que os conduziu até aos alvos ser norte-americana, e de a sua manufactura ser portuguesa.
Nenhuma destas informações é propriamente secreta ou confidencial. O ataque, as potencialidades dos “drones”, e a nacionalidade dos operadores são descritas em publicações internacionais dedicadas a assuntos militares. Também não é segredo que a fábrica da Tekever se situa nas Caldas da Rainha, que a sua sede fica num escritório partilhado no Largo do Duque de Cadaval, aos Restauradores, e que a empresa é não só fornecedora oficial da Marinha portuguesa, mas também do Ministério da Defesa britânico. Se até eu, que de jornalismo de investigação nada sei, consigo ter acesso a estas informações públicas, por que razão não foi este óbvio protagonismo luso no campo da alta tecnologia militar notícia de abertura de todos os telejornais nacionais no início de Maio passado?
Lê-se na página internet do Conselho Europeu de Relações Estrangeiras, onde se detalham as implicações da doutrina de dissuasão nuclear russa, que “o parágrafo 19c (da doutrina) enuncia que a Rússia retaliará usando armas nucleares contra um ataque convencional que desabilite as suas forças nucleares ou a sua estrutura de comando: esta provisão emula a postura nuclear norte-americana revista em 2018”. Tem sido deixado muito claro, nestes últimos tempos, pela presidência russa, e pelos seus ministros da defesa e dos negócios estrangeiros, que ataques a alvos críticos russos provenientes da Ucrânia que impliquem operação do armamento por parte de intervenientes de países ocidentais não os exima das responsabilidades e das suas consequências. Poderíamos discutir se se trata, por parte das autoridades russas, de uma ameaça ou de um alerta, mas pouco importa: o relevante é que a potencialidade, mesmo que mínima, de um tal acto causar um confronto nuclear de efeitos absolutamente devastadores para toda a humanidade merece estar sempre presente nas nossas consciências e que, para que isso, as nossas consciências não devem ser mantidas em total ignorância.
Temos, portanto, uma empresa portuguesa dedicada ao fabrico de “drones” de longo alcance e grande autonomia, listada como fornecedora oficial do ministério da defesa português que, em parceria com a indústria de defesa norte-americana e com o dispositivo operacional britânico na Ucrânia se encontra envolvida num duplo ataque das forças armadas ucranianas a instalações críticas do dispositivo nuclear estratégico da primeira potência nuclear do mundo. Seria risível o catarro da formiga, não tivesse o assunto os contornos de uma gravidade trágica. Há em Portugal, tradicionalmente, um certo embandeirar em arco com façanhas de gosto questionável e de efeitos imprevisíveis: a estalada fundadora de um filho na sua mãe, uma santa que transforma rosas em pão e pelo caminho destrói o sistema comunitário das irmandades do Espírito Santo, um navegador de dobra cabos da Boa Esperança e bombardeia indianos incautos para obter vantagens económicas, um almirante que concebe um plano para, em aliança com o soberano cristão etíope, tomar Meca e destruir a Caaba (o símbolo mais sagrado da religião muçulmana), o anúncio da chegada do Quinto Império comandado por um brangantino, um rei que declara a independência de uma colónia para evitar o fim do tráfico atlântico de escravos, uma pastorinha portadora de segredos geo-estratégicos... E, pelo meio, uma longa história entretecida de vassalagens às elites imperiais britânicas.
Gostamos de imaginar que vivemos alheados dos males do mundo, num poético pequeno “jardim à beira-mar plantado”, como cantou Tomás Ribeiro. Mas o refrão do “orgulhosamente sós” deixou de capitar há muito, e as guerras “do Ultramar” não puseram um ponto final na nossa costela bélica: participámos na guerra contra a Sérvia, envolvemo-nos na invasão e ocupação do Iraque e do Afeganistão, intervimos na Líbia e no Sahel, e agora, por via das nossas auto-impostas obrigações como membros da OTAN, estamos a ser, “como sonâmbulos”, engajados numa guerra imensamente complexa sem nos autorizarmos um debate infundido por um mínimo de sanidade. Mas, se apelarmos à musa da história, percebemos tudo: a noção de debate são, crítico, estruturado, consequente, é tão estranha ao carácter português como os alimentos o são ao estômago por onde passam. Por isso, estando em causa perguntarmo-nos sobre o bom senso de participarmos em ataques imprudentes a instalações críticas de um país que demonizamos instintivamente, respondemos metendo a viola no saco, deixando correr o marfim e tentando passar entre os pingos da chuva, na esperança de que ela não venha a ser demasiado radioactiva.

O Público, 13 Junho 2024

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A suportável irrealidade da guerra

4/6/2024

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Mais quilómetro, menos quilómetro, a Faixa de Gaza tem uma extensão equivalente ao território que, de norte a sul, vai do estuário do Tejo à linha de costa da Arrábida e, de oeste para leste, dos areais da Costa da Caparica ao curso da Ribeira de Coina. Mais ou menos os mesmos 365 quilómetros quadrados. Não é difícil imaginar que dois milhões de pessoas possam viver nesta fatia da Margem Sul do estuário do Rio Tejo. Têm ambas uma longa linha de praias, a mesma hidrografia escassa, e uma orografia parecida – se exceptuarmos as arribas sedimentares da serra da Arrábida. E, claro, a sul, Gaza confina com o vasto deserto do Sinai e não a imensidão do oceano Atlântico.
 
Imaginemos que eram largadas, em três semanas, 30 mil bombas e mísseis sobre esta faixa da Margem Sul, que era mobilizado em seu redor um número de soldados equivalente à capacidade de cinco estádios do Benfica, mortas 10 mil pessoas e feridas outras 20 mil. Independentemente das emoções políticas, do horror ético e da mobilização social que um tal acontecimento catastrófico suscitaria, não custa pensar que as rotinas da vida em Lisboa ou em Alcoentre – a escassos quilómetros da fronteira da Ribeira de Coina –, continuariam a decorrer com normalidade. Malgrado o incómodo ruído dos bombardeamentos e o desagradável cheiro da pólvora, dos incêndios e dos corpos calcinados, os cafés e restaurantes para além dessa faixa continuariam abertos, as escolas continuariam a funcionar, e o combustível continuaria disponível nas estações de serviço.
 
