MANUEL JOÃO RAMOS
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O Inferno do Paraíso

20/7/2022

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Fui espreitar na grande cacofonia – ou melhor, na cacoletria - que é a internet alguma informação sobre a origem do provérbio “a palavra é de prata, o silêncio é de ouro”. Não me admirou que o ruído de links me tenha dirigido para detritos verbais incongruentes entre si. Segundo alguns, o provérbio é chinês; segundo outros é árabe, segundo outros ainda é judaico, aramaico, egípcio ou latino.
 
O significado é facilmente entendível: a comunicação verbal é preciosa, mas o seu valor é tanto mais apreciado quanto melhor respeitemos as pausas, os hiatos, as fermatas. Frequentemente, a primeira parte da frase é truncada e então o provérbio perde o seu valor propositivo. Torna-se uma expressão idiomática denominativa, que remete ainda assim para uma imagem de valor extra-linguístico: dizemos que “o silêncio é de ouro” porque atribuímos a este metal um valor inestimável.
 
No seu livro A Utopia, o filósofo Thomas More descreve a Ilha de Amaurota, uma sociedade imaginada onde a harmonia social é conseguida graças ao respeito estrito dos direitos individuais e colectivos, garantidos pela natureza igualitária do seu sistema político e económico. Aqueles que, por uma razão ou outra infringem estas regras são castigados de forma original: são forçados a carregarem pesadas correntes de ouro, tornando-se objecto de troça e vexame pelos seus conterrâneos. Em Amaurota, o silêncio não é de ouro, não porque não seja valorizado mas porque, sendo a sociedade harmónica e assente no respeito equitativo dos direitos cívicos, o ruído – a poluição sonora – é abominável, e quem o produz sujeito ao vexame público.
 
É parte do espólio da sabedoria popular o conhecimento de que os povos do norte da Europa, onde prevalecem formas diversas de protestantismo, uma fé que sobrevaloriza os direitos individuais, são por regra intolerantes ao ruído provocado pelos vizinhos, ao contrário dos povos do sul da Europa e da orla do Mediterrâneo, onde a tolerância à invasão sonora, assim como à invasão física do território pessoal, é muito elevada. Seja na Suíça calvinista ou na Suécia luterana, não passa pela cabeça de ninguém desrespeitar horários de descanso, subir o volume da televisão a níveis que incomodem a vizinhança, conduzir motorizadas sem silenciador no escape, ou permitir que festas privadas ou públicas sejam realizadas em zonas residenciais.
 
Fascinados como os portugueses são pelo ouro, se não desde que os romanos começaram a explorar minas no Tejo, pelo menos desde que o Brasil começou a ser sistematicamente saqueado no séc. XVIII, é curioso ver como são tão pouco sensíveis à ideia de que “a palavra é de prata”. A oratória não é, em definitivo, uma arte que se tenha fixado na nossa vida pública. Padres Antónios Vieiras são, em Portugal, mais raros que o ouro – que digo eu? Que a platina, o paládio, ou o irídio. Basta comparar um debate parlamentar português com um britânico, uma palestra de catedrático luso com a de um alemão, um sermão de padre minhoto com o de um sacerdote holandês, para nos certificarmos que, pura e simplesmente, somos rudes, toscos e impolidos no que respeita ao uso da palavra. Em Portugal, a palavra é de lata, e o silêncio é de pirite.
 
Diga-se que a pirite é, desde tempos imemoriais, conhecida como o “ouro dos tontos”. Este dissulfeto de ferro, sendo relativamente abundante e por isso pouco valioso, tem um brilho metálico e uma cor amarelo-dourada que o confunde com o “mais nobre dos metais”, tendo sido muitas vezes usado para defraudar incautos.
 
Em Azeitão, como em inúmeras outras regiões do país, a poluição sonora – o ruído – é uma triste constante. Acelerar em mota de 750cc pelo centro ou pela periferia da vila, deixar as crianças à solta aos gritos nas piscinas das vivendas, fazer festas de kuduro até às tantas da madrugada, pôr betoneiras a trabalhar às oito da manhã de domingo, ou deixar os cães a ladrar dia e noite junto ao portão, são comportamentos anti-sociais que no entanto são tomados como direitos inalienáveis de quem acha que os vizinhos e concidadãos são meros papalvos, tontos cujos direitos não são equiparáveis aos de quem grita mais, ou de quem faz mais ruído.
 
Não aprecio o anglicismo agora popularizado de bullying para designar atitudes intimidantes e abusivas nas escolas. Mas para explicar o que se passa em termos de ruído em Azeitão serve perfeitamente. A vila está cheia de bullies, gente que acha que o seu estatuto social e económico tem de ser anunciado aos quatro ventos através do ruído. Olhem para mim: tenho uma piscina; Vejam: tenho uma Ducati 1000; Mirem: estou a pôr mármore na soalheira da porta; Ouçam: tenho uma aparelhagem com woofers XPTO; Ena pá: tenho um rafeiro alentejano com DOP.
 
Dir-se-ia que é função da autarquia, se não contribuir para a educação destes munícipes, pelo menos fazer cumprir a Lei do Ruído. Mas, como um agente do posto da GNR me confessou recentemente, a Câmara é a primeira a dar o mau exemplo, atribuindo licenças para festas que se prolongam até às duas e três da manhã.
 
Numa vila assim, num país assim, quem pede que se respeite o sono, o descanso, a paz, passa inevitavelmente por tolo.
 
  Jornal de Azeitão, Junho 2022

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A Tragédia dos Comuns

30/5/2022

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A Quinta da Periquita, na Aldeia da Portela, hoje um “alojamento local” propriedade de investidores estrangeiros para uso de clientes também maioritariamente estrangeiros, não é propriamente um exemplo de quinta histórica ao contrário, por exemplo, da Quinta de Santo Amaro, da Quinta das Donas, ou do Casal do Bispo (a antiga Herdade da Infanta). O edifício foi reconstruído há pouco mais de 40 anos, pelo Juiz Francisco Rolão Preto, filho e homónimo do polémico monárquico integralista.
 
