MANUEL JOÃO RAMOS
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A Serra-catedral

27/8/2020

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O mundo lá fora dilacera-se entre variegadas investidas das políticas identitárias contra os ideais liberais da representação democrática, suportadas por sedes populistas e inclinações autoritaristas. A milésima metamorfose do capitalismo procura, pela calada, tirar proveito de crises existenciais declaradas ou previstas – corrupções, poluições, migrações, propagações virais e redes digitais. O mundo lá fora parece profundamente desequilibrado.
O ínfimo refúgio bucólico que é a Serra da Arrábida conserva – por enquanto, pelo menos – o poder encantatório, se não de nos fazer olvidar o mundo em desequilíbrio, de diminuir em muito o seu domínio sobre as nossas consciências. Ajuda, nesta empresa, ler Frei Agostinho da Cruz e Sebastião da Gama, dois poetas separados por quatro séculos, mas unidos pelo misticismo religioso e pela branda paisagem da estreita faixa arrabidina.
 
Escrevia o primeiro:
Alta Serra deserta, donde vejo
As águas do Oceano duma banda
E doutra já salgadas as do Tejo.
 
E o segundo respondia:
A Serra é catedral
Onde o órgão-silêncio salmodia.
 
As horrendas agressões que a sangram e desfiguram – a cimenteira de um lado e as pedreiras do outro, o casario informe que mastiga as suas bordas e brota no seu mato, o asfalto que lhe rasga as entranhas – enfraquecem mas não lhe extinguem o potencial contemplativo e a força refrigéria.
A insanidade humana deixa impunes e torna irreversíveis os actos assoladores de quem se arroga o direito de os cometer. Mas a serra absorve-os, dissolve-os e perdoa na sua brandura os algozes. A cimenteira injectada no Outão deveria ser encerrada, mas os poderes renovam-lhe a licença por mais umas décadas? Seja. A pedreira que, por gesto iníquo a Casa de Palmela concedeu nas traseiras do Calhariz continua a comer a montanha? Seja. O Palácio dos Duques de Aveiro salvo da demolição e salga na voragem do processo dos Távoras sobreviveu séculos para se plasmar agora em “hotel de charme”? Seja. O extraordinário convento arrabidino arruinou-se nas mãos de uma seita de origem coreana e é agora pousada disfarçada de uma fundação gestora do dízimo dos casinos macaenses? Seja. Os japoneses do Agar-Agar saquearam todo o coberto submarino que fazia da costa sul da Arrábida um dos mais preciosos berçários piscícolas do Atlântico Leste? Seja.
Na sua bonomia, indiferente à mesquinhez das coisas humanas, a serra-catedral tolera, perdoa, sorri – mesmo se lhe topamos, ou imaginamos topar, trejeitos tristes nos seus cantos silenciosos. A dança da orografia garante-lhe por mais uns milénios não apenas solidez mas mesmo um ligeiro incremento do alçado – ao fim e ao cabo, a serra ergueu-se das águas, empurrada pela força das placas tectónicas, e não se entrevê o seu afundamento em futuro de médio prazo.
E se a sua cobertura vegetal única de cotovelo mediterrânico enfaixado no Atlântico um dia se perder por incêndio malicioso ou catastrófica mudança climática? Será triste ver a linha do seu cabeço descabelada, mas ainda assim a catedral continuará a ser catedral, até ao dia em que os últimos fiéis deixem de a frequentar e de nela buscar refúgio do mundo lá de fora – que seja para aí rezar em desespero por uma qualquer salvação temporal, ou mais singelamente para nela contemplar as silhuetas inescrutáveis da eternidade.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2020

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