MANUEL JOÃO RAMOS
  • Home
    • English >
      • Blog
      • Publications
      • Graphics
      • Videos
      • About Me
      • Contact
    • Português >
      • Publicações
      • Arte Gráfica
      • Vídeos
      • Sobre Mim
      • Contacto
      • Politica de privacidade

A arte da observação participante

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
Nos dias finais de 2023 dediquei-me a fazer um levantamento etnográfico nas imediações dos contentores de lixo de Azeitão e arredores. Por efeito de problemas mecânicos e burocráticos do sistema de recolha de resíduos dos serviços autárquicos (aparentemente porque vários camiões avariaram e não puderam ser reparados de imediato), os contentores de lixo deixaram de ser esvaziados com regularidade e todo o tipo de objectos indesejados foi acumulando em seu torno, causando forte impressão visual e olfactiva em quem por eles passava. Não houve qualquer comoção, revolta ou manifestação de desagrado colectiva. Entredentes, aqui e ali, ouvi comentários, geralmente curtos e pouco abonatórios sobre a situação, o que não desincentivou ninguém, claro, de continuar a dar o seu contributo pessoal diário para a acumulação de lixo junto aos contentores.
A listagem, por categorias, dos objectos que se acumularam nesses dias junto aos contentores, em Vila Nogueira, em Vendas, nos Brejos, em Oleiros, ou na Piedade, é longa e não a vou reproduzir aqui. Por outro lado, admito que me foi difícil estabelecer um quadro completo dos actos de reciclagem – de recuperação de objectos descartados – dado o seu carácter furtivo (quem retira de um monte de lixo um objecto que considera não-lixo tende a fazê-lo de forma discreta, para não se tornar objecto de crítica social e ser, assim, “descartado”).
Mas é, ainda assim possível fazer algumas considerações sobre os modos de vida, a variedade dos gostos, a capacidade económica das populações nas várias localidades. Naturalmente, para que a investigação possa ter valor heurístico será necessário proceder de forma mais sistemática e prolongada no tempo – o que implicará a redacção e candidatura de um projecto de estudo a uma entidade financiadora, já que o trabalho amador, não remunerado, é hoje em dia visto como suspeito pela comunidade científica e os seus resultados sejam, por isso, “descartados” como lixo indesejável.
Um dia, talvez, coligirei os resultados do meu levantamento etnográfico junto dos contentores de lixo de Azeitão, e até os poderei publicar caso haja um editor com visão e também previsão de que o público leitor terá interesse no tema.
 
Em antropologia, ao contrário do que se pode pensar, os inquéritos de terreno não se limitam ao inquérito e entrevista de informantes. A chamada “observação participante”, popularizada por Bronislaw Malinowski e pelos seus discípulos britânicos para designar os métodos imersivos de recolha etnográfica, é um termo inicialmente concebido pelo americano Edward Lindeman em 1924. Como método de estudo, a sua história precede a fundação da antropologia: viajantes e exploradores praticaram-no desde tempos remotos. Já o Barão de Gérando escrevia em 1800, no seu Considérations sur les diverses méthodes à suivre dans l’étude des peuples sauvages, que “a melhor maneira de conhecer os índios é tornarmo-nos como eles; e é aprendendo a sua língua que nos tornamos seus concidadãos”. A “observação participante” tem sido erigida em mais que um método de estudo; tornou-se como que uma iniciação mística, uma porta de entrada do antropólogo nos segredos profundos da vida cultural das populações que estuda. Como tal, supõe que se valorize não apenas o conhecimento transmitido verbalmente, mas também – e talvez sobretudo – os saberes e os hábitos colectivos que não chegam à consciência e não necessitam ser expressos através das palavras.
O estudo aturado das técnicas que as populações desenvolvem para se desfazer do dejeto, do lixo, do resíduo, do remanescente, do tornado desnecessário, requer o que o antropólogo Tim Ingold designou como a “arte de prestar atenção”. Estarmos disponíveis para observar, apreciar, examinar, e simultaneamente atentos à nossa própria posição como parte subjectiva do todo em que imergimos, é um importante requisito para a compreensão dos hábitos culturais relacionados com a materialidade dos objectos, e com os processos de selecção do que é de reter e preservar, e o que é de descartar, de abandonar, de excluir, de rejeitar.
As minhas observações dos contentores e seu entorno suscitam uma questão epistemológica fundamental: dada a ubiquidade, variedade e infinitude do lixo produzido pela comunidade azeitonense, que imagino não seja manifestação única no país, é de nos perguntarmos se não estamos perante um acto performativo de natureza artística. Com efeito, o modo como cada habitante contribui individualmente para a modelação de um monte de lixo colectivo implica uma intenção, uma vontade de participar num acto de harmonização escultórica colectiva que – quando, por sorte, os serviços camarários deixam de fazer a sua recolha diária – se revela em toda a sua glória estética. Toda Azeitão pôde, durante algumas semanas, apreciar – gratuitamente – uma muito interessante exposição de arte popular espontânea que, no meu ver, competiu dignamente com as melhores mostras de arte plástica internacional.
E eu orgulho-me de nela ter participado activamente, fiel aos requisitos do método da observação participante em antropologia.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2024
Tags:
0 Comments



Leave a Reply.

    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

    Archives

    March 2025
    June 2024
    September 2023
    August 2023
    July 2023
    March 2023
    November 2022
    October 2022
    September 2022
    August 2022
    July 2022
    May 2022
    April 2022
    February 2022
    January 2022
    November 2021
    October 2021
    September 2021
    August 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    April 2020
    March 2020

    Categories

    All
    Ambiente
    Arrabida
    Arte
    Censura
    Comuns
    Conflito
    Diario De Noticias
    Digital
    Etiopia
    Gentrificacao
    Historia
    Jornal De Azeitao
    Mobilidade
    Mobility
    O Publico
    Oralidade
    Palestina
    Pandemia
    Pandemic
    Pesca
    Política
    Pollution
    Poluicao
    Portugal
    Risco Rodoviario
    Ritual
    Turismo
    Ucrania
    Universidade
    Urbanismo

    RSS Feed

Powered by Create your own unique website with customizable templates.