Os analistas políticos mais cínicos têm avançado a tese de que o ainda primeiro-ministro António Costa, ao despoletar a crise do chumbo do orçamento e a consequente dissolução do parlamento, tinha na mira pensar primeiro em si, depois no PS, e finalmente no país, e que há muito se prepara para dar o salto para novas paisagens. Com o balanço de seis anos de convívio com a política internacional, especula-se até quão longe conseguirá pular e onde irá aterrar. Parlamento europeu, Comissão Europeia, Nações Unidas? Sabemos apenas que esta modalidade de trampolim está há muito instituída nas olimpíadas da política nacional. Os casos mais mediáticos do “princípio de Eleutério” são os de António Guterres e de Durão Barroso. Tendo falhado na sua função governativa, durante a qual acumularam contactos telefónicos de Peters externos, catapultaram-se para lugares de grande responsabilidade na política internacional. O país ficou não apenas aliviado, mas reconhecido por este exercício de ginástica individual, por estes golos dignos de botas de ouro contribuírem para a ilusão de que Portugal é mais que um irrelevante e marginal pedaço de terra infértil encravado entre a Europa e o mar salgado.
Do que faz Durão Barroso hoje em dia, à sombra de Bill Gates, não temos muita informação. Já Guterres não passa um dia sem estar nas bocas do mundo. No passado dia 5 de Novembro, ao fim de um ano de desentendimentos internos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou finalmente uma tíbia declaração conjunta apelando ao cessar-fogo na Etiópia. Esta declaração surge na sequência da publicação de um relatório conjunto do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e da Comissão Etíope dos Direitos Humanos sobre múltiplos massacres, execuções sumárias, violações em série e intenções de extermínio étnico, que evidenciam práticas constantes de atentado aos direitos humanos e configuram crimes contra a humanidade. O relatório foi parcialmente aceite pelo governo etíope, mas liminarmente recusado pelos rebeldes da região do Tigré, que alegam que a participação de um órgão dependente do governo na sua redacção lhe retira legitimidade e neutralidade. As Nações Unidas alegam que, sem a participação da comissão etíope, não teriam tido possibilidade de acesso à informação, mas passam sobre silêncio o facto de a investigação ter descartado totalmente o contributo do governo regional tigrino e cedido à pressão do governo federal etíope para estender aos rebeldes as acusações de crimes praticados essencialmente pelas tropas etíopes e eritreias, e retirar do texto quaisquer palavras que possam sugerir intenções genocidas.
Durante um ano, a mortífera e brutal guerra civil na Etiópia desenrolou-se longe dos olhares do mundo, conduzida por uma figura enigmática: Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro do governo federal, saudado internacionalmente como democrata reformador, nomeado prémio Nobel da paz em 2019, doutorado em resolução de conflitos, coronel do exército federal, ex-responsável pelos serviços de “inteligência” etíopes, muçulmano convertido ao evangelismo milenarista, ex-guerrilheiro de um grupo aliado dos tigrinos que tomaram o poder em 1991, após a deposição do regime militar comunista liderado por Mengistu Haile Maryam. Poucas pessoas para além do júri de doutoramento leram a sua tese, segundo a qual o “capital social” de uma população sai reforçado através da guerra contra o inimigo interno ou externo. E por isso ainda menos pessoas perceberam por que razão, no último ano, ele se tinha aliado com o vizinho inimigo, o regime eritreu, para eliminar os rebeldes tigrinos, segundo ele as “ervas daninhas”, o “cancro”, que invade a Etiópia e ameaça a sua destruição.
Muitas responsabilidades pela dramática situação e pela enorme crise humanitária na Etiópia têm sido assacadas aos diversos intervenientes internos. Mas as responsabilidades das Nações Unidas e, em última análise, as que cabem ao seu secretário-geral só pontualmente têm sido referidas publicamente. A relação das várias agências das Nações Unidas a operar no país com o governo federal tem sido, no mínimo, tumultuosa: em certos casos cúmplice, noutros irresponsável e autofágica, noutros ainda submissa aos interesses de certas grandes potências. A sua acção tem sido minada pelo governo etíope, posta em causa por desentendimentos entre quem opera no terreno e quem decide em Genebra e em Nova Iorque, paralisada por ausência de autoridade central e de financiamento local. Entre os vários escândalos reportados conta-se o da incapacidade de providenciar ajuda humanitária e alimentar a várias regiões afectadas pela guerra, a evidência de caos e desregulamento nas operações de logística e transporte, conflitos internos, desautorizações e suspeitas de inconfidencialidade que resultaram na expulsão de vários altos funcionários, etc. Num país tão habituado à presença de organizações internacionais, este caos não pode deixar de ter um responsável máximo: o secretário-geral das Nações Unidas, que, sempre vestido com o manto da moralidade missionária católica, não admite a sua pusilanimidade face a uma situação interna complexa que lhe é opaca, nem o facto de que a displicência com que se permitiu uma resposta falhada ter contribuído para o agravar do conflito e para colocar aquela organização sob a suspeita de estar a ser manipulada pelos interesses de certas potências ocidentais.
Gostamos de acreditar que a incompetência de Eleutério se transforma magicamente em competência além-fronteiras. É um pouco como acreditar em unicórnios. Pena é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão não estejam hoje disponíveis para nos elucidar sobre as habilitações necessárias para roçar ombros com as elites internacionais – para ser secretário-geral, presidente de comissão, administrador de banco, director de fundação ou alto representante. Estou certo de que nos ajudariam a adivinhar em que prateleira estrangeira iremos em breve encontrar António Costa.
O Público, 9 Novembro 2021