A quinta e o edifício em si não têm nada de particularmente notável, tirando a vista magnífica dos contrafortes da Serra da Arrábida. Para mim, uma parte do seu charme está na ligação indirecta a Rolão Preto pai. De cada vez que passo pela Estrada dos Barrancos, à saída do Largo da Portela, relembro-o, não tanto porque foi o fundador dos Camisas Azuis, o entusiasmado jovem de inclinações falangistas que conviveu com a família de Primo de Rivera, mas porque, enquanto fundador da Convergência Monárquica e posteriormente do Partido Popular Monárquico, foi um dos principais representantes do desditoso movimento comunitarista português. De facto, a mais interessante parte da sua obra literária é precisamente aquela que ele dedica à longa história do comunitarismo em Portugal e à defesa desse ideal.
 
Essa corrente silenciosa e grandemente silenciada pretende (ou pretendeu, porque hoje pouca coisa de discussão política corre ou sequer escorre em Portugal) reviver ideias e práticas seculares de organização social local de tendências colectivistas que se cristalizaram durante a Idade Média e foram progressivamente desarticuladas à medida que o Estado se centralizava e o Direito perdia o seu tertium genus, que era o direito comum para vantagem do binómio público/privado.
 
O direito ao uso comum de terras foi consagrado juridicamente nas Ordenações Manuelinas: para “os haverem por seus ou por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras”, porque “proveito comum e geral é de todos haver na terra abastança de pão e outros frutos”. Desde então, foi retrocedendo até praticamente desaparecer do Direito Civil durante o Estado Novo, ressurgindo timidamente na legislação posterior ao 25 de Abril de 1974.
 
No norte do país, como na Galiza, o uso comunitário dos baldios e a defesa da propriedade comunal está ainda viva, mas o facto de o poder autárquico se poder imiscuir na sua gestão tem resultado em infelizes atropelos ao direito comum, em benefício dos cofres de juntas de freguesia que cedem os baldios para, por exemplo, colocação de parques de eólicas em elevações ventosas. Sem estruturas, ideias ou pessoas que o defendam, o espaço do direito comunitário (que os ingleses designam como law of the commons, distinta da common law) é consumido pelo direito público e pelo direito privado.
 
A Serra da Arrábida está cheia de espaços baldios, de práticas comunitárias (ou pelo menos da sua memória). Mas, num mundo em que prevalecem os interesses públicos e privados, não podemos senão assistir saudosos à lenta morte trágica dos comuns. O caso, reportado nos jornais, da polémica em torno dos direitos comunitários no que respeita ao uso colectivo de espaços nas margens e interior da Herdade da Comenda (o parque das merendas junto à Ribeira da Ajuda, o acesso à praia, o caminho de Santiago) é claro sinal do estado comatoso em que se encontram hoje os ideais comunitaristas. A indignação popular contra as vedações instaladas pelo novo dono da Comenda, o fundo imobiliário Seven Properties, da Mirpuri Foundation, levou a que os setubalenses se concentrassem para gritar “A Comenda é nossa!” em 2019, numa manifestação em defesa do interesse comum. Mas rapidamente a autarquia se acaparou do processo, que a partir daí se transformou num jogo político no qual o direito público (nomeadamente o do embargo) tem digladiado contra o direito privado dos fundos de investimento turístico. E, por esta via, o direito dos comuns se vai esboroando até desaparecer, como uma praia sem areia na maré cheia.
 
 Jornal de Azeitão, Maio 2022
 
 
 
 

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Grande 25 de Abril

30/5/2022

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Não há quase terra portuguesa onde o 25 de Abril não seja invocado, em largos, ruas e avenidas. Mais precisamente, contam-se 1.600 atribuições da data, e dos seus correlatos Movimento das Forças Armadas, Capitães de Abril e Revolução de Abril, no conjunto dos municípios portugueses. Apenas 20 concelhos, todos no norte do país, não o celebram na sua toponímia, entre eles Santa Comba Dão, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro e Proença-a-Nova. Há um modesto 25 April Close, em Oldham, na periferia leste de Manchester, uma  Avenue d'Avril 25, no bairro Woluwe-Saint-Lambert, em Bruxelas, um Calle 25 de Abril em Veracruz, no México.

Curiosidade enciclopédica, o 25 de Abril é celebrado em Portugal, naturalmente, mas também em Itália, como o dia da Libertação Nacional no final 2ª Guerra Mundial; na Austrália, Nova Zelândia, Tonga e Samoa, lembrando o dia em que os ANZAC desembarcaram em Galipoli, na Turquia; na Alemanha, como Dia da Árvore; no Egipto, como o Dia da Libertação do Sinai; na Coreia do Norte, como o Dia do Exército Popular; na Suazilândia, como o Dia da Bandeira Nacional; e no Cazaquistão, como o Dia do Futebol. As Nações Unidas celebram-no como o Dia Mundial da Malária e o Dia do ADN. Actualmente, o 25 de Abril já não é comemorado em Israel, onde a assinatura dos Acordos de Camp David, em 1982, deixou de ser motivo de júbilo, nem na Etiópia, porque a comemoração da devolução do Obelisco de Axum, em 2005, transportado para Roma pelo exército italiano em 1937, foi introduzida pelo governo liderado pelos tigrínios – que se encontram agora em guerra contra o novo poder em Adis Abeba.

Várias comemorações da Igreja ortodoxa caem falsamente no 25 de Abril: a eliminação de 13 dias em Fevereiro, aquando da adopção do calendário gregoriano na União Soviética, e a criação do calendário juliano revisto fizeram que várias comemorações de santos tenham passado para o dia 12 de Abril: São Basílio, o Confessor, Zenão, Bispo de Verona, Santo Isaac, o Sírio , os Mártires Mina, David e João, a Virgem Anfusa de Omónia,  Atanásia de Egina, bem como a comemoração do ícone Murom da Mãe de Deus.

