MANUEL JOÃO RAMOS
  • Home
    • English >
      • Blog
      • Publications
      • Graphics
      • Videos
      • About Me
      • Contact
    • Português >
      • Publicações
      • Arte Gráfica
      • Vídeos
      • Sobre Mim
      • Contacto
      • Politica de privacidade

Ocupação selvagem

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
Faz semanas, pela tarde, num caminho que meandra mais ou menos paralelo à estrada do Parral, ouvi um piar no pinhal – um piar que era mais um assobio assoprado, como de gato assanhado. Não tenho dons de ornitólogo, nem vocação de bird-watcher, mas suspeitei que fosse de cria de coruja. Como cheguei à suspeição, não tenho bem ideia; não sou fã de programas televisivos sobre o mundo natural, nem faço por guardar registo fonográfico de sons de aves. É verdade que, nas minhas caminhadas, vou inconscientemente retendo a profusão de piados, chilreados, cantos e ululares da multitude de espécies de pássaros que têm conseguido sobreviver à omnipresença da praga planetária que é o ser humano. É verdade também que tenho amigos adictos à observação da fauna de tetrápodes avianos, mas não faço por resumir as minhas flanagens florestais ao propósito de classificar plumagens, formas de bico ou desenhos de vôo. O certo é que meti na cabeça que tinha ouvido uma coruja-bebé a chamar pela progenitura.
 
Não terá sido imaginação despropositada. Salta aos olhos – e aos ouvidos – que a fauna ornitóidea arrabidina tem, mal ou bem, resistido aos tiros de caçadeira, aos gases automóveis e à crescente mancha de cimento e tijolo que a assola. Não é como agulha em palheiro o achamento de melros, gaios, piscos, rabirruivos, cotovias, rolas, perdizes e abelharucos; ou de falcões, gaviões, bufos, noitibós e corujas, e, se preferirmos as escarpas e as praias, de gaivotas, maçaricos, mergulhões e cagarras. Mal nos afastamos do bulício urbano e da zoeira dos motores de combustão, mal o manto da desarmonia humana dissipa, logo retomam os cantares dos passeriformes – no fundo do jardim, para lá dos arbustos, ou sob a copa das árvores.
 
Nunca assisti à folclórica visitação das varas de javardos à praia de Galapos, mas posso atestar – por ter visto em primeira mão – que há na serra raposas, gatos bravos, sacarrabos, genetos e doninhas, andorinhões, bufos, peneireiros e até uma outra rara águia de Bonelli, ouriços, cobras rateiras e víboras cornudas. Isto fora a legião de piscos, melros, e carriças.
 
Não é todos os dias, contudo, que nos deparamos com certos ninhos. Há semanas atrás, quando, pela tarde no bastio do vale do Parral, levantei os olhos na direcção da origem do piar que surpreendi e me surpreendeu, deparei com uma colossal e inaudita estrutura de galhos bem no topo de um pinheiro-bravo. Era o ninho de onde o piar assoprado provinha, um ninho visivelmente vetusto e musguento, com vestígios de várias reparações. Ora, sendo que a coruja das torres, a mais comum na zona da serra, é uma ave oportunista, que em vez de fazer ninho se aproveita dos que encontra abandonados, e considerando a dimensão daquele alcandorado nas ramagens da conífera, a conclusão óbvia impôs-se-me: tinha encontrado um velho ninho de águia.
 
Uma vez por outra, é possível avistar, planando nos céus da Arrábida, uma águia de Bonelli. Mais comum, claro, são os falcões e gaviões, e agora mais que há uns anos corvos negros. A presença de um seu ninho abandonado em zona de vale diz, ao amador pelo menos, que o alimento, antes suficiente para que ela ali se fixasse, agora escasseia. Tal como o silêncio dos canários na escuridão das minas sinaliza que o ar está impregnado de monóxido de carbono, o piar de uma coruja-bebé num ninho feito por outrem merece ser tomado, não tanto como garante da saúde da floresta, mas como sintoma de doença grave. Razão de sobra, portanto, para que quem se toma por amante da natureza se abstenha de fazer passeios pela serra.


