Se bem me lembro... foi há 15 anos, mais ano menos ano, que me sentei no gabinete do vereador da mobilidade da Câmara Municipal de Setúbal para lhe expor entusiasmado revolucionárias ideias de pedonalização da Rua José Augusto Coelho, o principal eixo viário de Vila Nogueira de Azeitão. Falei-lhe da importância de atender aos utentes frágeis na regeneração urbana, da urgência de melhorar a qualidade dos espaços públicos, da necessidade de revivificação do centro da vila. Citei-lhe, como se deve quando se pretende impressionar políticos portugueses, exemplos de grande sucesso vindos de fora, do estrangeiro. E saí da reunião certo de que tudo o que eu lhe tinha dito havia entrado por um ouvido e saído pelo outro, intocado por qualquer sinal de actividade neuronal. Na altura, admito, movia-me o fervor missionário e civilizador do arauto pregando a sustentabilidade urbana e a bondade da mudança de paradigma na gestão dos espaços públicos viários.
Alguns anos depois, por volta de 2012, começou a falar-se de planos de reabilitação urbana para Azeitão, com voluntariosas exposições na Casa do Povo por parte de políticos e técnicos camarários. Em 2013, a Assembleia Municipal aprovou uma deliberação definindo a área de reabilitação urbana de Azeitão (isto é, a área a intervencionar), passo prévio necessário para ser alterado o PDM e criar o plano estratégico da ORU (Operação de Reabilitação Urbana), o que veio a acontecer em 2016. O diagnóstico apresentado no preâmbulo do documento diz o óbvio para quem conhece um pouco a vila: população envelhecida, imobiliário degradado e 24% do casario devoluto. E ancora claramente toda a operação de reabilitação, não em preocupações com a melhoria da qualidade de vida da população, mas nas virtudes da promoção turística da região. Ou seja, o casco antigo da vila é olhado como isso mesmo: um casco. Um casco que, convenientemente esvaziado através de incentivos fiscais à transmissão imobiliária – nomeadamente por via da isenção do IMI e do IMT – poderá ser objecto de “reabilitação” para fazer do centro da vila uma Disneylândia para usufruto das turbas de turistas em busca do “produto Arrábida” (sic) e dos aromas de Baco. Toda a intervenção está pensada para fazer de Azeitão uma máquina de moedas. Para tal, há que lançar mão ao “património”, para o pôr a render: embelezar fontes, polir brasões, limpar fachadas, e decorar tudo a arvoredo e calçada “à portuguesa”. E lá está, preto no branco do plano estratégico, a inevitável referência à pedonalização da área.
O que o vereador da mobilidade não quis ouvir vindo de mim em 2005, vem agora o plano apregoar triunfantemente. Mas o entendimento do que é a função da pedonalização de espaços públicos viários alterou-se profundamente: a intervenção, segundo o ORU, não é feita a pensar em quem vive na vila, mas sim em quem a virá visitar; não serve para reter a população da vila, mas para a substituir por outra população mais afluente, provavelmente falante de francês ou de outra língua, europeia ou não. O plano estratégico da Câmara de Setúbal não é um plano de reabilitação mas sim de gentrificação e de turistificação da vila. E o que se passa no pequeno microcosmo de Azeitão, sabemos que se tem passado um pouco por todo o país – um país que pouco produz a não ser sol, que pouco vende a não ser “património”.
Vão longe os tempos em que, ingenuamente, me batia por melhor qualidade dos espaços públicos crendo que a pedonalização de ruas podia ser entendida pelos políticos portugueses como a atribuição (ou melhor, a reposição) dos direitos dos peões à rua. Na gíria da política nacional, a palavra “pedonalização” está intimamente ligada a visões de cifrões ganhos à custa do tolo turista que, sem ter aprendido as valiosas lições da pandemia do Covid19 e da necessidade de reduzir as emissões carbónicas das viagens aéreas, insiste em vir cá apanhar sol, afugentando dos centros urbanos os habitantes locais a que eles parecem achar tanta graça.
Jornal de Azeitão, Junho 2021