Na Roma antiga, o festival da Robigalia realizava-se também a 25 de abril, em homenagem ao deus Robigus. Era um festival agrícola que tinha lugar na fronteira do Ager Romanus, num bosque que se situava ao longo da Via Claudia, dedicado à protecção dos campos cerealíferos; Verrius Flaccus refere que, além de vários jogos, o festival incluía um sacrifício do sangue e vísceras de um cachorro não desmamado.
Azeitão e Sesimbra concorrem para esta comemoração pública com aquela que é possivelmente uma das longas e mais estranhamente designadas avenidas do país. A Avenida 25 de Abril tem não menos de 31 quilómetros e liga o Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel à aldeia de Cabanas onde, entre a Farmácia Graça e as instalações do Grupo Popular Recreativo Cabanense, se metamorfoseia em Avenida Visconde do Tojal. É um topónimo que se acoplou à mais banal nomenclatura oficial das Estradas de Portugal: a Avenida 25 de Abril recobre boa parte da N379 (não confundir com a N379-1 que, junto à costa, liga a cimenteira da Secil a Casais da Serra).
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Perguntar-me-ão qual o interesse de debitar aqui dados de Wikipedia. É simples: quis saber onde iam parar as águas das enxurradas que descem a Rua da Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense e que, devido à falta de escoamento (alguém poupou ali muito em sarjetas), vertem sobre as laterais destruindo muros e inundando o casario, nos meses de Janeiro e Fevereiro. Foi assim que fiquei a saber que esta descaracterizada artéria, em que os moradores consideram ser perfeitamente razoável estacionar sempre os carros em cima do passeio apesar de ela ser a mais larga e mais vazia das vias urbanas de Azeitão, termina na N379 ou, como o GoogleMaps me ensinou, na Avenida 25 de Abril. O assunto não tem de facto interesse nenhum, até porque, com os impactos do aquecimento global, as enxurradas de inverno parecem ser coisa do passado.
 
Jornal de Azeitão, Março 2022
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A Magia de coina

3/4/2022

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Há, sobre o conjunto das cidades, vilas e aldeias portuguesas, um tesouro de curiosas elucubrações saídas da pena de corógrafos locais que abnegadamente especulam, no espírito filológico de Giambattista Vicco, sobre o porquê das várias toponímias locais e fabricam explicações fantasiadas sobre as suas origens. Tenho por hábito ler estes tratados amadores, com admitida inveja da liberdade criativa e do enciclopedismo caoticista que anima quem os escreve. À sua maneira, são actos de prestidigitação intelectual que, como num espectáculo de magia, despertam no leitor um estranho enlevo, o de querer ser convencido do que suspeita ser impossível: acreditar que a assistente do mágico está a ser serrada a meio, sabendo que não o está a ser, não é muito distinto de acreditar que Ulisses fundou a cidade de Lisboa que não fundou.

Os exemplos desta inventividade etimológica não só se multiplicam, de norte a sul do país, e do interior à costa, como se correspondem e dialogam entre si. As correspondências fonéticas entrelaçam-se com evocações pseudo-históricas e imaginações arqueológicas, em fantásticos cenários onde celtas, iberos, fenícios, romanos e árabes são liberalmente convocados para dar conta do rol de topónimos cujo sentido primordial não conseguimos captar. Imaginamo-lo enterrado sob o pó da passagem dos tempos, enclausurado por trás de muros linguísticos, esvanecido pela luz dos tempos presentes. E, sabendo que os meios de prova são praticamente nulos, gostamos ainda assim de crer nos devaneios dos corógrafos.

A região da Arrábida tem, neste cômputo, a sua quota-parte de especulações etimológicas. Desde logo o nome da serra, árabe sem dúvida, porque não é preciso duvidar. Setúbal, celta romanizado claro. Sesimbra, humildemente originária do zimbro, fosse ele árabe ou latino. Azóia, Alfarim e Aiana, árabes também. Mas, e o Meco? Vá-se lá saber. Azeitão, árabe certamente. Palmela, do latim “pequena palma”. E Coina?

Coina é um topónimo anatematizado por várias gerações de gracejos juvenis. A Coina actual, a norte da Quinta do Conde, é banhada por uma ribeira do mesmo nome, hoje praticamente invisível, que desagua num braço do Tejo, junto ao Barreiro. Foi conhecida como Coina-a-Nova, para a distinguir – claro – de Coina-a-Velha. Desenvolveu-se como centro industrial que aproveitava a navegabilidade da ribeira para expedir a produção da Real Fábrica de Vidros Cristalinos, que D. João V aí mandou instalar. Por sua vez, Coina-a-Velha era o nome de uma povoação sobranceira ao Porto de Cambas, ponto a partir do qual a ribeira, cuja nascente é a Serra do Risco, se tornava navegável. Em finais do séc. XVII, foi rebaptizada com o nome de Aldeia de Nossa Senhora da Piedade, hoje simplesmente Aldeia da Piedade, por iniciativa do então proprietário da Quinta das Donas, Diogo da Silva de Carvalho.
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No vizinho Casal do Bispo, fronteiras à ermida seiscentista de São Pedro, localizam-se as ruínas de um antigo castelo, diz-se de origem árabe, destruído em data indeterminada após a morte de Dom Sancho I, que teria feito, com os de Sesimbra e Palmela, parte da linha defensiva muçulmana da península de Setúbal. Aí, também, foram encontrados vestígios de um povoado pré-histórico. Chega-se lá através da “estrada dos romanos”, uma estreita via que parte do cruzamento da estrada Azeitão-Sesimbra com a que leva, por Casais da Serra, ao Portinho. Esse seria o Castelo de Coina, cujo nome tem sido objecto de esparsas indagações, que repetem sempre a mesma explicação: Coina nasceu como corruptela – culpa dos árabes? – do topónimo latino Equabona (ou seria Aquabona?). Equabona vem referida no Itinerário de Antonino, do séc. III, como estação da estrada que ligava Olisipo a Ebora, por via de Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal). Não há qualquer referência precisa à sua localização, nem qualquer indicação de como ou quando Equabona se transmutou em Coina. Deste “castelo dos mouros”, subsistem ainda sinais de muralhas e torres, e de uma cisterna. O corógrafo oitocentista Joaquim Rasteiro reporta sobre o castelo uma versão local de uma lenda medieval de tons moralistas: o castelo teria três quartos subterrâneos, um já descoberto (a cisterna) onde eram depositadas as armas, e outros dois – um com ouro e outro com peste - que ninguém se atreve a explorar com receio de, ao procurar o ouro, encontrar a peste.
O leitor não pode deixar de se maravilhar com a audácia dos corógrafos que, quais prestidigitadores, serram a meio as palavras modernas para expor o ouro dos seus sentidos originais, sem receio de lá encontrar a peste do absurdo.

