“Eles [os estrangeiros] vêm para cá cheios de massa e compram as melhores quintas. E quando morrerem, como é que vai ser? Vai voltar tudo à mesma, na é? Que os filhos deles não vão querer saber disto aqui.”
A palavra “retórica” tem, ao longo da sua longa história, recebido imerecida má fama. Talvez porque Platão, supostamente seu pai, a concebeu como epíteto insultuoso no diálogo Górgias. Rhētorikē, dizia, era o discurso lisonjeiro e persuasivo que ele atribuía ao grupo dos fi lósofos sofi stas a quem se opunha. Comparava-o às artes culinárias que mascaram o mau alimento com sabores apetecíveis. Nascida com tal fardo, múltiplos foram quem, desde o seu discípulo Aristóteles, a procuraram redimir, sobretudo evidenciando a importância do seu estudo como técnica argumentativa.
Sendo a argumentação inerente à expressão verbal do pensamento, compreender o seu escopo, entender as suas possibilidades e variações, e prevenir as suas falhas – as falácias – são as bases essenciais de qualquer interpretação, análise e crítica da comunicação humana. A retórica é, portanto, simultaneamente uma arte (a arte da persuasão) e uma ciência (o estudo da argumentação). Sendo assim, em tal perspectiva, não se limita à oratória, mas infi ltra toda a acção social humana. Formular bons argumentos é um passo vital para uma persuasão saudável – porque a rhētorikē é aliada do logos –, assim como saber identificar maus argumentos é a primeira linha de defesa contra o abuso do psevma (inverdade).
Tristemente, nem a oratória nem a análise argumentativa merecem acolhimento nos programas educativos em Portugal, do ensino básico ao universitário. Um minuto de visionamento do canal Parlamento ou de qualquer debate e comentário político tornam claro que a classe política lusa, espelho aumentado da nação, não tem qualquer preparação ou inclinação para formular argumentos, contrapor ideias, modular discursos, de forma elegante, persuasiva e coerente. Seja na política, nos tribunais, ou nas conversas de café, o diabo da falácia esvoaça livremente, reinando incontestado sobre a comunicação verbal. E, tal como acontece com a palavra falada, também a escrita portuguesa não se sabe submeter ao rigor do entimema. Qualquer historiador diplomado da literatura comparada poderá confirmar que as letras portuguesas são um deserto onde o bom tropo não medra, e que o Padre António Vieira não foi exemplo, mas antes foi solitária excepção – se ele foi o “imperador da língua portuguesa”, foi-o na total ausência de súbditos e seguidores.
Vem tudo isto a propósito de duas coisas. Sendo eu o pior dos etnógrafos, raramente me engajo em interacções sistemáticas com informantes nativos que me permitam extrair informações relevantes com valor heurístico, sobre matérias sócio-culturais. Mas, ainda assim, não perco ocasião para “me pôr à conversa” com gentes locais, e ouvir com atenção e deleite o seu fluir discursivo, entremeado como está habitualmente de falácias, umas óbvias, outras subtis. São, frequentemente, parte de um processo de averiguar, sem pretender ser conclusivo, a validade do anteriormente aprendido. Um tópico que ressurge cada vez mais é o do “estrangeiro”. Ele são os “franceses”, que se instalam na vila e se reúnem na patisserie; os “holandeses” que preferem as aldeias e as hortas, os “suecos” e “americanos” que exsudam ouro, e por aí fora. Cada episódio anedótico sobre a presença dos “estrangeiros” nas terras azeitonenses vem complementar outros dez, e ajuda a medrar novas ideias feitas. De algum modo, os “estrangeiros” são um pouco como os monstros dos bestiários medievais: na sua etimologia, o termo “monstro” é significa “mostrar” – os “monstros” eram (e são ainda) imaginados como o espelho que se encontra para além dos limites da normalidade humana. A imaginação azeitonense do “estrangeiro” tem a mesma qualidade: é uma possibilidade retórica renovada em cada conversa, um tropo que ajuda a determinar a identidade sempre escorregadia do que é ser nativo.
A generalidade dos epistemólogos das ciências sociais olha para os métodos e resultados do labor dos antropólogos com medidas várias de desconfiança. Irrita-os a repugnância destes em relação aos métodos quantitativos, a sua tendência para o barroco literário, o gosto de circular braviamente entre o infinitamente pequeno e local e o grande modelo explicativo. Sem me querer estender aqui sobre o tema, direi apenas que duas das fórmulas argumentativas preferidas da escrita em antropologia são a “comparação” e a “ilustração”. Sendo que a primeira assenta sobre um dogma virtualmente indemonstrável, que é o de que é possível comparar o incomparável que são as múltiplas variações da vida social, a segunda é um pecadilho sem perdão, que supõe que a informação proveniente de uma conversa com um “nativo” pode magicamente ser convertida em asserção de natureza indutiva com valor geral. Os antropólogos são useiros e vezeiros nesta prática: recolher asserções “no terreno” e assentar nelas teses abstractas, sem se preocuparem com a falácia óbvia que é inerente a tal processo argumentativo.
Ainda bem que me reconheço como fraco etnógrafo. Caso contrário, poderia tentar-me a concluir coisas completamente disparatadas sobre o modo como os azeitonenses vêm os “estrangeiros” que por cá se instalam. Mas a pergunta em epígrafe não deixa de ter interesse – retórico, pelo menos.
Jornal de Azeitão, Março 2024