 Jornal de Azeitão, Fevereiro 2024
Tags:
0 Comments

A arte da observação participante

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
Nos dias finais de 2023 dediquei-me a fazer um levantamento etnográfico nas imediações dos contentores de lixo de Azeitão e arredores. Por efeito de problemas mecânicos e burocráticos do sistema de recolha de resíduos dos serviços autárquicos (aparentemente porque vários camiões avariaram e não puderam ser reparados de imediato), os contentores de lixo deixaram de ser esvaziados com regularidade e todo o tipo de objectos indesejados foi acumulando em seu torno, causando forte impressão visual e olfactiva em quem por eles passava. Não houve qualquer comoção, revolta ou manifestação de desagrado colectiva. Entredentes, aqui e ali, ouvi comentários, geralmente curtos e pouco abonatórios sobre a situação, o que não desincentivou ninguém, claro, de continuar a dar o seu contributo pessoal diário para a acumulação de lixo junto aos contentores.
A listagem, por categorias, dos objectos que se acumularam nesses dias junto aos contentores, em Vila Nogueira, em Vendas, nos Brejos, em Oleiros, ou na Piedade, é longa e não a vou reproduzir aqui. Por outro lado, admito que me foi difícil estabelecer um quadro completo dos actos de reciclagem – de recuperação de objectos descartados – dado o seu carácter furtivo (quem retira de um monte de lixo um objecto que considera não-lixo tende a fazê-lo de forma discreta, para não se tornar objecto de crítica social e ser, assim, “descartado”).
Mas é, ainda assim possível fazer algumas considerações sobre os modos de vida, a variedade dos gostos, a capacidade económica das populações nas várias localidades. Naturalmente, para que a investigação possa ter valor heurístico será necessário proceder de forma mais sistemática e prolongada no tempo – o que implicará a redacção e candidatura de um projecto de estudo a uma entidade financiadora, já que o trabalho amador, não remunerado, é hoje em dia visto como suspeito pela comunidade científica e os seus resultados sejam, por isso, “descartados” como lixo indesejável.
Um dia, talvez, coligirei os resultados do meu levantamento etnográfico junto dos contentores de lixo de Azeitão, e até os poderei publicar caso haja um editor com visão e também previsão de que o público leitor terá interesse no tema.
 
Em antropologia, ao contrário do que se pode pensar, os inquéritos de terreno não se limitam ao inquérito e entrevista de informantes. A chamada “observação participante”, popularizada por Bronislaw Malinowski e pelos seus discípulos britânicos para designar os métodos imersivos de recolha etnográfica, é um termo inicialmente concebido pelo americano Edward Lindeman em 1924. Como método de estudo, a sua história precede a fundação da antropologia: viajantes e exploradores praticaram-no desde tempos remotos. Já o Barão de Gérando escrevia em 1800, no seu Considérations sur les diverses méthodes à suivre dans l’étude des peuples sauvages, que “a melhor maneira de conhecer os índios é tornarmo-nos como eles; e é aprendendo a sua língua que nos tornamos seus concidadãos”. A “observação participante” tem sido erigida em mais que um método de estudo; tornou-se como que uma iniciação mística, uma porta de entrada do antropólogo nos segredos profundos da vida cultural das populações que estuda. Como tal, supõe que se valorize não apenas o conhecimento transmitido verbalmente, mas também – e talvez sobretudo – os saberes e os hábitos colectivos que não chegam à consciência e não necessitam ser expressos através das palavras.
O estudo aturado das técnicas que as populações desenvolvem para se desfazer do dejeto, do lixo, do resíduo, do remanescente, do tornado desnecessário, requer o que o antropólogo Tim Ingold designou como a “arte de prestar atenção”. Estarmos disponíveis para observar, apreciar, examinar, e simultaneamente atentos à nossa própria posição como parte subjectiva do todo em que imergimos, é um importante requisito para a compreensão dos hábitos culturais relacionados com a materialidade dos objectos, e com os processos de selecção do que é de reter e preservar, e o que é de descartar, de abandonar, de excluir, de rejeitar.
As minhas observações dos contentores e seu entorno suscitam uma questão epistemológica fundamental: dada a ubiquidade, variedade e infinitude do lixo produzido pela comunidade azeitonense, que imagino não seja manifestação única no país, é de nos perguntarmos se não estamos perante um acto performativo de natureza artística. Com efeito, o modo como cada habitante contribui individualmente para a modelação de um monte de lixo colectivo implica uma intenção, uma vontade de participar num acto de harmonização escultórica colectiva que – quando, por sorte, os serviços camarários deixam de fazer a sua recolha diária – se revela em toda a sua glória estética. Toda Azeitão pôde, durante algumas semanas, apreciar – gratuitamente – uma muito interessante exposição de arte popular espontânea que, no meu ver, competiu dignamente com as melhores mostras de arte plástica internacional.
E eu orgulho-me de nela ter participado activamente, fiel aos requisitos do método da observação participante em antropologia.
 