Jornal de Azeitão, Fevereiro 2022
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A escura, enigmática, Arrábida

4/2/2022

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O Dunkles rätselhaftes Österreich (“A Escura, enigmática, Áustria”), de 1994, é a segunda parte de série pseudo-documental Das Fest des Huhnes ("O banquete do frango”) de Walter Wippersberger. Trata-se de uma sátira mordaz ao tradicional género do documentário cultural, em que o antropólogo (europeu ou norte-americano) visita e dá a conhecer ao público (europeu ou norte-americano) os costumes exóticos de populações tradicionais africanas ou ameríndias. Um antropólogo africano fictício, Kayonga Kagame, apresenta o programa Fremde Länder, Fremde Sitten (“Terras estrangeiras, costumes estranhos”) na fictícia estação de televisão AllAfricanTele. O antropólogo dá a conhecer ao seu público (supostamente africano) os exóticos costumes dos povos selvagens do Tirol austríaco, entrevistando os habitantes locais e explicando os seus estranhos hábitos ancestrais. Na parte final do filme, procura entender o enigmático ritual tirolês de subir em perigosa peregrinação ao topo das altas montanhas dos Alpes para depois, colocando pedaços de madeira nos pés, as voltar a descer aproveitando as encostas nevadas, e finalmente engorgitar generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio. É uma divertida visão das práticas do alpinismo e do esqui de montanha, olhadas de um imaginário ponto de vista africano que revela o absurdo do esforço e do risco físico de subir montanhas a pulso para depois, com não menos risco, as descer esquiando em grande velocidade.
 
Hoje em dia, não só há inúmeros sites na internet anunciando percursos pedestres nos trilhos da Serrra da Arrábida mas proliferam as micro-empresas oferecendo caminhadas guiadas através dos variados pontos cénicos do parque natural, de Azeitão ao Creiro pela Serra do Risco, do Castelo de Sesimbra às pegadas de dinossauro do Cabo Espichel, de Palmela à contracosta. Graças às benesses do aquecimento climático, têm-se multiplicado os fins de semana ensolarados, mesmo em pleno inverno, o que constitui irrecusável magnete para que uma cada vez mais apreciável franja da população citadina, lusa ou estrangeira, venha calcorrear os ancestrais trilhos arrabidinos. Uma destas propostas caminhadas é a que, saindo do Rossio de Vila Nogueira, ou da vizinha Fonte dos Pasmados, ruma a sul ziguezagueando pela inicialmente suave inclinação das faldas da Serra do Risco, para finalmente enfrentar os contrafortes do Alto do Formosinho, ou Monte do Alvide, e visitar o chamado “Castelo dos Mouros” (antes também conhecido como o “Jogo dos Mouros”), o local de um antigo povoado fortificado da Idade do Bronze alcandorado na crista norte da serra, no esporão calcário bem visível para quem, sem precisar arriscar-se na prática montanhista da Serra do Risco, mira a paisagem a partir das esplanadas dos cafés da Rua José Augusto Coelho.
 
Ora, se bem que os anúncios dos percursos pedestres refiram habitualmente que o trilho do “Castelo dos Mouros” segue o traçado ancestral dos acessos proto-históricos ao topo da serra, geralmente pouco se estendem sobre a história que medeia entre a Idade do Bronze e a época actual. No fundo, a história da carochinha que os sites e anúncios contam tem uma leveza narrativa muito símil à dos condutores de tuk-tuks que oferecem visitas guiadas ao casco histórico da cidade de Lisboa. São constituídos por pedaços de frases rapinadas de outros sites ou de documentos em formato PDF facilmente encontráveis numa busca por palavras-chave num qualquer browser. Nem se lhes pede mais, nem os clientes caminheiros querem saber mais. Pouco interessa, para a prática do alpinismo arrabidino, saber que a passagem do Alto do Formosinho é um os marcos mais pregnantes do antigo Círio da Nossa Senhora da Arrábida, e que a sua memória se tem diluído na consciência histórica das autoridades locais azeitonenses, a tal ponto que a romaria, que antes era realizada no Dia do Espírito Santo, em finais de Maio, acabou por ser deslocada para o mês de Julho, para coincidir com as recentemente fabricadas “Festas da Arrábida e Azeitão”. Também pouco ou nada interessa, aos caminheiros urbanos e aos seus guias turísticos, saber que na sexta-feira de Páscoa os mais ousados preferem deixar o carro em casa e sobem os trilhos da serra até ao Alto do Formosinho, para depois descer a encosta sul até à praia do Creiro onde engorgitam generosas quantidades de um líquido amarelado com teor alcoólico médio, não a acompanhar um banquete de frango como os tiroleses, mas preferivelmente uma feijoada de choco.
 
O final do filme de Wippersberger foca-se na invasão estival do Tirol por exércitos motorizados de turistas alemães e na relação subserviente que os tiroleses, por um lado tão ciosos da sua cultura independente, mantêm com os invasores endinheirados, abrindo-lhes as portas das suas casas e banqueteando-os com pratos da culinária local. Esta cínica referência aos efeitos perversos do turismo austríaco encontra, como bem sabemos, ecos óbvios na forma como o poder local e os empreendedores da vila abraçam os cifrões que pingam do irreversível e acrítico processo de turistificação da “Arrábida e Azeitão”.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2022
 
 
 
 
 
 
 
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Em defesa do direito à romaria

