MANUEL JOÃO RAMOS
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cuidado com o sapo

23/11/2022

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É muito fácil dar a outrem o direito a ter um ponto de vista distinto e até oposto ao nosso. Muito mais difícil é dar ao ponto de vista de alguém precedência sobre o nosso. Isso só pode acontecer se conseguimos alterar o ponto de vista do outro para que se assemelhe ao nosso, ou então quando nos apropriamos do seu ponto de vista tornando-o nosso.
 
Ao longo de séculos, uma relação especial desenvolveu-se entre as comunidades sedentárias portuguesas e grupos de comerciantes e trabalhadores nómadas que se cria virem do Oriente, próximo ou longínquo (do noroeste da Índia, diz-se; do Egitpo, pensava-se). Embora estes grupos se autodenominassem como rom, receberam vários epítetos, geralmente com entoações depreciativas: zíngaros, manuches, caloms, ciganos. A história deste relacionamento é complexa e pouco clara, porque grande parte dela tem sido feita através de um jogo de percepções e contra-percepções que raramente foram tidas como merecedoras de registo escrito. Mas não será de todo infundado sugerir que foi neste relacionamento secular especial, feito de desconfiança mútua, desconhecimento e preconceito recíprocos, que muitos portugueses optaram por canalizar as suas pulsões xenófobas, etnocêntricas e porventura desumanizadoras. Os “ciganos” são o nosso outro preferido, sobretudo porque a comunidade rom desenvolveu discursos e práticas de autodefesa que assumem uma forma a uma vez confrontadora e oportunística, que pode por vezes ser profundamente desconcertante: reconhecendo a dificuldade de superar o estatuto de comunidade subalterna e excluída que lhe é atribuído exteriormente, não largam mão do seu direito a ser comunidade e reter teimosamente as suas marcas identitárias, que geralmente se expressam através de um arreigado conservadorismo cultural.
 
Tive uma vez uma longa conversa com o pai de uma amiga valenciana, decano de uma orgulhosa família gitana. Falou com grande admiração da força do tradicionalismo dos “ciganos” portugueses, notando que tendo estes, ao contrário das comunidades da Europa de Leste, perdido o conhecimento da língua e religião romani, mantinham ainda assim virtualmente intactas diversas tradições e instituições que os seus congéneres espanhóis, obviamente muito mais integrados socialmente, tinham há muito abandonado. Esta visão feita ao arrepio da imagem consolidada do gitano tradicional espanhol – muito por efeito da dignificação do flamenco como forma musical nacional – levanta um interessante véu sobre os efeitos identitários da exclusão social secular a que os “ciganos” portugueses têm sido submetidos.
 
Quem passeia por Azeitão não pode deixar de notar que os portões e muros de muitas moradias ostentam figuras de cerâmica vidrada representando sapos. Não é, como se depreende, uma especificidade da vila. Os sapos de louça são tão caraterísticos das casas e lojas portuguesas como os duendes dos jardins irlandeses, os laços amarelos das varandas norte-americanas, os deuses elefantes no subcontinente indiano, e os gatinhos de porcelana que abanam a pata direita na China. Menos famosos mundialmente que os pastéis de nata, já mereceram ainda assim reportagens do canal televisivo Al Jazeera.
 
Segundo a sabedoria popular e o Google, a colocação de figuras de sapos em montras e prateleiras de lojas, assim como em portões, muretes e relvados de moradias, é suposto afastar qualquer incauto membro da comunidade “cigana”, que terá um pavor irracional de sapos, na medida em que representam beng, uma figura diabólica, e são usados em rituais de magia negra. Não posso asseverar que todos os comerciantes e habitantes que dispõem figuras de sapos à vista de todos acreditam de facto que eles têm o poder de amuleto capaz de afastar alguém, assim como estou muito longe de crer que alguém entre em estado de pânico ao ver um anfíbio de porcelana pintada de verde. Mas, ao ouvir e ler ao longo dos anos tantos depoimentos de diversos concidadãos meus, posso confirmar que o diz que disse levou a uma convicção generalizada de que essa é a razão pela qual estes sapos vidrados proliferam em Portugal.
 
No entanto, é importante referir o seguinte, para melhor enquadrar a questão dos sapos e da xenofobia lusa. A literatura enciclopédica tardo-romana e medieval associa regularmente os sapos a práticas de feitiçaria, a malefícios, nomeadamente devido à crença de que cuspiam veneno. Os bestiários, que não distinguiam os anfíbios dos répteis, descreviam-nos como animais diabólicos, mas que, sendo terráqueos e frios como as salamandras, a sua pele e ossos podiam ser, secos, usados como protecção contra os efeitos do calor ou ataques de animais. Tal como acontecia com certas serpentes lendárias, imaginava-se que guardavam na cabeça uma pedra preciosa que podia ser usada como antídoto contra envenenamento. As recolhas de folclore europeu também referem que, sendo tradicional certas mulheres romani praticarem bruxaria e adivinhação, e usarem sapos em encantamentos e em curas medicinais, foi por extensão criada uma ligação entre o receio de sapos e a desconfiança em relação à comunidade rom.
 
O antropólogo James George Frazer, que dedicou muitas páginas ao estudo do pensamento mágico, falava da lei do contágio segundo a qual uma crença psicológica de que, quando duas pessoas ou coisas entram em contacto, uma ligação persiste, cujos efeitos maléficos só poderão ser anulados através de rituais de purificação ou de esconjuro, ou pela utilização de amuletos. Os sapos de louça poderiam, nesta perspectiva, ser interpretados como fetiches que, representando um animal associado aos rom, teria o poder de enfraquecer os poderes maléficos que lhes são atribuídos. No entanto, estou mais tentado a ver os sapos de louça como subtil manifestação da capacidade humana para criar e manter mal-entendidos. Os portugueses estabeleceram um conjunto de associações confusas entre crenças tradicionais: entre poderes diabólicos e sapos, entre sapos e a prática de bruxaria, entre bruxaria e o povo rom, e acabaram por acreditar que os rom tinham, por misterioso contágio, adquirido o medo de sapos que era anteriormente o medo dos portugueses. O uso de sapos de louça para afastar “ciganos” segundo a crença de que eles teriam medo de sapos reais tornou-se num sinal claro de que quem os coloca em portas de casa e prateleiras de loja tem medo de “ciganos”. Assim, uma pessoa a quem é atribuído o epíteto de “cigano”, ao ver um sapo de louça numa casa ou loja, fica a saber que o seu proprietário é medroso e, porque quem tem medo se pode tornar violento, prefere não entrar para não ser sujeito à agressão por palavras ou actos xenófobos.
 
Que fique claro: não pretendo com este texto convencer nenhum leitor, nem espero ser convencido a colocar sapos de louça no portão de minha casa.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2022
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