O sentimento de irrealidade da guerra não seria muito distinto daquele que um europeu sente hoje face à tragédia de Gaza. Seria também um sentimento de impotência e de alheamento, independentemente da solidariedade, ou ausência dela, para com as vítimas do desastre humanitário. Não se trata de uma questão de insensibilidade porque “não é nada comigo”, mas de necessária compartimentação mental entre, por um lado, difusas emoções e racionalizações políticas e, por outro, as prementes necessidades de prover o dia-a-dia.
 
Estive, há anos, a poucos quilómetros de uma frente de batalha no norte da Etiópia. Vi hospitais sobrelotados, gente mutilada, mobilizações apressadas de milhares de jovens arrancados das famílias, e o crocitar das armas para além do horizonte. E, aí, confrontei-me com esta mesma irrealidade e com esta mesma dissonância cognitiva entre a terrível violência da guerra e a normalidade possível da vida do lado de fora do perímetro da batalha. As crianças continuavam a ir para a escola, as lojas continuavam abertas, e as rotinas diárias adaptavam-se às inúmeras restrições impostas – dos blackouts aos cortes de água, das estradas cortadas à penúria de mantimentos, do choro e da raiva individual à lavagem cerebral colectiva levada a cabo pela propaganda governamental.
 
Quem, em Lisboa, no Cairo ou em Reiquiavique, se emociona hoje com a tragédia de Gaza porque ela entra pelos olhos dentro graças à profusão de notícias provenientes de múltiplas plataformas de comunicação social, tem normalmente a quase certeza de que ela não altera os seus ciclos de vida diária (pelo menos, até ao dia em que sim). Poderá racionalizar e emitir opiniões, manifestar a sua indignação ou não, mas, não havendo transbordar do perímetro ritual da guerra para a sua zona de conforto, não deixará de estar atento às promoções do supermercado da sua vizinhança.
 
Tal como podemos duvidar que uma folha de árvore tenha caído se ninguém a vir cair, desdenhamos das tragédias que ocorrem todos os dias quando a comunicação social não nos oferece num prato de morbidez o testemunho da sua violência. Por extraordinário passe de magia, o horror de Gaza (complementado pelo horror menor da Cisjordânia) eclipsou nas nossas mentes o horror da Ucrânia. Mas esses horrores existem para nós porque no-los injectam. Todos os outros simultâneos horrores que pontuam a vida humana no planeta não têm direito à nossa comiseração ou sequer ao nosso reconhecimento.
 
Agora que o ano de 2023 se aproxima do seu termo, o inefável manto da irrealidade desce sobre várias outras guerras e conflitos violentos silenciados e, por isso, desconhecidos dos europeus. Não é concedido nem um momento de pânico moral pelos mais de 10 mil mortos em Myanmar, no Magrebe e no Sahel, no México, na Etiópia ou no Sudão; nem para os menos de 10 mil mortos na Colômbia, no Afeganistão, na Somália, na Nigéria, no Congo, no Iraque, no Sudão do Sul, na Síria, no Iémen ou no Haiti. Tudo porque morreram sem reportagens em directo, e longe da tribalização geoestratégica.
 
O Público, 6 Novembro 2023

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O cheiro da pólvora

4/6/2024

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Mais quilómetro, menos quilómetro, a Faixa de Gaza tem a mesma extensão que o território que, de norte a sui, vai do estuário do Tejo à linha de costa da Arrábida e, de oeste para leste, dos areais da Costa da Caparica ao curso da Ribeira de Coina. Mais ou menos os mesmos 365 quilómetros quadrados. Não é difícil imaginar dois milhões de pessoas nesta fatia da Margem Sul. Mesma linha de praias, mesma hidrografia, e mesma orografia – se exceptuarmos as arribas sedimentares da serra da Arrábida. Para sul, num caso, a vastidão do deserto do Sinai e, no outro, a imensidão do oceano Atlântico.
 
Imaginemos que eram largadas, em três semanas, 30 mil bombas e mísseis sobre esta faixa da Margem Sul, mobilizado em seu redor um número de soldados equivalente à capacidade de cinco estádios do Benfica, mortas 10 mil pessoas e feridas outras 20 mil. Independentemente das emoções políticas, do horror ético e da mobilização social que um tal acontecimento catastrófico teria, não custa pensar que as rotinas da vida em Azeitão – a escassos quilómetros da fronteira da Ribeira de Coina –, continuariam a decorrer com normalidade. Malgrado o incómodo ruído dos bombardeamentos e o cheiro da pólvora, dos incêndios e dos corpos calcinados, os cafés e restaurantes para cá dessa faixa continuariam abertos, as escolas continuariam a funcionar, e o combustível continuaria disponível nas estações de serviço.
 
O sentimento de irrealidade da guerra não seria muito distinto daquele que um azeitonense sente hoje, face à tragédia de Gaza. Seria igualmente um sentimento de impotência e alheamento, independentemente da solidariedade ou ausência dela perante as vítimas e o desastre humanitário. Não se trata de uma questão de “não é nada comigo”, mas de necessária compartimentação mental entre difusas emoções e racionalizações políticas e prementes necessidades de prover o dia-a-dia.
 
Estive, há anos, a poucos quilómetros de uma frente de batalha no norte da Etiópia. Vi hospitais sobrelotados, gente mutilada, mobilizações apressadas de milhares de jovens arrancados das famílias, e o crocitar das armas para lá do horizonte. E, aí, confrontei-me com esta mesma irrealidade e esta mesma dissonância cognitiva entre a terrível violência da guerra e a normalidade possível da vida do lado de fora do seu perímetro. As crianças continuavam a ir para a escola, as lojas continuavam abertas, e as rotinas diárias adaptavam-se às inúmeras restrições impostas – dos black-outs aos cortes de água, das estradas cortadas à penúria de mantimentos, do choro e da raiva individual à lavagem cerebral colectiva da propaganda governamental.
 
