Também não é rara a existência de outro tipo de marcas na testa de muitos etíopes, mas estas não são sinal de fervor ou adesão religiosa. Muitas mulheres exibem tatuagens ornamentais em volta do pescoço, e é comum observar uma dupla escarificação em cada uma das fontes, tanto em homens como em mulheres: estas são o resultado de sangrias praticadas por médicos tradicionais, que têm como objectivo proteger as crianças de certo tipo de doenças. Para além destas marcas religiosas, ornamentais e rituais, é também muito habitual a existência de cicatrizes na cabeça. A origem destas cicatrizes advém de uma prática educacional curiosa, actualmente em recessão mas à qual eu assisti em diversas ocasiões: para castigar crianças desobedientes ou insolentes, os familiares mais velhos atiram-lhes pedras à cabeça. O efeito pavloviano deste castigo é tal que as mais das vezes basta fazer o gesto de apanhar uma pedra e ameaçar atirá-la para que a criança obedeça à ordem dada.
Não pretendo discutir a bondade ou perversidade desta forma de castigo corporal, tal como não venho aqui comentar a publicitação de correctivos radicais (como, por exemplo, submergir uma filha na água fria de uma piscina) contra birras infantis como forma de angariar seguidores em redes sociais. Pretendo apenas dar conta do meu pasmo permanente face aos comportamentos públicos de crianças e adultos na região de Azeitão – microscópico espelho do que, suspeito, acontece um pouco por todo o lado, dentro e fora do rectângulo luso. Não passa um dia em que não observe – seja no restaurante, no café, na loja, no parque, ou na praia – pais, tios e avós a silenciar filhos, sobrinhos e netos pondo-lhes telemóveis ou tablets na mão, para melhor poderem conviver sem interferências infantis. Quando não estão entorpecidos pelas imagens do ecrã, transformam-se em feras ditatoriais e inaturáveis a exigir toda a atenção do mundo, gritando, esperneando e correndo em círculos viciosos.
Ligar uma criança ao ecrã de um telemóvel é uma forma de hipnotismo fácil e prático no imediato, mas é também uma demissão de responsabilidades parentais cujas consequências são temíveis. Esta miopia educacional resulta, por um lado, em efectiva miopia precoce dos jovens – antigamente, havia um “caixa de óculos” na turma da escola; hoje, o elemento de distinção na turma é a cor do aro e a graduação da lente de cada aluno. Por outro lado, e muito mais preocupante, a consequência deste novo hábito é a progressiva miopia mental e emocional da juventude: desabituados do saudável balanço entre manifestação de afecto e a exigência de cumprimento de regras, resvalam para um autismo imoral, para o absoluto desrespeito, não apenas dos pais que não conseguiram fazer-se por eles respeitar, e dos professores que, na escola, com eles se confrontam impotentes, mas de todos quantos se encontram do lado de cá do ecrã. A única autoridade destes novos “meninos selvagens” é o algoritmo que gere as redes sociais e os seus avatares, conhecidos como influencers, youtubers, tiktokers, instakings e instaqueens.
Entrevistado em sua casa pouco tempo antes da sua morte aos 101 anos, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss referiu o seu profundo pesar pelo fim da diversidade cultural da humanidade e a sua repugnância pela monocultura que hoje impera. Terminou a entrevista notando que, agora que a sua existência estava perto do fim, deixava um mundo de que (já) não gostava, habitado por uma humanidade a viver num regime de envenenamento interno.
É, claro, possível duvidar desta visão apocalíptica e supor que a globalização monocultural não passa de um projecto utópico euro-americano em vias de derrapar na sua meta final. Mas não deixo de me perguntar como vão as novas gerações de azeitonenses gerir a pesada herança que vão ter de carregar.
Jornal de Azeitão, Agosto 2023