8/1/2022

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Durante o séc. XIX, o estudo das sociedades e culturas era determinado por uma intenção manifestamente etnocêntrica. Supunha-se uma linha de evolução justificativa da superioridade civilizacional e intelectual do Ocidente, e equacionava-se a variedade cultural com uma incomprovada graduação das capacidades mentais. A “primitividade” dos costumes de certas sociedades era entendida como manifestação de pobreza de espírito, como estupidez colectiva. Ao longo do séc. XX, a crítica desta visão auto-centrada conduziu à valorização da riqueza e complexidade de culturas antes vistas como frustres e incivilizadas. O pressuposto anterior foi substituído por um novo, o da inteligência colectiva, como fonte da qual emanava harmonia social e criatividade cultural. Consequentemente, pressupor a existência de uma “estupidez colectiva” tornou-se tabu, particularmente entre antropólogos.
E, no entanto... quando olhamos em nossa volta, sentimos por vezes que o velho ditado castelhano sobre as bruxas se aplica a este tópico: “Yo no creo en estupidez colectiva, pero que la hay, la hay”. Isto poderia vir a propósito da aparente fatalidade do destino suicidário do ser humano actual, irremediavelmente decidido a destruir o equilíbrio ambiental que lhe assegura a sobrevivência. Mas prefiro não erguer tão alto a minha arrogância reprobatória, e ficar-me por um bem mais modesto exemplo: o da relação difícil que os portugueses parecem ter com o debate intelectual no que respeita ao tema, a uma vez jurídico, patrimonial e económico, dos “comuns” (a própria estranheza lexical do termo, tradução literal do inglês commons, sugere já ausência de reflexão e debate público sobre o assunto). Os “comuns” constituem-se como o terceiro e muito desdenhado pilar da teoria do Direito, habitando um espaço ambíguo entre o público e o privado. Em Portugal, o Direito dos “comuns” reporta-se explicitamente à gestão comunitária de terrenos incultivados, ou “baldios”. Herança de formas de auto-organização local, o comunitarismo é, no entanto, muito mais que simples gestão colectiva de terrenos de pasto por comunidades locais. É uma antiga instituição cultural que, desde a alta Idade Média, insinua uma importante brecha na concepção dualista que reduz as relações jurídicas e sociais à antinomia entre público e privado, no Direito romano.
Se olharmos em volta com um pouco de atenção, percebemos que os “comuns” não se limitam aos “baldios”. Por exemplo: a caça e a pesca são, em grande medida, usos individuais de bens comuns; assim também a vivência colectiva em espaços urbanizados, a gastronomia, e as múltiplas formas de conhecimento, tanto analógico como digital. O ar que respiramos, o mar onde nos banhamos e a terra que cheiramos são bens comuns, não públicos ou privados. Mais ainda, a própria ausência de reflexão sobre este assunto é manifestação de um outro direito comum: a estupidez colectiva (também lhe poderíamos chamar de “burrice comunitária”).
Reparei que a Quinta de El Carmen, na falda ocidental da Serra da Arrábida, se encontra à venda, pelo valor milionário de 12 milhões de euros, mas nada vem dito sobre o direito de romaria à sua ermida, nem ninguém parece querer preocupar-se com o assunto. A ermida foi privatizada pela 2ª Duquesa de Aveiro, a espanhola D. Madalena Girón, em 1560, que a ampliou e lhe atribuiu o nome presente, em honra de Nossa Senhora do Carmo (ou Del Carmen). Construída num ermo ou “baldio” que as comunidades locais usavam para a pastorícia e a obtenção de lenha e, em particular a aristocracia residente, como couto de caça, a ermida era anteriormente dedicada a Nossa Senhora da Pinha. Como a ermida do Cabo Espichel ou a do convento da Arrábida, é um antigo local de romaria local, como atesta a lenda do marido ciumento que Nossa Senhora impede de matar a mulher, atirando-lhe uma pinha à cabeça. Foi construída pelos mordomos da zona de Azeitão e paga por esmolas das comunidades. Atestam-se, ao longo dos séculos, bailes e representações dramáticas no adro da ermida. Em 1714, há notícia de que o Cabido de Lisboa mandou afixar uma nota pastoral na porta da igreja, suspendendo as festividades, sob pena de excomunhão, já que, aparentemente, não eram “tão honestas como era razão que fossem”. Os habitantes dos Casais da Serra e das Pedreiras fazem anualmente romarias à Capela de El Carmen, uns na quinta-feira de Ascensão e os outros a 18 de Agosto. Sendo parca a documentação histórica, comprova ainda assim a antiguidade das missas cantadas, dos sermões, dos arraiais com baile, e das refeições comensais.
Entalado entre o Direito público, que gere as relações entre os cidadãos e o Parque Natural da Arrábida, e o Direito privado que define os direitos e deveres de propriedade da Quinta de El Carmen, o Direito dos “comuns”, nomeadamente aquele que rege romarias, procissões, e até a apanha de pinhas, ervas aromáticas e caracóis nas faldas da serra, definha porque não encontra quem perceba a sua importância como garantia de sobrevivência de valores culturais. A estupidez colectiva é uma importante causa da "tragédia dos comuns".
 
 Jornal de Azeitão, Novembro 2021
 
 
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(Ar)riscar o convento

12/11/2021

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Tive, no passado dia 25 de Setembro, a oportunidade de participar numa visita organizada pelo grupo Arrábida Sketchers, a dependência azeitonense da rede Urban Sketchers Portugal, ao Convento de Nossa Senhora da Arrábida. O propósito era deambular pelos espaços daquele conjunto alcandorado na falésia sobranceira à baía do Portinho da Arrábida, e ir aí desenhando livremente.
Seria fastidioso repetir aqui lugares-comuns amplamente conhecidos e reconhecidos sobre a beleza rara da paisagem arrabidina, a harmonia do enquadramento da arquitectura conventual franciscana no espaço natural, e a riqueza das tonalidades cromáticas do prisma formados pela arriba suave, pelo espelho marinho e pelo páramo outonal. Regressar ao espaço do Convento da Arrábida é renovar o deleite dos olhos.
Mas tenho de confessar que, por disposto que estava a deixar-me absorver e arrebatar pela beleza e quietude do local, não pude durante a visita e durante os momentos dedicados ao desenho esquecer o amargo que me causa a história recente daquele espaço. É fácil fazer desenhos “bonitos” sobre o intrincado casario, mas muito mais difícil fazer neles ressoar os achaques de que ele sofre. Neste caso, uma palavra vale mil desenhos.
A brancura do convento é a da tinta plástica para exterior, não a da cal. A textura das paredes é a do cimento industrial, não a do reboco tradicional. A tranquilidade do espaço é equivalente à de um cemitério abandonado, não à da clausura habitada por monges contemplativos. O convento não é hoje mais que um cadáver mumificado que serve de cartão-postal complementar a uma pousada de construção recente, convenientemente acoplada por um parque de estacionamento, uma piscina e uma sala de conferências.
Não é fácil representar através do desenho os efeitos tácteis do restauro feito a cimento e tinta plástica. Por isso, cumpri a missão – desenhar o convento – mas com um amargo de boca e de olhos por não conseguir transmitir os podres da sua situação presente e a sua previsível degradação futura. Restaurar paredes seculares a cimento é condená-las à acção erosiva do salitre e à deterioração estrutural, substituir a cal por tinta plástica é impedir as paredes de respirar e desumedecer sazonalmente.
A Casa de Palmela adquiriu o arruinado e abandoado convento em 1863, após a extinção das ordens religiosas, que ocasionou pilhagens e destruições várias dos seus interiores. Nos anos 50 do século XX, foram realizadas algumas obras de manutenção, mas depois disso o estado dos edifícios voltou a degradar-se rapidamente. Quando a Fundação Oriente comprou o convento e os 25 hectares envolventes em 1990, os telhados encontravam-se parcialmente destruídos e os edifícios ameaçavam ruína.
Graças a um prometido projecto de restauro, a fundação conseguiu erigir em pleno parque natural um complexo turístico de apreciável dimensão, que rentabiliza através do seu aluguer para retiros, colóquios, seminários, cursos, etc. É dado assente que todas estas actividades são complementadas por visitas guiadas ou livres ao espaço do convento, que se tornou assim um anexo recreativo de programas de turismo cultural e académico.
Não me cabe demandar os motivos que levaram a Direcção-Geral dos Monumentos a aceitar que a Fundação do Oriente procedesse à cimentação de uma das mais valiosas pérolas da arquitectura conventual portuguesa. Contra factos ocorridos há trinta anos, os argumentos não passam de chuva no molhado. Mas vale ainda assim a pena lembrar que este “restauro” apressado e invasivo se inscreveu sobre um estado de degradação avançada do convento devida ao facto de o seu anterior proprietário, o duque de Palmela, não ter durante décadas executado quaisquer obras de manutenção e preservação do convento.
A visita às celas dos monges revela ainda hoje os sinais de um curioso e esquecido acto de vandalismo. À excepção de uma cela, onde ainda se encontra um catre de cortiça que era a cama habitual dos frades, todas as outras estão ou vazias ou mobiladas com camas e armários dos anos oitenta. Este triste mobiliário é o que resta da passagem da comunidade Moonie – a comunidade evangélica de discípulos do coreano Reverendo Moon – que ocupou o convento durante mais de uma década com autorização explícita da Casa de Palmela, e muito  contribuiu para a sua degradação.
O republicano que há em mim tem algumas razões para duvidar do espírito conservador dos herdeiros da aristocracia portuguesa. A decisão de Luís de Sousa e Holstein Beck de ceder o convento à comunidade Moonie foi tão azougada como a de ceder ao senhor Alho a exploração das pedreiras que hoje em dia ameaçam fazer ruir o palácio dos Duques de Palmela no Calhariz.
 