Quem, em Azeitão, no Cairo ou em Reiquiavique, se emociona hoje com a tragédia de Gaza – seja a poucos ou a muitos quilómetros de distância –, porque ela entra pelos olhos dentro graças à profusão de notícias provenientes de múltiplas plataformas de comunicação social, tem normalmente a quase certeza de que ela não altera os seus ciclos de vida diária. Poderá racionalizar e emitir opiniões, manifestar a sua indignação ou não, mas, não havendo transbordar do perímetro ritual da guerra para a sua zona de conforto, não deixará de estar atento às promoções do supermercado da sua vizinhança.
 
Tal como podemos duvidar que uma folha de árvore tenha caído se ninguém a vir cair, desdenhamos das tragédias que ocorrem todos os dias quando a comunicação social não nos oferece num prato de morbidez o testemunho da sua realidade. Por extraordinário passe de magia, o horror de Gaza (complementado pelo horror menor da Cisjordânia) eclipsou nas nossas mentes o horror da Ucrânia. Mas esses horrores existem para nós porque no-los injectam. Todos os outros simultâneos horrores que pontuam a vida humana no planeta não têm direito à nossa comiseração ou sequer ao nosso reconhecimento.
 
Nota: no ano de 2023, estes foram os conflitos violentos de que resultaram mais de 10 mil mortes: Myanmar, Magrebe e Sahel, México, Ucrânia, Etiópia e Sudão. Os conflitos de que resultaram até 10 mil mortes foram: Colômbia, Afeganistão, Somália, Nigéria, Congo, Iraque, Sudão do Sul, Síria, Iémen e Haiti.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2023​
 

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esta terra não é para estranhos

3/8/2023

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Li há pouco uma curiosa (auto)reflexão sobre o carácter russo.  A tradução dizia mais ou menos isto:
 
Quando as pessoas no Ocidente falam dos russos e da Rússia, citam frequentemente a célebre frase de Churchill: “A Rússia é uma charada, envolvida em mistério, dentro de um enigma”. É uma citação elucidativa: a Rússia era e é incompreensível para um ocidental.
Como lutavam os europeus na Idade Média? O meu primo Ludovico, proprietário da quinta vizinha, embebedou-se e chamou-me idiota. Não posso aceitar o insulto, por isso junto os meus quatro vassalos, distribuo paus e forquilhas aos habitantes do meu domínio, e parto em guerra contra ele. Hurra!... Vitória. E, quando estou prestes a cortar a cabeça do maldito Ludovico, o bispo meu primo, as minhas tias e os meus tios, e mais não sei quantas pessoas intervêm, dizendo que a minha resposta não é proporcional – ele só me chamou imbecil. Em resultado, eu não mato o Ludovico.
Esta moderação feita por parentes da classe dirigente funcionava a todos os níveis, dos conflitos entre quintas vizinhas às guerras entre estados. Daí, um estranho culto da proporcionalidade desenvolveu-se no Ocidente: se eu te esfaqueio mas não te mato, tu não me cortas a cabeça.
Os eslavos e, em particular, os russos nunca lutaram assim. A guerra era “ou nós ou eles”. Sem alternativas, era uma guerra com os infiéis, sem “proporcionalidade”. Era uma guerra pela sobrevivência. Em resultado, os eslavos desenvolveram uma tradição diametralmente oposta: ou não reagir de todo ou então resolver o problema de uma vez por todas. A transição da primeira opção para a segunda é instantânea, sem aviso, definitiva e irrevogável. A linha vermelha, ela própria, para além da qual está o “matem os sobreviventes e tenham um bom dia” variava, do “é para já” dos polacos ao “quando o sol se transformar num gigante vermelho” dos búlgaros.
Os russos estão algures no meio e, para quem nasceu na tradição cultural ocidental, este “meio” é precisamente “uma charada, envolvida em mistério, dentro de um enigma”. O ocidental não se consegue impedir de espicaçar o urso com um pau para ver onde está a linha vermelha. E fará isto apesar de todas as histórias que o seu avô lhe contou sobre o seu próprio avô, que também espicaçou o urso em Estalinegrado ou em Borodino.
A este respeito, o Ocidente não é nunca capaz de aprender. A memória histórica da Idade Média é mais forte que a memória do que se passou nos últimos três séculos. (@Slaviangrad)
 
Em Sesimbra, era comum um pexito dizer que as gentes do Campo se batem por um metro quadrado do terreno do vizinho, que respondem violentamente aos seus abusos, embora estejam sempre prontos a cobiçar, eles próprios, a sua propriedade. O espírito do mar não permite estes luxos. No mar é fácil morrer porque a natureza é infinitamente mais inclemente que os humanos. Por isso, talvez, os pescadores apreciam mais a vida e respeitam mais o outro. Não que não haja competição pelo bem comum que é o peixe, mas precisamente o bem é comum, não privado.
 
O Campo é agora, em grande medida, a Vila. Ainda assim, como dizia o russo, a memória dos tempos antigos é muito forte, encastra-se, encasqueta-se, como uma marca indelével. Hoje em dia, na Vila, os conflitos do metro quadrado de terreno passaram para as moradias geminadas sem que a memória do comportamento ancestral se perca. Abusa-se de novas maneiras: subindo muros e construindo anexos ilegais, disfarçando puxadas de água, fazendo barulho, estacionando o carro sobre o passeio público, fazendo cavalinhos em cima de motas, deixando os cães a ladrar dia e noite no quintal. O resultado é uma constante tensão colectiva, nascida de um sobranceiro desinteresse pelo direito privado dos outros e pelo bem comum que são os espaços públicos (e pelo ar que se respira).
 
Quem vem de fora desespera com esta maneira de viver agressiva e disfuncional. Ao fim de algum tempo a tentar socializar e conviver nesta Vila em permanente estado de bulha de aldeia de gauleses, acaba por desistir e rumar a outras paragens. Mas há que ver as coisas pelo lado positivo: é bom para o comércio imobiliário porque há sempre casas à venda para o próximo forasteiro incauto, e garante que a tradição cultural não se perde. Quem não gosta dela, que vá para Sesimbra.
 
