Não tenho os dotes e a persistência do grande etnógrafo, mas volta não volta surpreendo-me a mim próprio a olhar para o vazio do ecrã do telemóvel enquanto aprecio o sol sentado na esplanada do café e – involuntariamente, claro – fico de ouvido à escuta do que se diz na mesa do lado. Basta que um tom de voz destoe do burburinho geral ou que uma palavra solta me prenda a atenção para que eu entre em modo velha de lenço negro.
Há alguns dias, bebia eu o meu café matinal numa esplanada ensolarada da vila quando, atrás de mim, ouvi alguém falar do ladrar de cães por trás de portões. A voz era pausada, feminina, e relatava um episódio ainda fresco. Pelo que percebi, a senhora tinha assentado arraiais na vila há dois ou três anos, vinda da metrópole, e adquiriu o hábito de levar o seu cão ao parque das oliveiras. O que seria normalmente um passeio higiénico e quase pastoral é, pelo que me pareceu, uma dolorosa expiação. Para chegar ao parque tem de atravessar uma zona de moradias, a maior parte das quais guardada por cães que, mal pressentem uma presença na rua, desatam a ladrar e a rosnar em coro, infernalizando-lhe o passeio porque o seu cão é tomado de pânico.
Naquela mesma manhã, ao passar com ele numa rua onde, por trás de um muro alto, vivem cinco cães de ladrar especialmente vigoroso, foi subitamente abordada pela dona da casa fronteira. Agitada, a senhora, que se exprimia num forte sotaque gálico, pediu-lhe por tudo que deixasse de passar por ali. A cara da viandante lisboeta terá evidenciado tal pasmo que a moradora francesa se desfez então em explicações e justificações. Teria chegado à vila, como a passeadora, há coisa de três anos, na expectativa de poder aproveitar uma imagino que legítima reforma tranquila em terras azeitonenses. Tinha comprado aquela moradia, feito obras, trazido de França os seus haveres e o marido, mais que disposta a viver entre os berberes católicos que nós, portugueses, somos.
O problema da compra de casa é que, ao contrário do que acontece com a compra de carro, não dá para fazer um test run, isto é, dormir nela um par de noites antes de entregar o cheque para sinalizar o contrato de compra e venda. Comprada, restaurada e mobilada a casa, só quando para lá foi viver se apercebeu que tinha chegado, não ao paraíso, mas ao inferno: faça dia ou noite, verão ou inverno, o ladroar dos três cães da moradia em frente nunca pára e multiplica-se quando alguém, particularmente alguém que passeia incauto o seu cão, passa pela rua. Há três anos que a senhora se queixa em vão aos vizinhos, à junta de freguesia, à GNR e, mais recentemente, à psicoterapeuta.
Cansada de tanto encolher de ombros das autoridades e de tanto receituário de anti-depressivos, optou desesperada por aquele inaudito último recurso: pedir a quem passa pela rua que por ali não passe, para que os cães enclausurados na moradia fronteira não se manifestem tanto; suplicar aos viandantes que aceitem prescindir do seu direito ao espaço público porque os vizinhos não prescindem de abusar de um mais que duvidoso direito privado a prender cães ruidosos no seu quintal.
Fiquei sem perceber qual a resposta ao pedido porque, entretanto, um grupo de motoqueiros chegou ao café e as conversas foram abafadas pelo ronronar dos motores de grande cilindrada. O ruído e o cheiro que as motas exalavam ditaram a minha fuga precipitada do local. Contente por não ter cão que entrasse em pânico com as motas, fui passear pela rua direita cogitando sobre o pedaço de história que tinha ouvido. Até que alguém me apresente argumento em contrário, vou assumir que Azeitão é uma vila onde, com dificuldade, coabitam três castas: os “locais”, os “lisboetas” e os “estrangeiros”, que interagem mas não se confundem, se confrontam mas não dialogam. Vou também assumir que esta dinâmica social é bem conhecida das “autoridades” que, face às tensões que a coabitação gera, optam por fazer o que os enforcers do Estado costumam sempre fazer: alhear-se quando as normas legais ameaçam alterar o frágil equilíbrio das relações de força entre as castas em confronto.
Jornal de Azeitão, Abril 2023