MANUEL JOÃO RAMOS
  • Home
    • English >
      • Blog
      • Publications
      • Graphics
      • Videos
      • About Me
      • Contact
    • Português >
      • Publicações
      • Arte Gráfica
      • Vídeos
      • Sobre Mim
      • Contacto
      • Politica de privacidade

À Escuta no Café

19/7/2023

0 Comments

 
Picture
A figura da velha de lenço negro que espreita pela janela e controla tudo o que se passa na vizinhança é um estereótipo famoso sobre o qual assenta uma longa história de coscuvilhice e censura social. Menos conhecida é a figura do etnógrafo que, com um ar fingidamente cândido e distraído, ouve tudo o que se diz à sua volta. Leite de Vasconcellos, ele próprio, conta que de modo a poder recolher elementos do dialecto barranquenho que os locais se recusavam a falar na presença de estranhos, se encostava às portas e colocava a orelha junto à madeira para os poder ouvir sem que eles se apercebessem.
 
Não tenho os dotes e a persistência do grande etnógrafo, mas volta não volta surpreendo-me a mim próprio a olhar para o vazio do ecrã do telemóvel enquanto aprecio o sol sentado na esplanada do café e – involuntariamente, claro – fico de ouvido à escuta do que se diz na mesa do lado. Basta que um tom de voz destoe do burburinho geral ou que uma palavra solta me prenda a atenção para que eu entre em modo velha de lenço negro.
 
Há alguns dias, bebia eu o meu café matinal numa esplanada ensolarada da vila quando, atrás de mim, ouvi alguém falar do ladrar de cães por trás de portões. A voz era pausada, feminina, e relatava um episódio ainda fresco. Pelo que percebi, a senhora tinha assentado arraiais na vila há dois ou três anos, vinda da metrópole, e adquiriu o hábito de levar o seu cão ao parque das oliveiras. O que seria normalmente um passeio higiénico e quase pastoral é, pelo que me pareceu, uma dolorosa expiação. Para chegar ao parque tem de atravessar uma zona de moradias, a maior parte das quais guardada por cães que, mal pressentem uma presença na rua, desatam a ladrar e a rosnar em coro, infernalizando-lhe o passeio porque o seu cão é tomado de pânico.
 
Naquela mesma manhã, ao passar com ele numa rua onde, por trás de um muro alto, vivem cinco cães de ladrar especialmente vigoroso, foi subitamente abordada pela dona da casa fronteira. Agitada, a senhora, que se exprimia num forte sotaque gálico, pediu-lhe por tudo que deixasse de passar por ali. A cara da viandante lisboeta terá evidenciado tal pasmo que a moradora francesa se desfez então em explicações e justificações. Teria chegado à vila, como a passeadora, há coisa de três anos, na expectativa de poder aproveitar uma imagino que legítima reforma tranquila em terras azeitonenses. Tinha comprado aquela moradia, feito obras, trazido de França os seus haveres e o marido, mais que disposta a viver entre os berberes católicos que nós, portugueses, somos.
 
O problema da compra de casa é que, ao contrário do que acontece com a compra de carro, não dá para fazer um test run, isto é, dormir nela um par de noites antes de entregar o cheque para sinalizar o contrato de compra e venda. Comprada, restaurada e mobilada a casa, só quando para lá foi viver se apercebeu que tinha chegado, não ao paraíso, mas ao inferno: faça dia ou noite, verão ou inverno, o ladroar dos três cães da moradia em frente nunca pára e multiplica-se quando alguém, particularmente alguém que passeia incauto o seu cão, passa pela rua. Há três anos que a senhora se queixa em vão aos vizinhos, à junta de freguesia, à GNR e, mais recentemente, à psicoterapeuta.
 
Cansada de tanto encolher de ombros das autoridades e de tanto receituário de anti-depressivos, optou desesperada por aquele inaudito último recurso: pedir a quem passa pela rua que por ali não passe, para que os cães enclausurados na moradia fronteira não se manifestem tanto; suplicar aos viandantes que aceitem prescindir do seu direito ao espaço público porque os vizinhos não prescindem de abusar de um mais que duvidoso direito privado a prender cães ruidosos no seu quintal.
 
Fiquei sem perceber qual a resposta ao pedido porque, entretanto, um grupo de motoqueiros chegou ao café e as conversas foram abafadas pelo ronronar dos motores de grande cilindrada. O ruído e o cheiro que as motas exalavam ditaram a minha fuga precipitada do local. Contente por não ter cão que entrasse em pânico com as motas, fui passear pela rua direita cogitando sobre o pedaço de história que tinha ouvido. Até que alguém me apresente argumento em contrário, vou assumir que Azeitão é uma vila onde, com dificuldade, coabitam três castas: os “locais”, os “lisboetas” e os “estrangeiros”, que interagem mas não se confundem, se confrontam mas não dialogam. Vou também assumir que esta dinâmica social é bem conhecida das “autoridades” que, face às tensões que a coabitação gera, optam por fazer o que os enforcers do Estado costumam sempre fazer: alhear-se quando as normas legais ameaçam alterar o frágil equilíbrio das relações de força entre as castas em confronto.
 
 
Jornal de Azeitão, Abril 2023
Tags:
0 Comments



Leave a Reply.

    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

    Archives

    March 2025
    June 2024
    September 2023
    August 2023
    July 2023
    March 2023
    November 2022
    October 2022
    September 2022
    August 2022
    July 2022
    May 2022
    April 2022
    February 2022
    January 2022
    November 2021
    October 2021
    September 2021
    August 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    April 2020
    March 2020

    Categories

    All
    Ambiente
    Arrabida
    Arte
    Censura
    Comuns
    Conflito
    Diario De Noticias
    Digital
    Etiopia
    Gentrificacao
    Historia
    Jornal De Azeitao
    Mobilidade
    Mobility
    O Publico
    Oralidade
    Palestina
    Pandemia
    Pandemic
    Pesca
    Política
    Pollution
    Poluicao
    Portugal
    Risco Rodoviario
    Ritual
    Turismo
    Ucrania
    Universidade
    Urbanismo

    RSS Feed

Powered by Create your own unique website with customizable templates.