 Jornal de Azeitão, Outubro 2021
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O Princípio de Eleutério

11/11/2021

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O Menino Eleutério é, nas “habilitações necessárias para ser ministro”, uma d’As Farpas de Eça Queiroz e Ramalho Ortigão, o jovem promissor que, ao falhar sucessivamente na escola primária, no liceu, na universidade, consegue atrair a atenção do “poder moderador”, vendo a sua incompetência premiada com vários cargos governamentais até finalmente chegar a primeiro-ministro. Ao contrário do “princípio de Peter”, segundo o qual uma pessoa competente no seu trabalho é elevada a posições para as quais é incompetente, o muito mais radical “princípio de Eleutério” enunciado por Eça de Queirós estipula que a incompetência demonstrada por uma pessoa  no seu trabalho é critério essencial para a sua promoção.

Os analistas políticos mais cínicos têm avançado a tese de que o ainda primeiro-ministro António Costa, ao despoletar a crise do chumbo do orçamento e a consequente dissolução do parlamento, tinha na mira pensar primeiro em si, depois no PS, e finalmente no país, e que há muito se prepara para dar o salto para novas paisagens. Com o balanço de seis anos de convívio com a política internacional, especula-se até quão longe conseguirá pular e onde irá aterrar. Parlamento europeu, Comissão Europeia, Nações Unidas? Sabemos apenas que esta modalidade de trampolim está há muito instituída nas olimpíadas da política nacional. Os casos mais mediáticos do “princípio de Eleutério” são os de António Guterres e de Durão Barroso. Tendo falhado na sua função governativa, durante a qual acumularam contactos telefónicos de Peters externos, catapultaram-se para lugares de grande responsabilidade na política internacional. O país ficou não apenas aliviado, mas reconhecido por este exercício de ginástica individual, por estes golos dignos de botas de ouro contribuírem para a ilusão de que Portugal é mais que um irrelevante e marginal pedaço de terra infértil encravado entre a Europa e o mar salgado.

Do que faz Durão Barroso hoje em dia, à sombra de Bill Gates, não temos muita informação. Já Guterres não passa um dia sem estar nas bocas do mundo. No passado dia 5 de Novembro, ao fim de um ano de desentendimentos internos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou finalmente uma tíbia declaração conjunta apelando ao cessar-fogo na Etiópia. Esta declaração surge na sequência da publicação de um relatório conjunto do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e da Comissão Etíope dos Direitos Humanos sobre múltiplos massacres, execuções sumárias, violações em série e intenções de extermínio étnico, que evidenciam práticas constantes de atentado aos direitos humanos e configuram crimes contra a humanidade. O relatório foi parcialmente aceite pelo governo etíope, mas liminarmente recusado pelos rebeldes da região do Tigré, que alegam que a participação de um órgão dependente do governo na sua redacção lhe retira legitimidade e neutralidade. As Nações Unidas alegam que, sem a participação da comissão etíope, não teriam tido possibilidade de acesso à informação, mas passam sobre silêncio o facto de a investigação ter descartado totalmente o contributo do governo regional tigrino e cedido à pressão do governo federal etíope para estender aos rebeldes as acusações de crimes praticados essencialmente pelas tropas etíopes e eritreias, e retirar do texto quaisquer palavras que possam sugerir intenções genocidas.

Durante um ano, a mortífera e brutal guerra civil na Etiópia desenrolou-se longe dos olhares do mundo, conduzida por uma figura enigmática: Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro do governo federal, saudado internacionalmente como democrata reformador, nomeado prémio Nobel da paz em 2019, doutorado em resolução de conflitos, coronel do exército federal, ex-responsável pelos serviços de “inteligência” etíopes, muçulmano convertido ao evangelismo milenarista, ex-guerrilheiro de um grupo aliado dos tigrinos que tomaram o poder em 1991, após a deposição do regime militar comunista liderado por Mengistu Haile Maryam. Poucas pessoas para além do júri de doutoramento leram a sua tese, segundo a qual o “capital social” de uma população sai reforçado através da guerra contra o inimigo interno ou externo. E por isso ainda menos pessoas perceberam por que razão, no último ano, ele se tinha aliado com o vizinho inimigo, o regime eritreu, para eliminar os rebeldes tigrinos, segundo ele as “ervas daninhas”, o “cancro”, que invade a Etiópia e ameaça a sua destruição.

