MANUEL JOÃO RAMOS
  • Home
    • English >
      • Blog
      • Publications
      • Graphics
      • Videos
      • About Me
      • Contact
    • Português >
      • Publicações
      • Arte Gráfica
      • Vídeos
      • Sobre Mim
      • Contacto
      • Politica de privacidade

​Como cozer uma lagosta

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
Eu sei que é egoísta pensar assim, mas esta coisa do aquecimento global tem por vezes efeitos locais simpáticos. Poder disfrutar de céu limpo e temperatura amena às portas do inverno é um deles. Também sei, claro, que as lagostas e as rãs só se dão conta de que estão a cozer quando já é demasiado tarde para espernearem, e que a espécie humana não parece mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos.
 
Assim estou, à beira da época do Natal, a apreciar o burburinho do fim de semana numa esplanada da vila, sem casaco de penas, barrete ou luvas. Como se fora passerelle de um filme de Fellini, vejo desfilar pela rua direita magotes de licrociclistas, enxames de motoqueiros de cabedal, ranchos de enoturistas gringos, e cardumes de SUVs negros. As amitas alfacinhas chilreiam à volta das mesas, os nepotes azeitonenses aborrecem-coçando esquinas, e os pés-descalços aguardam a carreira buzina na paragem do Rossio. Omnipresente nas mãos, nas bolsas e nas orelhas, lá está o rectângulo telemóvel a lembrar que o que vemos é apenas parte do que se passa à nossa volta. A dimensão oculta da matrix conecta tudo e todos, fazendo transbordar o iminentemente pessoal para o globalmente colectivo – através dos servidores que, no Nebraska, lançam ondas de ar quente para as correntes convectivas dos ventos alísios.
 
É uma platitude dizer que o telemóvel entrou nas nossas vidas e que, a par com óbvios benefícios, trouxe uma multitude de novos problemas para os quais não estamos cognitivamente preparados e cuja resolução dependeria de consensos sociais que estão longe de existir – parcialmente porque a discussão pública é, ou mal dirigida, ou demasiado fragmentária. Filhos que são mais filhos do tiktok que dos seus pais naturais, casais que se desunem perante a palavra-passe que interdita o acesso à intimidade do parceiro, gente de costumes suaves que se transforma em turba injuriosa no ventre das “redes sociais”, roubos de identidade, exploração comercial de dados pessoais, espiolhamento por governos estrangeiros... Problemas que as regulamentações estatais e supra-estatais não resolvem, apenas mitigam.
 
Viktor Mayer-Schönberger, um investigador de nome improvável, escreveu há uns anos um livro que marcou o meu olhar sobre o mundo contemporâneo: Delete, the virtue of forgetting in a digital age. Delete é uma palavra inglesa polissémica: significa tanto “apagar”, “suprimir”, “anular” como “cancelar”. O sentido, no contexto do livro, é referência directa à ubíqua tecla de qualquer keyboard de computador, aquela que se encontra no topo direito dos teclados e serve para, precisamente, “apagar” ou “anular” uma acção de digitação. A ideia central do livro é que a humanidade tem vivido há muitos milhares de anos numa idade estritamente analógica, afinando e modelando formas culturalmente variadas para garantir que, das múltiplas acções humanas, algumas possam ser memorizadas e passadas de geração em geração, e outras sejam esquecidas para sempre. Nesta perspectiva, a cultura é vista como um processo de selecção da memória colectiva, de escolha do que cada sociedade prefere lembrar – porque os meios de preservação da memória são (eram) limitados. A invenção dos computadores, da internet, dos telemóveis, etc., inaugurou uma nova idade do Homem: a idade digital, em que o esquecimento deixou de ser possível, ou pelo menos deixou de ser controlado por processos de selecção cultural, e pelos indivíduos-utilizadores. Os servidores não apagam nada, não esquecem nada, a não ser por decisão empresarial discricionária, ordem governamental irrevogável, ou avaria técnica irresolúvel. O passado reverte-se sem controlo sobre o presente, ameaçando a relevância e a sobrevivência da transmissão cultural analógica.
 
Porque a espécie humana não é mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos, quando nos apercebermos da dimensão da tragédia que é o nosso sonambúlico mergulho colectivo na era digital será tarde demais. Vamos cozer em águas de “inteligência artificial”, se é que não grelhamos antes sob o inclemente estio de Dezembro.
 
 Jornal de Azeitão, Dezembro 2023​
Tags:
0 Comments



Leave a Reply.

    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

    Archives

    March 2025
    June 2024
    September 2023
    August 2023
    July 2023
    March 2023
    November 2022
    October 2022
    September 2022
    August 2022
    July 2022
    May 2022
    April 2022
    February 2022
    January 2022
    November 2021
    October 2021
    September 2021
    August 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    April 2020
    March 2020

    Categories

    All
    Ambiente
    Arrabida
    Arte
    Censura
    Comuns
    Conflito
    Diario De Noticias
    Digital
    Etiopia
    Gentrificacao
    Historia
    Jornal De Azeitao
    Mobilidade
    Mobility
    O Publico
    Oralidade
    Palestina
    Pandemia
    Pandemic
    Pesca
    Política
    Pollution
    Poluicao
    Portugal
    Risco Rodoviario
    Ritual
    Turismo
    Ucrania
    Universidade
    Urbanismo

    RSS Feed

Powered by Create your own unique website with customizable templates.