Por mim, prefiro ver as coisas de outra maneira. Não me aflige substituir calçada “à portuguesa” por lajetas de cimento se isso melhora o conforto dos viandantes. Atrai-me mais o melting pot de São Teotónio que o de Óbidos, o Bairro das Fontainhas em Setúbal que a Rua Cor de Rosa e o Campo de Ourique em Lisboa. E quanto à fraca criatividade artística portuguesa... acho que os estetas procuram a musa nos lugares errados. Se queremos ver boa arte em Portugal, há que fugir da Galeria 111 e do Museu do Chiado, e percorrer as aldeias, vilas, e bordas de estrada lusas para bem apreciar a explosão de criatividade autóctone. Os portugueses não produzem Picassos, Beuyses, Pollocks ou Damien Hirsts, porque não precisam deles em cima da lareira. Antes, dedicam a sua energia, o seu ethos e o seu pathos, à produção de formas geométricas complexas a que dão o nome de “moradias”. Não há uma igual a outra, e nenhuma arquitectonicamente aborrecida, sobretudo desde que a Revolução dos Cravos veio dar rédea livre à imaginação individual e colectiva pátria. No Reino Unido diz-se que “a minha casa é o meu castelo”. Em Portugal, país de estetas espontâneos, “a minha casa é a minha obra-prima”.
Vem isto a propósito do facto da renovação de uma casa do largo da Piedade onde, no andar térreo ficava (e voltou a ficar) o café e mercearia da aldeia. Foi há coisa de dois anos que publiquei aqui um texto chamado “A morte da aldeia”. Falava sobre o encerramento iminente do café, e sobre o impacto previsível que isso teria sobre a vida dos seus habitantes, tanto os usuais como os de arribação. A verdade é que as quarentenas e outras várias restrições destruíram o negócio do Norberto e da Olga e desde aí a aldeia ficou sem café, sem mercearia, e por isso sem um ponto certo onde as conversas podiam ser postas em dia, a terra da lavoura e o pó das obras podiam ser lavados com minis, o passado e o futuro podiam ser presentes a público.
O edifício foi posto à venda, e veio a ser comprado por um jovem casal holandês que tomou como ponto assente que tanto a mercearia como o café haviam de voltar a abrir, em parceria com a Alexandra, de raíz local. As obras são como são, as licenças camarárias são como sempre serão mas, após meses de expectativa, os sinais da renovação começaram a acumular-se. À porta do prédio, o tijolo e o cimento foram dando lugar às latas de tinta e aos materiais de pavimentação, os pedreiros deram lugar aos estucadores, e estes aos canalizadores e electricistas. No supermercado da vila, uma vizinha confidenciou-me “está para breve”, na rua da Escola outro comentou “agora é que vai ser; o café vai voltar”. Finalmente um dia, frente ao portão de ferro, apareceu um letreiro grafitado a giz tratando o leitor com uma inconfundível familiaridade empática holandesa: “Olá, aldeia! Vamos abrir o café no dia 15 de Agosto”. E assim foi. Uma maneira diferente de fazer a festa na aldeia.
Sim, dia 15 de Agosto é, tradicionalmente, o dia final da Festa de Nossa Senhora da Conceição, na capela de São Pedro, que este ano mereceu apenas cerimonial religioso. A comissão de festas alegou que, à semelhança de 2020 e 2021, ainda se aplicavam as restrições do COVID e que, por isso, os bailes, rifas e bifanas só regressarão à aldeia no Verão de 2023. Pouco importa mais bailarico, menos bailarico. O que interessa mesmo é que o café e a mercearia estão de regresso e a vida da aldeia sente-se renascer.
Renasce diferente, como é óbvio, assim como o café. Nestes dois anos, mais ou menos, não foi só o Norberto e a Olga que deram uma volta à vida. A pandemia foi má para muita gente, mas boa para certos negócios, em particular o imobiliário. Várias quintas, moradias e casinhas de aldeia mudaram de mãos e de destino. Os casarões foram recuperados, os jardins ganharam novos ciprestes, os alojamentos locais multiplicaram-se e, com eles, as matrículas estrangeiras dos carros. Será incipiente a alteração demográfica, mas já se faz sentir na via pública: há mais passeadores de cães, mais licra a fazer jogging nos trilhos, mais sotaques de terras protestantes.
Dias antes da inauguração do café, a Sabina chamou-me do lado de lá do portão para anunciar de viva-voz a boa nova. Na parede rebocada e pintada de fresco, o novo nome foi aposto sobre o branco alvo, em ferro forjado negro: “LIMA”. Duas pipas e três mesas apareceram a decorar a entrada do café. Tudo pronto para o grande dia, portanto.
Ao chegar ao café, na segunda de manhã, já havia um grupo de fiéis lá dentro, e o Arnauld, a Sabina e a Alexandra cumprimentavam os recém-chegados de sorriso aberto e sentimento de dever cumprido. A vernissage foi um retumbante êxito: entre croquetes, fatias de bolo de laranja, galões e minis, o público apreciou a obra de arte, comentando em detalhe os materiais usados, a disposição dos espaços, não esquecendo nunca de enquadrar a peça na linha histórica da arte local. O café “Lima” é sem dúvida a nova obra-prima da fusion art azeitonenese: a forma tradicional do edifício manteve-se inalterada, mas foi convenientemente rebocada a cimento e pintada de branco; o limoeiro no topo das escadas foi podado; as barricas vieram dar à entrada um alegre toque germânico; os matraquilhos e as rifas foram-se, assim como as fraldas Lanidor e o Baygon para formigas, mas agora há um terminal multibanco muito chique e uma máquina de café reluzente; os bancos e mesas toscos do interior foram substituídos por cadeiras de ferro forjado e mesas de pedra; o pátio interior foi reaberto, prometendo noitadas de poesia francesa e fado corrido. Em suma, um primor de gentrificação suave, que alegra toda a gente, na aldeia e arredores. Só falta uma tabuleta a substituir o antigo “Aqui não se fia”: “Os críticos de arte contemporânea não são bem-vindos”.
Jornal de Azeitão, Setembro 2022