 
 Jornal de Azeitão, Junho 2023​
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cuidado com o sapo

23/11/2022

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É muito fácil dar a outrem o direito a ter um ponto de vista distinto e até oposto ao nosso. Muito mais difícil é dar ao ponto de vista de alguém precedência sobre o nosso. Isso só pode acontecer se conseguimos alterar o ponto de vista do outro para que se assemelhe ao nosso, ou então quando nos apropriamos do seu ponto de vista tornando-o nosso.
 
Ao longo de séculos, uma relação especial desenvolveu-se entre as comunidades sedentárias portuguesas e grupos de comerciantes e trabalhadores nómadas que se cria virem do Oriente, próximo ou longínquo (do noroeste da Índia, diz-se; do Egitpo, pensava-se). Embora estes grupos se autodenominassem como rom, receberam vários epítetos, geralmente com entoações depreciativas: zíngaros, manuches, caloms, ciganos. A história deste relacionamento é complexa e pouco clara, porque grande parte dela tem sido feita através de um jogo de percepções e contra-percepções que raramente foram tidas como merecedoras de registo escrito. Mas não será de todo infundado sugerir que foi neste relacionamento secular especial, feito de desconfiança mútua, desconhecimento e preconceito recíprocos, que muitos portugueses optaram por canalizar as suas pulsões xenófobas, etnocêntricas e porventura desumanizadoras. Os “ciganos” são o nosso outro preferido, sobretudo porque a comunidade rom desenvolveu discursos e práticas de autodefesa que assumem uma forma a uma vez confrontadora e oportunística, que pode por vezes ser profundamente desconcertante: reconhecendo a dificuldade de superar o estatuto de comunidade subalterna e excluída que lhe é atribuído exteriormente, não largam mão do seu direito a ser comunidade e reter teimosamente as suas marcas identitárias, que geralmente se expressam através de um arreigado conservadorismo cultural.
 
Tive uma vez uma longa conversa com o pai de uma amiga valenciana, decano de uma orgulhosa família gitana. Falou com grande admiração da força do tradicionalismo dos “ciganos” portugueses, notando que tendo estes, ao contrário das comunidades da Europa de Leste, perdido o conhecimento da língua e religião romani, mantinham ainda assim virtualmente intactas diversas tradições e instituições que os seus congéneres espanhóis, obviamente muito mais integrados socialmente, tinham há muito abandonado. Esta visão feita ao arrepio da imagem consolidada do gitano tradicional espanhol – muito por efeito da dignificação do flamenco como forma musical nacional – levanta um interessante véu sobre os efeitos identitários da exclusão social secular a que os “ciganos” portugueses têm sido submetidos.
 
Quem passeia por Azeitão não pode deixar de notar que os portões e muros de muitas moradias ostentam figuras de cerâmica vidrada representando sapos. Não é, como se depreende, uma especificidade da vila. Os sapos de louça são tão caraterísticos das casas e lojas portuguesas como os duendes dos jardins irlandeses, os laços amarelos das varandas norte-americanas, os deuses elefantes no subcontinente indiano, e os gatinhos de porcelana que abanam a pata direita na China. Menos famosos mundialmente que os pastéis de nata, já mereceram ainda assim reportagens do canal televisivo Al Jazeera.
 
Segundo a sabedoria popular e o Google, a colocação de figuras de sapos em montras e prateleiras de lojas, assim como em portões, muretes e relvados de moradias, é suposto afastar qualquer incauto membro da comunidade “cigana”, que terá um pavor irracional de sapos, na medida em que representam beng, uma figura diabólica, e são usados em rituais de magia negra. Não posso asseverar que todos os comerciantes e habitantes que dispõem figuras de sapos à vista de todos acreditam de facto que eles têm o poder de amuleto capaz de afastar alguém, assim como estou muito longe de crer que alguém entre em estado de pânico ao ver um anfíbio de porcelana pintada de verde. Mas, ao ouvir e ler ao longo dos anos tantos depoimentos de diversos concidadãos meus, posso confirmar que o diz que disse levou a uma convicção generalizada de que essa é a razão pela qual estes sapos vidrados proliferam em Portugal.
 
No entanto, é importante referir o seguinte, para melhor enquadrar a questão dos sapos e da xenofobia lusa. A literatura enciclopédica tardo-romana e medieval associa regularmente os sapos a práticas de feitiçaria, a malefícios, nomeadamente devido à crença de que cuspiam veneno. Os bestiários, que não distinguiam os anfíbios dos répteis, descreviam-nos como animais diabólicos, mas que, sendo terráqueos e frios como as salamandras, a sua pele e ossos podiam ser, secos, usados como protecção contra os efeitos do calor ou ataques de animais. Tal como acontecia com certas serpentes lendárias, imaginava-se que guardavam na cabeça uma pedra preciosa que podia ser usada como antídoto contra envenenamento. As recolhas de folclore europeu também referem que, sendo tradicional certas mulheres romani praticarem bruxaria e adivinhação, e usarem sapos em encantamentos e em curas medicinais, foi por extensão criada uma ligação entre o receio de sapos e a desconfiança em relação à comunidade rom.
 
O antropólogo James George Frazer, que dedicou muitas páginas ao estudo do pensamento mágico, falava da lei do contágio segundo a qual uma crença psicológica de que, quando duas pessoas ou coisas entram em contacto, uma ligação persiste, cujos efeitos maléficos só poderão ser anulados através de rituais de purificação ou de esconjuro, ou pela utilização de amuletos. Os sapos de louça poderiam, nesta perspectiva, ser interpretados como fetiches que, representando um animal associado aos rom, teria o poder de enfraquecer os poderes maléficos que lhes são atribuídos. No entanto, estou mais tentado a ver os sapos de louça como subtil manifestação da capacidade humana para criar e manter mal-entendidos. Os portugueses estabeleceram um conjunto de associações confusas entre crenças tradicionais: entre poderes diabólicos e sapos, entre sapos e a prática de bruxaria, entre bruxaria e o povo rom, e acabaram por acreditar que os rom tinham, por misterioso contágio, adquirido o medo de sapos que era anteriormente o medo dos portugueses. O uso de sapos de louça para afastar “ciganos” segundo a crença de que eles teriam medo de sapos reais tornou-se num sinal claro de que quem os coloca em portas de casa e prateleiras de loja tem medo de “ciganos”. Assim, uma pessoa a quem é atribuído o epíteto de “cigano”, ao ver um sapo de louça numa casa ou loja, fica a saber que o seu proprietário é medroso e, porque quem tem medo se pode tornar violento, prefere não entrar para não ser sujeito à agressão por palavras ou actos xenófobos.
 