Muitas responsabilidades pela dramática situação e pela enorme crise humanitária na Etiópia têm sido assacadas aos diversos intervenientes internos. Mas as responsabilidades das Nações Unidas e, em última análise, as que cabem ao seu secretário-geral só pontualmente têm sido referidas publicamente. A relação das várias agências das Nações Unidas a operar no país com o governo federal tem sido, no mínimo, tumultuosa: em certos casos cúmplice, noutros irresponsável e autofágica, noutros ainda submissa aos interesses de certas grandes potências. A sua acção tem sido minada pelo governo etíope, posta em causa por desentendimentos entre quem opera no terreno e quem decide em Genebra e em Nova Iorque, paralisada por ausência de autoridade central e de financiamento local. Entre os vários escândalos reportados conta-se o da incapacidade de providenciar ajuda humanitária e alimentar a várias regiões afectadas pela guerra, a evidência de caos e desregulamento nas operações de logística e transporte, conflitos internos, desautorizações e suspeitas de inconfidencialidade que resultaram na expulsão de vários altos funcionários, etc. Num país tão habituado à presença de organizações internacionais, este caos não pode deixar de ter um responsável máximo: o secretário-geral das Nações Unidas, que, sempre vestido com o manto da moralidade missionária católica, não admite a sua pusilanimidade face a uma situação interna complexa que lhe é opaca, nem o facto de que a displicência com que se permitiu uma resposta falhada ter contribuído para o agravar do conflito e para colocar aquela organização sob a suspeita de estar a ser manipulada pelos interesses de certas potências ocidentais.
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Gostamos de acreditar que a incompetência de Eleutério se transforma magicamente em competência além-fronteiras. É um pouco como acreditar em unicórnios. Pena é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão não estejam hoje disponíveis para nos elucidar sobre as habilitações necessárias para roçar ombros com as elites internacionais – para ser secretário-geral, presidente de comissão, administrador de banco, director de fundação ou alto representante. Estou certo de que nos ajudariam a adivinhar em que prateleira estrangeira iremos em breve encontrar António Costa.
 
 O Público, 9 Novembro 2021
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Falemos sobre as publicações académicas

17/10/2021

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O “caso Raquel Varela” é um fait-divers sobre o qual não tenho intenção de me pronunciar, senão na medida em que é uma rara decorrência pública de um imenso escândalo religiosamente escondido do conhecimento geral.
 
Num artigo publicado há alguns anos no The Guardian, George Monbiot referiu-se a este escândalo nos seguintes termos:
 
“Quem são os capitalistas mais implacáveis do mundo ocidental, cujas práticas monopolistas fazem o Walmart parecer uma loja de esquina e Rupert Murdoch um socialista? (...) Não obstante os muitos candidatos, o meu voto vai, não para os bancos, para as companhias petrolíferas ou para as seguradoras, mas para os editores académicos. Este sector pode soar recôndito e insignificante, mas é tudo menos isso. De todos os esquemas fraudulentos, o que eles protagonizam é o que precisa mais urgentemente de ser denunciado às autoridades de concorrência.”
 
O negócio dos editores académicos é multimilionário e as suas margens de lucro líquido anual chegam a ultrapassar os 35%. Três editores controlam praticamente 50% do mercado mundial: a Elsevier, a Springer e a Wiley. E que negócio predatório é esse? Controlando a larga maioria das revistas científicas de acesso fechado, que são aquelas que maior “factor de impacto académico” têm (isto é, as que são mais reputadas), recebem a título gratuito ou até a troco de somas variáveis os artigos provenientes da rede mundial de universidades e laboratórios de investigação. Em seguida,  alugam a leitura desses artigos de novo às universidades e laboratórios, retendo em perpetuidade os direitos de autor. Um artigo científico é o resultado palpável de uma investigação que, em certos casos, pode envolver milhares ou milhões de euros (pense-se, por exemplo, nos recentes programas de investigação sobre o SARS-Cov2). A publicação de artigos científicos é o critério primordial de avaliação universitária em todo o mundo, e a leitura de artigos científicos é o principal mecanismo de transmissão de conhecimento científico em todo o mundo. O público universitário mundial é apreciável: 250 milhões de alunos, 15 milhões de docentes, 10 milhões de investigadores, estudando, ensinando e investigando em mais de 28 mil universidades. Este público leitor, voraz consumidor, é o alvo dos editores académicos, e simultaneamente a força de trabalho produtora do produto que eles captam e redistribuem – como disse acima, retendo sempre os direitos de propriedade intelectual.
 
A transformação das universidades, de edifícios corporativos no sentido medieval em empresas geradoras de lucros, todas elas directa ou indirectamente assentes no modelo anglo-saxónico, contribuiu para estandardizar não apenas estruturas organizacionais e de conhecimento, mas sistemas ideológicos e comunicacionais. Neste modelo, os estudantes deixaram de ser estudantes e passaram a ser clientes pagantes, os graus e certificados transformaram-se em produtos, os docentes foram proletarizados, e as administrações plasmaram as das companhias comerciais e industriais. Proliferaram os  CEOs e FCEOs, instituiu-se a contabilidade analítica com vista ao aumento de margens de lucro, à redução de passivos e à eliminação de sectores não competitivos, numa lógica declaradamente concorrencial.
 
Esta proliferação de universidades e institutos públicos, semi-públicos e privados, geridos como empresas certificadoras de “conhecimento”, é o pano de fundo sobre o qual o negócio dos editores académicos medra imparável. As universidades e laboratórios gastam parte substancial do seu capital na produção de artigos científicos que oferecem gratuitamente aos editores para que estes, após catalogação e bibliometrização, lhos aluguem, seja individualmente ou em pacotes. Face à evidência da fraude, várias universidades norte-americanas e europeias procuraram reagir, ameaçando deixar de adquirir estes pacotes de revistas científicas e procurando promover a publicação em acesso aberto. A resposta dos editores foi adaptativa: renovaram o ataque à reputação das publicações em acesso aberto, consolidaram a imagem de qualidade dos seus produtos e, no caso da Elsevier, pressionaram a União Europeia de forma a tornarem-se o instrumento gestor e certificador dessas publicações que ameaçavam o seu monopólio.
 
