John Kegan, no seu reputado livro The History of Warfare, sublinha que não existe um conceito universal de “guerra”, porque a prossecução, percepção e compreensão da guerra é sempre ditada e condicionada culturalmente, apesar de, em si, a “guerra” ser um diálogo intercultural (geralmente violento) de transferência de ideias e tecnologias.
A dado passo da sua obra, apresenta-nos um caso raro de sageza na recusa de uma nova tecnologia militar, em função da preservação de um modo de conceber e fazer a guerra: a introdução de armas de fogo no Japão, no séc. XVI, foi entusiasticamente acolhida e os senhores da guerra japoneses lançaram-se numa verdadeira corrida às armas, produzindo versões cada vez mais aperfeiçoadas de arcabuzes, em quantidades cada vez maiores. O arcabuz mudou a face da guerra no Japão, causando carnificinas tais que, finalmente, levaram os senhores da guerra a reunir-se e decidir proibir a produção e uso de armas de fogo. Regressaram à forma tradicional japonesa de fazer a guerra, com arcos, flechas, sabres e paus, até que, no final do séc. XIX, britânicos e norte-americanos as reintroduziram, quando começaram a interferir na vida política e económica japonesa, em nome da modernização e ocidentalização do país.
Vem isto a propósito de uma nova tecnologia digital e do seu potencial destrutivo: a chamada “inteligência artificial”. Dizem alguns críticos que o termo é enganador porque sugere que os modelos de linguagem artificial são fruto de pensamento consciente. Pouco importa para o caso que quero aqui discutir: o uso cada vez mais generalizado destes modelos, em particular do muito bem-sucedido ChatGPT, na vida quotidiana, e em particular no ensino. Apresentando-se como uma ferramenta neutra e bem-intencionada de suporte informativo, tem, no entanto, duas faces sombrias. Por um lado, está longe de ser um suporte neutro e de valor público, já que os seus algoritmos são de uma companhia privada, sujeitos a instruções e condicionamentos que nos são inacessíveis, e dependentes de uma base de dados que é sobretudo norte-americana. Por outro, coloca o seu utilizador perante um paradoxo de difícil resolução: como simula ser uma entidade pensante, que responde com frases complexas e oferece uma mediana de informações convencionais, oferece-nos a ilusão de que estamos perante uma entidade pensadora que concede, a pedido do utilizador, acesso gratuito a textos organizados, que este pode “roubar”, fazendo-os passar como seus sem ser acusado de plágio.
É possível fazer uso criativo e crítico desta ferramenta, como bem mostra, por exemplo, a poetiza alemã Monika Rinck. Mas, no geral, o que promove é profunda preguiça mental e – o que é particularmente grave no processo de ensino – uma alteração profunda e com consequências imprevisíveis na aprendizagem e uma possível redução das capacidades de construção de textos e argumentos, para além de limitar a compreensão crítica da informação disponibilizada, que se apresenta como sumamente confiável. No estado actual, não prevejo que seja exequível fazer como os senhores da guerra japoneses: decidir por consenso suspender o uso desta tecnologia, cujos malefícios facilmente arriscam ser muito maiores que os benefícios.
O ChatGPT é um novo instrumento de imersão no mundo digital que pode ter efeitos devastadores. Arriscamo-nos a estar a prender as nossas capacidades intelectivas no interior de um batiscafo que se afunda no oceano com uma quantidade limitada de oxigénio e pouca ou nenhuma possibilidade de regresso à superfície.
Por mim, vejo a redenção no desligarmo-nos do mundo digital, como profetiza E. M. Foster no conto The machine stops, e na valorização do que podemos aprender no (que resta do) mundo analógico. Sentado à mesa do café da aldeia, ouço correr histórias sobre vidas passadas: os miúdos que se reuniam junto ao poço a jogar ao berlinde, os bailaricos no Verão e a matança do porco no Outono, os beijos roubados no virar da esquina, o labor nos campos e os tratamentos da bruxa com novelo e agulha para tirar o mau-olhado, o cheiro da urze e do estrume, as queimaduras do ferro de engomar aquecido a carvão, as zangas entre primos, o rapaz que fugiu para ir trabalhar na cidade, a tia que fazia milagres com a máquina Singer e um metro de chita estampada, os burros albardados a passar a ribeira no Porto de Cambas a caminho da feira de Azeitão...
O que vemos e o que imaginamos, o que ouvimos contar, o que cheiramos e saboreamos é essencial para conhecermos o mundo que está para além e para aquém dos “modelos de linguagem”. É parte fundamental da nossa inteligência natural e eficaz vacina contra a estupidez de nos submetermos à “inteligência artificial”.
PS: li agora que, nos céus da Ucrânia, voam drones kamikaze que, graças à “inteligência artificial”, funcionam de forma totalmente autónoma, identificando e destruindo alvos sem intervenção de operadores humanos.
Jornal de Azeitão, Julho 2023