Que fique claro: não pretendo com este texto convencer nenhum leitor, nem espero ser convencido a colocar sapos de louça no portão de minha casa.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2022
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MARODERS e Pelourinhos

6/10/2022

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​Em 26 de Outubro de 2019, durante uma mediática visita à frente de batalha no Donbass, o recentemente eleito presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, envolveu-se numa dura troca de palavras com Denys Yantar, um veterano do Batalhão Azov, na vila de Zolote, no Oblast de Luhansk. O Batalhão, que nessa altura estava em vias de ser incorporado na estrutura regular de defesa territorial, lançou a campanha pública “Não à capitulação”, com o declarado objectivo de sabotar as incipientes iniciativas de pacificação entre o governo ucraniano e os revoltosos de Donetsk e Luhansk.
 
O momento em que Zelensky, surgindo pela primeira vez perante as câmaras em uniforme militar, implorava a Yantar que depusesse as armas foi mostrado na televisão nacional ucraniana, e causou uma tempestade de comentários e ameaças nas redes sociais do país. Yantar tinha previamente insinuado perante Zelensky que uma rebelião estava a ser preparada caso ele não desistisse de buscar soluções negociadas para o fim dos combates no Donbass, a promessa eleitoral que lhe tinha garantido a eleição, meses antes. Este episódio enterrou simbolicamente os chamados Acordos de Minsk, e esteve na origem de uma viragem de 180 graus na postura política de Zelensky. Mais tarde, o batalhão Azov acabou por se retirar de Zolote e concentrar-se em Mariupol, mas, como os então revoltados os meios de comunicação ocidentais não deixaram de notar, a guerra no Donbass intensificou-se dramaticamente.
 
Os discursos dos nacionalistas contra o jovem presidente tornaram-se cada vez mais inflamatórios. No seu canal Youtube, Andriy Biletsky, o líder do Batalhão Azov e do seu ramo político, o Corpo Nacional, jurou levar para Zolote milhares de militantes caso o presidente tentasse recuar a linha da frente, como previsto. Sofia Fedyna, deputada do Partido Solidariedade Europeia, ameaçou o presidente de morte. Poder-se-ia dizer que o estado de graça de Zelensky tinha terminado, mas na verdade ele nunca tinha chegado a existir. Em 27 de Maio de 2019, apenas uma semana após a investidura de Zelensky na Rada, Dmytro Yarosh, fundador do Sector Direito e comandante do Exército Voluntário Ucraniano, em entrevista ao Obozrevaltel, reafirmou a tese do anterior presidente, Petro Porochenko, de que os Acordos de Minsk não eram para ser cumpridos mas para ganhar tempo e preparar a ofensiva final contra o Donbass e a Crimeia e, que se o presidente não concordasse com este plano e “traísse a Ucrânia”, não seria demitido mas morto: “ele perderá a vida. Será atado contra uma árvore em Khreschatyk (a principal avenida de Kiev)”.

A riqueza de sentido desta expressão pode facilmente passar despercebida a quem não esteja familiarizado com as especificidades da tradição de punição extra-judicial – a chamada justiça popular – na Ucrânia, e com a sua progressiva politização nos últimos anos. É notável, desde o início da operação de cobertura mediática internacional da guerra da Ucrânia, como os correspondentes das inúmeras televisões e jornais ocidentais nas cidades ucranianas têm passado em silêncio a muito visível forma de punição pública dos chamados maroders (“pilhadores”, “ladrões”). A menos que um jornalista nunca saia do seu hotel, dificilmente deixará de se confrontar com exemplos desta prática, em que pessoas são atadas a árvores e postes com fita cola ou, mais recentemente com película aderente, as calças ou saias baixadas, as nádegas fustigadas com chibatas ou varas, e a cara pintada com tinta verde indelével. Habitualmente, este castigo público, aplicável tanto a homens como a mulheres, a idosos e a adolescentes, era sobretudo direccionado a ladrões que se aproveitavam da ausência de policiamento para pilhar comida ou pequenos objectos de consumo. A partir do momento em que o uso da língua russa foi proibido no país, e as tensões contra os habitantes do Donbass aumentaram de intensidade, esta forma de punição pública começou a ser dirigida contra quem fosse suspeito de ser russófilo, ou simplesmente quem fosse ouvido a, por exemplo, falar ao telemóvel em russo. Se originalmente a punição era praticada de forma espontânea por populares para castigar marginais, a partir de 2014 as milícias nacionalistas adoptaram esta forma de punição como meio de perseguição política. A violência dos actos aumentou, e o sadismo foi como que normalizado. Não é, portanto, difícil de entender o sentido das palavras ameaçadoras do Comandante Yarosh contra Zelensky: tendo este sido eleito em parte graças ao voto  das populações russófonas da Ucrânia, e sendo ele próprio russófono (como admitiu, apenas aprendeu a falar ucraniano dois anos antes da sua candidatura à presidência do país), ameaçar atá-lo a uma árvore na avenida principal de Kiev foi uma forma colorida de o identificar como potencial traidor ao ideal nacionalista ucraniano.
 
O simbolismo do atar alguém a uma árvore ou poste como punição de um acto de traição política tem uma imensa profundidade histórica nos imaginários ucraniamo e russo. Foi desta forma que em 945 D.C., de acordo com a Crónica Primária do Rus, o Príncipe Igor de Kiev, marido de Olga, a santa padroeira da Ucrânia, foi punido e morto pelos eslavos drevilianos, em revolta contra a colecta de impostos por parte do Rus de Kiev. Este episódio – assim como a chamada vingança de Olga –, sendo praticamente desconhecido no Ocidente, é, no entanto, informação tão normativa na Ucrânia quanto a putativa bofetada de Afonso Henriques à sua mãe. A corrente punição pública dos maroders na Ucrânia tem assim um efeito de actualização ritual de uma história milenar complexa e fortemente contestada por russos e ucranianos, e que se reporta à reclamação nacionalista das origens do Rus, e à miscigenação entre eslavos, vikings e tártaros.
 
