MANUEL JOÃO RAMOS
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A tragédia etíope e o autismo português

6/9/2021

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Em 1984, no pico da fome no norte da Etiópia, contavam-se em Portugal várias anedotas sobre etíopes (do género: “Se uma etíope come um grão de arroz parece que está grávida”). Que me lembre, partilhar anedotas foi a única resposta portuguesa à tragédia. Dado o profundíssimo desconhecimento, neste país, das realidades do Corno de África, estas anedotas tinham por função cristalizar estereótipos veiculados pela comunicação social da altura: a Etiópia como país da fome e da miséria extremas. As transmissões televisivas dos horrores da fome etíope não suscitaram em Portugal outra reacção que não uma chacota desumanizadora. O subtexto que justificava esta reacção era que “coisas destas” aconteciam porque os etíopes são africanos e porque os africanos não são gente como “nós”. As anedotas brotavam, portanto, do fértil terreno do preconceito racial que o processo de descolonização não soube resolver.
 
Do corpus de anedotas de etíopes, uma destacou-se claramente. Dizia o seguinte:

Uma equipa de ajuda humanitária portuguesa visita um campo de refugiados etíopes. Bate à porta de uma tenda para oferecer apoio. Do interior, vem uma voz muito fraca: “quem é?” Um dos voluntários informa: “somos uma missão humanitária portuguesa.” A voz responde, ainda mais fraca: “já demos, já demos...”
 
Não houve, evidentemente, nenhuma missão humanitária enviada pelo governo português para a Etiópia, pelo que esta anedota, contada já durante o maciço movimento de apoio internacional encabeçado por Bob Geldorf, continha um tom auto-crítico que se dirigia sobretudo à aparente incongruência de Portugal, um país pobre e mergulhado numa perene crise económica, ter sido aceite no clube de países ricos que era a então Comunidade Económica Europeia.
 
Contei várias vezes esta anedota a amigos e conhecidos etíopes, em parte como medida profilática em relação a quaisquer ilusórias esperanças suas de colaboração com as entidades governamentais portuguesas. O período febril da cooperação europeia com África, de 2000 até à crise de 2008, suscitou um inusitado aprofundamento de relações diplomáticas e comerciais dos países do sul da Europa (sobretudo Itália e Espanha) com o continente africano. Portugal procurou – sem ter evidentemente os meios e capacidades para tal – acompanhar este movimento. A aproximação à Etiópia era considerada neste contexto um imperativo, dado que Adis Abeba, albergando a sede da União Africana, era e é o centro da diplomacia internacional no continente. O triunfalismo que acompanhou a organização da segunda cimeira Europa-África em 2007, durante a presidência portuguesa da EU, foi efémero, revelando as autoridades portuguesas clara falta de preparação e um conhecimento muito limitado das realidades africanas que ficam para além do dito “espaço lusófono” (é inesquecível o episódio do almoço de carne de porco oferecido a dignatários muçulmanos).
Nas últimas duas décadas, tomei conhecimento de inúmeras tentativas de colaboração e de intervenção portuguesa na Etiópia, as quais sempre resultaram em estrondosos e expectáveis fracassos, geralmente causados pelo facto de o notável voluntarismo do empenho individual esbarrar sempre com o muro impenetrável da pequenez de visão e do espírito burocrático que marca a diplomacia política, cultural e económica portuguesa. Uma das mais absurdas iniciativas foi – ou é - o das comemorações dos 500 anos de relações diplomáticas entre Portugal e a Etiópia, uma tentativa canhestra de rivalizar com os programas de intervenção espanhola e brasileira naquele país. Este programa foi lançado em 2014 – ano em que (não) se celebrou o meio milénio da chegada do primeiro embaixador etíope à corte real portuguesa – e é previsto terminar em 2026 – quinhentos anos após o regresso da primeira embaixada portuguesa ao reino abissínio. Poderia ter sido uma oportunidade imperdível de lustrar os pergaminhos das relações históricas entre os dois países, e por extensão entre os dois continentes (afinal, foi a primeira troca de embaixadas entre a Europa e África). Em vez disso, este programa de celebrações constitui-se como anedótico e risível símbolo das imensas limitações da diplomacia portuguesa naquele continente.
 
Presentemente, a Etiópia encontra-se mergulhada numa horrenda guerra civil que ameaça transformar-se num desastre comparável ao de 1984. A espiral da escalada militar naquele que é um dos países mais populosos de África coloca em risco o requisito estratégico de estabilidade numa das regiões mais sensíveis para a economia mundial, o Mar Vermelho. São múltiplos os relatos de atrocidades praticadas sobre as populações, e têm proliferado as previsões de uma próxima catástrofe humanitária e de uma eventual fragmentação do país. Fico por isso boquiaberto com o total autismo que, tanto as autoridades como a população portuguesa, têm revelado. Estando a história de Portugal, em particular nos séculos XVI e XVII, ideologicamente tão entretecida com a da Etiópia, este autismo, este alheamento, não é apenas desumanizador em relação ao presente sofrimento de milhões de pessoas. É sinal de uma alienação colectiva que vem comprovar a acuidade da auto-crítica da acima-citada anedota sobre a missão humanitária portuguesa no campo de refugiados etíopes. Fico sem saber o que é pior: se contar anedotas estúpidas sobre gente que morre à fome, se nem sequer dedicar um segundo de atenção para as criar e contar.
 
 O Público, 18/08/2021
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