Assim estou, à beira da época do Natal, a apreciar o burburinho do fim de semana numa esplanada da vila, sem casaco de penas, barrete ou luvas. Como se fora passerelle de um filme de Fellini, vejo desfilar pela rua direita magotes de licrociclistas, enxames de motoqueiros de cabedal, ranchos de enoturistas gringos, e cardumes de SUVs negros. As amitas alfacinhas chilreiam à volta das mesas, os nepotes azeitonenses aborrecem-coçando esquinas, e os pés-descalços aguardam a carreira buzina na paragem do Rossio. Omnipresente nas mãos, nas bolsas e nas orelhas, lá está o rectângulo telemóvel a lembrar que o que vemos é apenas parte do que se passa à nossa volta. A dimensão oculta da matrix conecta tudo e todos, fazendo transbordar o iminentemente pessoal para o globalmente colectivo – através dos servidores que, no Nebraska, lançam ondas de ar quente para as correntes convectivas dos ventos alísios.
É uma platitude dizer que o telemóvel entrou nas nossas vidas e que, a par com óbvios benefícios, trouxe uma multitude de novos problemas para os quais não estamos cognitivamente preparados e cuja resolução dependeria de consensos sociais que estão longe de existir – parcialmente porque a discussão pública é, ou mal dirigida, ou demasiado fragmentária. Filhos que são mais filhos do tiktok que dos seus pais naturais, casais que se desunem perante a palavra-passe que interdita o acesso à intimidade do parceiro, gente de costumes suaves que se transforma em turba injuriosa no ventre das “redes sociais”, roubos de identidade, exploração comercial de dados pessoais, espiolhamento por governos estrangeiros... Problemas que as regulamentações estatais e supra-estatais não resolvem, apenas mitigam.
Viktor Mayer-Schönberger, um investigador de nome improvável, escreveu há uns anos um livro que marcou o meu olhar sobre o mundo contemporâneo: Delete, the virtue of forgetting in a digital age. Delete é uma palavra inglesa polissémica: significa tanto “apagar”, “suprimir”, “anular” como “cancelar”. O sentido, no contexto do livro, é referência directa à ubíqua tecla de qualquer keyboard de computador, aquela que se encontra no topo direito dos teclados e serve para, precisamente, “apagar” ou “anular” uma acção de digitação. A ideia central do livro é que a humanidade tem vivido há muitos milhares de anos numa idade estritamente analógica, afinando e modelando formas culturalmente variadas para garantir que, das múltiplas acções humanas, algumas possam ser memorizadas e passadas de geração em geração, e outras sejam esquecidas para sempre. Nesta perspectiva, a cultura é vista como um processo de selecção da memória colectiva, de escolha do que cada sociedade prefere lembrar – porque os meios de preservação da memória são (eram) limitados. A invenção dos computadores, da internet, dos telemóveis, etc., inaugurou uma nova idade do Homem: a idade digital, em que o esquecimento deixou de ser possível, ou pelo menos deixou de ser controlado por processos de selecção cultural, e pelos indivíduos-utilizadores. Os servidores não apagam nada, não esquecem nada, a não ser por decisão empresarial discricionária, ordem governamental irrevogável, ou avaria técnica irresolúvel. O passado reverte-se sem controlo sobre o presente, ameaçando a relevância e a sobrevivência da transmissão cultural analógica.
Porque a espécie humana não é mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos, quando nos apercebermos da dimensão da tragédia que é o nosso sonambúlico mergulho colectivo na era digital será tarde demais. Vamos cozer em águas de “inteligência artificial”, se é que não grelhamos antes sob o inclemente estio de Dezembro.
Jornal de Azeitão, Dezembro 2023