Uma boa parte das cidades e vilas portuguesas ostenta, orgulhosamente preservados, postes de punição pública medieval: os pelourinhos. Não nos ocorre presentemente recorrer a eles para castigar delinquentes, mas, à força de nos convencerem que a solidariedade com a Ucrânia é um passo essencial na defesa dos valores tradicionais europeus, não é difícil imaginar que os pelourinhos venham a ser reactivados. Um dia destes.
 
O Público, 27 Agosto 2022
L'Accent, 28 Agosto 2022
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A Tragédia dos Comuns

30/5/2022

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A Quinta da Periquita, na Aldeia da Portela, hoje um “alojamento local” propriedade de investidores estrangeiros para uso de clientes também maioritariamente estrangeiros, não é propriamente um exemplo de quinta histórica ao contrário, por exemplo, da Quinta de Santo Amaro, da Quinta das Donas, ou do Casal do Bispo (a antiga Herdade da Infanta). O edifício foi reconstruído há pouco mais de 40 anos, pelo Juiz Francisco Rolão Preto, filho e homónimo do polémico monárquico integralista.
 
A quinta e o edifício em si não têm nada de particularmente notável, tirando a vista magnífica dos contrafortes da Serra da Arrábida. Para mim, uma parte do seu charme está na ligação indirecta a Rolão Preto pai. De cada vez que passo pela Estrada dos Barrancos, à saída do Largo da Portela, relembro-o, não tanto porque foi o fundador dos Camisas Azuis, o entusiasmado jovem de inclinações falangistas que conviveu com a família de Primo de Rivera, mas porque, enquanto fundador da Convergência Monárquica e posteriormente do Partido Popular Monárquico, foi um dos principais representantes do desditoso movimento comunitarista português. De facto, a mais interessante parte da sua obra literária é precisamente aquela que ele dedica à longa história do comunitarismo em Portugal e à defesa desse ideal.
 
Essa corrente silenciosa e grandemente silenciada pretende (ou pretendeu, porque hoje pouca coisa de discussão política corre ou sequer escorre em Portugal) reviver ideias e práticas seculares de organização social local de tendências colectivistas que se cristalizaram durante a Idade Média e foram progressivamente desarticuladas à medida que o Estado se centralizava e o Direito perdia o seu tertium genus, que era o direito comum para vantagem do binómio público/privado.
 
O direito ao uso comum de terras foi consagrado juridicamente nas Ordenações Manuelinas: para “os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras”, porque “proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e outros frutos”. Desde então, foi retrocedendo até praticamente desaparecer do Direito Civil durante o Estado Novo, ressurgindo timidamente na legislação posterior ao 25 de Abril de 1974.
 
No norte do país, como na Galiza, o uso comunitário dos baldios e a defesa da propriedade comunal está ainda viva, mas o facto de o poder autárquico se poder imiscuir na sua gestão tem resultado em infelizes atropelos ao direito comum, em benefício dos cofres de juntas de freguesia que cedem os baldios para, por exemplo, colocação de parques de eólicas em elevações ventosas. Sem estruturas, ideias ou pessoas que o defendam, o espaço do direito comunitário (que os ingleses designam como law of the commons, distinta da common law) é consumido pelo direito público e pelo direito privado.
 
A Serra da Arrábida está cheia de espaços baldios, de práticas comunitárias (ou pelo menos da sua memória). Mas, num mundo em que prevalecem os interesses públicos e privados, não podemos senão assistir saudosos à lenta morte trágica dos comuns. O caso, reportado nos jornais, da polémica em torno dos direitos comunitários no que respeita ao uso colectivo de espaços nas margens e interior da Herdade da Comenda (o parque das merendas junto à Ribeira da Ajuda, o acesso à praia, o caminho de Santiago) é claro sinal do estado comatoso em que se encontram hoje os ideais comunitaristas. A indignação popular contra as vedações instaladas pelo novo dono da Comenda, o fundo imobiliário Seven Properties, da Mirpuri Foundation, levou a que os setubalenses se concentrassem para gritar “A Comenda é nossa!” em 2019, numa manifestação em defesa do interesse comum. Mas rapidamente a autarquia se acaparou do processo, que a partir daí se transformou num jogo político no qual o direito público (nomeadamente o do embargo) tem digladiado contra o direito privado dos fundos de investimento turístico. E, por esta via, o direito dos comuns se vai esboroando até desaparecer, como uma praia sem areia na maré cheia.
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2022
 
 
 
 

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Etiópia: uma nova página na guerra civil

6/9/2021

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Lamento vir perturbar-vos a rentrée, os dramas das lojas do cidadão, das lanchas da GNR encalhadas em Carcavelos, e dos cartões amarelos de Cristiano Ronaldo.

No passado dia um de Setembro, uma mudança de fase ocorreu na tremenda guerra civil que grassa na Etiópia. O presidente do estado regional Amhara declarou oficialmente o recrutamento dos jovens a partir dos 13 anos (sim, 13 anos – não é uma gralha do jornal), para lutar contra o exército da Frente de Libertação da região vizinha do Tigré, que lançou em Julho um movimento de cerco à região Amhara e um ataque na direcção da capital do país, Adis Abeba. Enquanto por aqui nos queixávamos do verão pouco cálido e do incómodo das máscaras faciais, um sem número de batalhas sangrentas dilacerava o norte da Etiópia. Esta ofensiva militar dos rebeldes tigrinos foi lançada após o humilhante desbaratamento do exército do governo federal às mãos dos rebeldes, em início de Junho, num súbito e devastador contra-ataque que interrompeu o curso de oito meses de massacres e violações em massa perpetrados pelos militares e milícias etíopes e eritreias sobre a população do Tigré.