A certificação de um artigo ou de uma revista (o seu “factor de impacto”) é feita por mecanismos informáticos, através de algoritmos medidores da quantidade de citações geradas, e não da avaliação interna da qualidade dos argumentos e da sua refutabilidade. Nesta corrida, os falantes de inglês têm uma vantagem indiscutível, já que esta se tornou a língua de comunicação mundial no mundo universitário: uma publicação em inglês “vale” três a cinco vezes mais que em quaisquer outras línguas na avaliação interna anual de um docente ou investigador. E a publicação em revistas de “quartil” superior – geralmente, as que são propriedade do cartel Elsevier-Springer-Wiley – é a única forma de assegurar empregabilidade e progressão na carreira.
 
São as propinas, os subsídios estatais e o chamado mecenato académico, que pagam a investigação científica e consequentemente a elaboração dos artigos académicos. Mal sabem os pais que, encarecidamente, se esbulham para que os seus filhos cheguem à universidade e que se sacrificam para lhes pagar propinas cada vez mais elevadas, que o seu dinheiro serve para alimentar uma das mais rentáveis máquinas de moedas da actualidade. Não admira que uma multidão de milhões de docentes e investigadores faça tudo por tudo para que as suas publicações se multipliquem e cheguem ao topo da colossal e sempre crescente pilha de dados informáticos sobre a qual se ergue o império dos editores académicos.
 
 ​O Público, 5/10/2021

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Uma camba do passado

27/9/2021

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No livro Pensamento selvagem, o falecido antropólogo francês Claude Lévi-Strauss analisa o que ele designa como sistemas de classificação simbólica, ou estruturas de conhecimento que, por detrás da imensa variedade de ideias e práticas culturais, se revelam comuns a toda a humanidade. À data da sua publicação, em 1962, este argumento intelectualista era uma visível provocação às mentalidades que juravam pela superioridade civilizacional e até “rácica” do Ocidente cristão perante o resto do mundo. Mas o livro era também um desafio às interpretações existencialistas de fundo marxista cujo porta-bandeira foi Jean-Paul Sartre. Nesse sentido, os últimos capítulos do Pensamento selvagem tiveram grande impacto sobre a teoria da história. Ficou famosa a sua asserção de que a análise histórica nunca é independente do contexto em que é produzida. Como ele diz, não há história em si, há história para alguém. Para melhor perceber a ideia, tomemos o exemplo português: Oliveira Martins escreveu uma história para o Portugal do fim da monarquia, Damião Peres escreveu uma história para o Estado Novo, José Matoso escreveu uma história para o pós-25 de Abril...
Famosa ficou também a sua proposta de equiparar história e mitologia, nomeadamente no que respeita ao fascínio que os mistérios dos tempos idos têm em nós. Nessa medida, a emoção que o historiador sente perante o original do Tratado de Tordesilhas é equivalente à que um aborígene australiano sente ao tocar um churinga (um objecto oblongo representando antepassados divinizados). Ambos têm o condão de projectar o cérebro humano na voragem da imaginação do passado.
A topografia e a etimologia são também programas de viagens a passados que não podemos senão imaginar. Pouco ou nada na paisagem visível a partir da janela de um carro na N10 ou na N379 nos fala de outra coisa que não desordenamento urbanístico ou de ruralidade decadente. Ao fundo, o recorte suave dos picos da Arrábida lembra-nos a presença e a permanência de uma história que está para aquém e para além de nós – a história geológica. Quase tudo o resto é passageiro e, admitamos, desmemoriado. A patrimonialização superficial de certos edifícios e objectos pouco revela da profusão de transformações que a região e os seus humanos viveram. Mas, para quem quer estar atento, há, contudo, débeis sinais que, seja nos cartapácios que pouca gente lê ou nas placas toponímicas de beira-estrada, permitem que nos transportemos mentalmente para paisagens alternativas e possibilidades de vida distintas.
A placa que identifica a rua do Porto de Cambas, na Aldeia de Irmãos, tem esse estranho poder de nos deixar entrever, na densa névoa da ignorância em que vivemos submergidos, ténues luzes de um mundo desaparecido. A palavra “camba” tem uma etimologia difícil de decifrar. Há quem a dê como de origem céltica, e com o significado de “curva”. Há quem sugira, para certos usos (mais no Brasil que em Portugal), uma raíz do quimbundo angolano. “Cambar”, “cambalear”, “cambalhota” e talvez “cambalacho” estão associados ao sentido de “curvar”. Já “cambada” pode de facto provir de kambo, com o sentido de “fileira de animais ou pessoas”, e reportando-se à ideia de fila ou grupo de escravos.
Se cruzarmos toponímia e cartapácio (o Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso, de 1747, por exemplo), o Porto de Cambas revela-nos um Rio de Coina navegável de Azeitão até ao Barreiro (um tardio subsidiário do Tejo, portanto), e um término onde talvez se desembarcassem escravos africanos para ir trabalhar nos arrozais do Sado (hipótese algo fantasiosa, mas que apela a tentar perceber a origem do toponímico de “Negreiros”), ou se cambassem as velas das barcas para mudar de bordo (hipótese não menos fantasiosa). Fosse como fosse, o desaparecido Porto de Cambas foi até ao século XIX um ponto comunicação vital entre Azeitão e Lisboa: por aí se escoariam o moscatel, o azeite e os produtos hortícolas. E, para que a ténue lamparina da história e da mitologia do concelho ganhe em poder luzente, seria talvez de investigar como, da fábrica real de estamparia de chitas de Vila Nogueira, se transportavam os produtos tecidos. Tendo em conta que era norma as manufaturas têxteis serem implantadas junto de vias fluviais, é bem possível que fosse através do Porto de Cambas, à Aldeia de Irmãos, que a economia proto-industrial azeitonenense respirava.
Cada vez que por lá passo pergunto-me: valerá a pena valorizar estas memórias? A ponte velha ainda por lá está, mas em fase terminal de ruína. Do que foi a fábrica (e anteriormente palácio dos duques de Aveiro) pouco sabe(re)mos, tanto mais que o edifício vai ser esventrado para dar lugar a um hotel, diz-se. O rio foi assoreado, talvez para sempre. E o olhar das entidades autárquicas tem-se revelado demasiado míope para ver mais longe que um cacho de uvas em fibra de vidro.
 
 Jornal de Azeitão, Setembro 2021
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    Manuel joão ramos

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