Incapaz de suster o ataque tigrino, o governo federal apelou às regiões para que recrutassem centenas de milhares de jovens e os jogassem praticamente sem treino contra as balas inimigas nas várias frentes de batalha. O resultado tem sido um morticínio não reportado porque as cadeias de televisão internacionais se encontram impedidas de filmar o horror. Nenhum dos beligerantes pode hoje alegar inocência perante a evidência de massacres, violações, e assaltos à ajuda humanitária internacional. Enquanto os rebeldes avançam, o governo etíope lança-se na compra apressada de armamento e munições junto de velhos e novos parceiros. Na impossibilidade de fazer cumprir acordos de vendas de armas com os países ocidentais, apelou a russos, iranianos, azerbaijanos e sobretudo turcos, esperando que o uso de enxames de drones letais possa alterar o destino de uma guerra que parece não poder parar antes da derrota total do adversário.

Nem a União Africana nem o IGAD têm instrumentos diplomáticos para encontrar soluções mediadas para o conflito. E o Conselho de Segurança das Nações Unidas encontra-se de tal maneira dividido que nem um projecto de resolução chega a tomar forma. Os Estados Unidos, tradicional aliado da Etiópia, deixaram de ter capacidade de pressão desde que se posicionaram do lado egípcio no surdo conflito regional em torno da barragem etíope no Nilo Azul, presentemente em curso de enchimento. O colapso afegão teve como efeito imediato um pusilânime retraimento da administração Biden no que toca ao Corno de África, no que é acompanhado – obedientemente - pela União Europeia. Até onde a Turquia puxará a corda, enviando operadores de drones para a Etiópia, é assunto que as próximas semanas poderão vir a esclarecer. Para já, esta influente presença no Corno de África é motivo de regozijo para Erdogan, averbando vitórias importantes sobre egípcios e árabes.

A guerra civil foi internacionalizada no momento em que o exército eritreu entrou secretamente em solo etíope, a 3 de Novembro último. Neste momento, ameaça a fragilíssima estabilidade do Sudão, da Somália e do Djibuti. A intervenção indirecta de turcos, azerbaijanos e russos aumenta exponencialmente a espiral de volubilidade geostratégica em torno da margem ocidental do principal canal de circulação do comércio internacional que é o Mar Vermelho. Os desafios são importantes e os europeus – e por maioria de razão, os portugueses – enfiam inconvenientemente a cabeça da areia.

A evidência dos massacres e das violações em massa no norte da Etiópia está documentada. As suspeitas de acção genocidária por parte dos exércitos e milícias etíopes e eritreias amontoam-se – a crueza das directivas dos comandos é arrepiante: exterminar quem urina contra a parede (matar os homens) e eliminar a semente nas mulheres (através da violação). Os crimes de uns são justificados pelos crimes anteriores dos outros, numa voragem suicidária. Mas a um de Setembro, uma nova página foi virada: se antes, quem queria saber sabia que todas as forças militares usam jovens e crianças na guerra, agora este nefando crime foi oficialmente admitido. Um leitor português não fará nada porque não pode. Mas um euro-deputado ou um governante podem fazer a diferença. Infelizmente, em Portugal a ideia de que um cidadão eleitor pode pressionar o seu representante eleito na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu não chega sequer a ser uma ficção.
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Se eu venho incomodar-vos a rentrée, é talvez por egoísmo. Silenciando-me, sinto-me cúmplice de um imenso crime. Falando dele, imagino pelo menos que estou a lançar um pouco desta pesada responsabilidade sobre os ombros do eventual leitor.
 
 O Público, 4/09/2021
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A tragédia etíope e o autismo português

6/9/2021

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Em 1984, no pico da fome no norte da Etiópia, contavam-se em Portugal várias anedotas sobre etíopes (do género: “Se uma etíope come um grão de arroz parece que está grávida”). Que me lembre, partilhar anedotas foi a única resposta portuguesa à tragédia. Dado o profundíssimo desconhecimento, neste país, das realidades do Corno de África, estas anedotas tinham por função cristalizar estereótipos veiculados pela comunicação social da altura: a Etiópia como país da fome e da miséria extremas. As transmissões televisivas dos horrores da fome etíope não suscitaram em Portugal outra reacção que não uma chacota desumanizadora. O subtexto que justificava esta reacção era que “coisas destas” aconteciam porque os etíopes são africanos e porque os africanos não são gente como “nós”. As anedotas brotavam, portanto, do fértil terreno do preconceito racial que o processo de descolonização não soube resolver.
 
Do corpus de anedotas de etíopes, uma destacou-se claramente. Dizia o seguinte:

Uma equipa de ajuda humanitária portuguesa visita um campo de refugiados etíopes. Bate à porta de uma tenda para oferecer apoio. Do interior, vem uma voz muito fraca: “quem é?” Um dos voluntários informa: “somos uma missão humanitária portuguesa.” A voz responde, ainda mais fraca: “já demos, já demos...”
 
Não houve, evidentemente, nenhuma missão humanitária enviada pelo governo português para a Etiópia, pelo que esta anedota, contada já durante o maciço movimento de apoio internacional encabeçado por Bob Geldorf, continha um tom auto-crítico que se dirigia sobretudo à aparente incongruência de Portugal, um país pobre e mergulhado numa perene crise económica, ter sido aceite no clube de países ricos que era a então Comunidade Económica Europeia.
 
Contei várias vezes esta anedota a amigos e conhecidos etíopes, em parte como medida profilática em relação a quaisquer ilusórias esperanças suas de colaboração com as entidades governamentais portuguesas. O período febril da cooperação europeia com África, de 2000 até à crise de 2008, suscitou um inusitado aprofundamento de relações diplomáticas e comerciais dos países do sul da Europa (sobretudo Itália e Espanha) com o continente africano. Portugal procurou – sem ter evidentemente os meios e capacidades para tal – acompanhar este movimento. A aproximação à Etiópia era considerada neste contexto um imperativo, dado que Adis Abeba, albergando a sede da União Africana, era e é o centro da diplomacia internacional no continente. O triunfalismo que acompanhou a organização da segunda cimeira Europa-África em 2007, durante a presidência portuguesa da EU, foi efémero, revelando as autoridades portuguesas clara falta de preparação e um conhecimento muito limitado das realidades africanas que ficam para além do dito “espaço lusófono” (é inesquecível o episódio do almoço de carne de porco oferecido a dignatários muçulmanos).
Nas últimas duas décadas, tomei conhecimento de inúmeras tentativas de colaboração e de intervenção portuguesa na Etiópia, as quais sempre resultaram em estrondosos e expectáveis fracassos, geralmente causados pelo facto de o notável voluntarismo do empenho individual esbarrar sempre com o muro impenetrável da pequenez de visão e do espírito burocrático que marca a diplomacia política, cultural e económica portuguesa. Uma das mais absurdas iniciativas foi – ou é - o das comemorações dos 500 anos de relações diplomáticas entre Portugal e a Etiópia, uma tentativa canhestra de rivalizar com os programas de intervenção espanhola e brasileira naquele país. Este programa foi lançado em 2014 – ano em que (não) se celebrou o meio milénio da chegada do primeiro embaixador etíope à corte real portuguesa – e é previsto terminar em 2026 – quinhentos anos após o regresso da primeira embaixada portuguesa ao reino abissínio. Poderia ter sido uma oportunidade imperdível de lustrar os pergaminhos das relações históricas entre os dois países, e por extensão entre os dois continentes (afinal, foi a primeira troca de embaixadas entre a Europa e África). Em vez disso, este programa de celebrações constitui-se como anedótico e risível símbolo das imensas limitações da diplomacia portuguesa naquele continente.
 
Presentemente, a Etiópia encontra-se mergulhada numa horrenda guerra civil que ameaça transformar-se num desastre comparável ao de 1984. A espiral da escalada militar naquele que é um dos países mais populosos de África coloca em risco o requisito estratégico de estabilidade numa das regiões mais sensíveis para a economia mundial, o Mar Vermelho. São múltiplos os relatos de atrocidades praticadas sobre as populações, e têm proliferado as previsões de uma próxima catástrofe humanitária e de uma eventual fragmentação do país. Fico por isso boquiaberto com o total autismo que, tanto as autoridades como a população portuguesa, têm revelado. Estando a história de Portugal, em particular nos séculos XVI e XVII, ideologicamente tão entretecida com a da Etiópia, este autismo, este alheamento, não é apenas desumanizador em relação ao presente sofrimento de milhões de pessoas. É sinal de uma alienação colectiva que vem comprovar a acuidade da auto-crítica da acima-citada anedota sobre a missão humanitária portuguesa no campo de refugiados etíopes. Fico sem saber o que é pior: se contar anedotas estúpidas sobre gente que morre à fome, se nem sequer dedicar um segundo de atenção para as criar e contar.
 
 O Público, 18/08/2021
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O estado de Pastel

25/5/2021

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Em 1947, a Assembleia das Nações Unidas, inspirada pela máxima de que soluções simples são as melhores para resolver problemas complexos, aprovou a divisão do território da Palestina então sob mandato britânico em duas entidades nacionais: Palestina e Israel. O pós-guerra foi prolífico em soluções simples: Coreia do Norte e Coreia do Sul, China e Taiwan, Índia e Paquistão, Iémen do Norte e Iémen do Sul, Somália e Somalilândia, Etiópia e Eritreia, Chipre turco e Chipre grego... ah, e Alemanha de Leste e Alemanha Ocidental.
 
O que se passou a seguir tem sido fonte de maravilha para os amantes de enigmas insolúveis: os recém-criados estados árabes não aceitaram a solução, seguiu-se uma guerra, a expulsão de quase um milhão de palestinianos do território israelita, e a progressiva anexação de terras em volta, até à caricata situação actual em que, na sequência dos acordos de Oslo, a então reafirmada “solução dos dois estados” é impossível de concretizar dado que não passa pela cabeça de nenhum palestiniano viver numa fatia de queijo suíço.
 
Um dos estados juridicamente mais xenófobos do planeta, que assenta o princípio da cidadania numa interpretação híper-restritiva do ius sanguinis e na exclusividade de pertença religiosa, tem ao longo das décadas aperfeiçoado uma versão nativa do sistema sul-africano do apartheid, tanto no interior do país como nos territórios palestinianos ocupados, de forma a prevenir que a população não-judia possa algum dia ser numericamente superior à judia – ou seja, o que podemos chamar de democracia hútu.
 
Herdeiro da lógica simplista da guerra fria, o novo presidente norte-americano reafirmou agora, no quente do mais recente cessar-fogo entre palestinianos e israelitas, a validade da “solução dos dois estados” como a única via possível para a paz na região. Contam-se pelos dedos de uma mão os políticos locais (todos do cada vez mais diminuto campo “laico”) que acreditam na viabilidade da “solução”, hoje em dia. O extremismo fundamentalista judaico alimenta-se do extremismo fundamentalista islâmico e vice-versa. Uns e outros são a inesperada (e complicada) consequência da decisão “simples” de dividir o território em dois, um para judeus e outro para muçulmanos. Nesta espiral descendente e radicalizante, a eternização do conflito violento pontuado por momentos de cessar-fogo parece a única solução possível. Não será assim de admirar que a “única democracia do Médio Oriente” passe rapidamente a oligarquia ou a autocracia quando finalmente a população não-judaica (muçulmana e cristã) no interior de Israel se tornar maioritária.
 
Ora, se os radicais judaicos não admitem a existência de uma Palestina independente, e se os radicais islâmicos não admitem a existência de um estado judaico, e nenhum aceita a viabilidade da “solução dos dois estados”, a melhor alternativa a este contínuo mais-do-mesmo com sete décadas é procurar soluções criativas, como propõe Paul Watzlawick: há que reenquadrar o problema de forma que as velhas soluções que não solucionam nada caduquem. Tal como Arquímedes teve o seu eureka no banho, eu tive o meu numa pastelaria, esta manhã. Se o problema é mesmo que israelitas não querem uma Palestina e os palestinianos não querem um Israel, e nenhum quer a “solução simples” de 1948, então basta criar um novo país com um novo nome onde uns e outros vivam sem chatear o resto do planeta. Se os sul-africanos conseguiram, porque não voltar a tentar? Até tenho um nome para o país: comecei por conceber Palestiriel, mas achei mais graça a Pastel – afinal, já há países que se chamam Camarões e Perus, e há até um que resolveu o conflito entre galegos e portenhos inventando a palavra Portugal.
 
​Publicado n'O Público, 25 Maio 2021.
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    Manuel joão ramos

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