 Jornal de Azeitão, Janeiro 2024
Tags:
0 Comments

​Como cozer uma lagosta

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
Eu sei que é egoísta pensar assim, mas esta coisa do aquecimento global tem por vezes efeitos locais simpáticos. Poder disfrutar de céu limpo e temperatura amena às portas do inverno é um deles. Também sei, claro, que as lagostas e as rãs só se dão conta de que estão a cozer quando já é demasiado tarde para espernearem, e que a espécie humana não parece mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos.
 
Assim estou, à beira da época do Natal, a apreciar o burburinho do fim de semana numa esplanada da vila, sem casaco de penas, barrete ou luvas. Como se fora passerelle de um filme de Fellini, vejo desfilar pela rua direita magotes de licrociclistas, enxames de motoqueiros de cabedal, ranchos de enoturistas gringos, e cardumes de SUVs negros. As amitas alfacinhas chilreiam à volta das mesas, os nepotes azeitonenses aborrecem-coçando esquinas, e os pés-descalços aguardam a carreira buzina na paragem do Rossio. Omnipresente nas mãos, nas bolsas e nas orelhas, lá está o rectângulo telemóvel a lembrar que o que vemos é apenas parte do que se passa à nossa volta. A dimensão oculta da matrix conecta tudo e todos, fazendo transbordar o iminentemente pessoal para o globalmente colectivo – através dos servidores que, no Nebraska, lançam ondas de ar quente para as correntes convectivas dos ventos alísios.
 
É uma platitude dizer que o telemóvel entrou nas nossas vidas e que, a par com óbvios benefícios, trouxe uma multitude de novos problemas para os quais não estamos cognitivamente preparados e cuja resolução dependeria de consensos sociais que estão longe de existir – parcialmente porque a discussão pública é, ou mal dirigida, ou demasiado fragmentária. Filhos que são mais filhos do tiktok que dos seus pais naturais, casais que se desunem perante a palavra-passe que interdita o acesso à intimidade do parceiro, gente de costumes suaves que se transforma em turba injuriosa no ventre das “redes sociais”, roubos de identidade, exploração comercial de dados pessoais, espiolhamento por governos estrangeiros... Problemas que as regulamentações estatais e supra-estatais não resolvem, apenas mitigam.
 
Viktor Mayer-Schönberger, um investigador de nome improvável, escreveu há uns anos um livro que marcou o meu olhar sobre o mundo contemporâneo: Delete, the virtue of forgetting in a digital age. Delete é uma palavra inglesa polissémica: significa tanto “apagar”, “suprimir”, “anular” como “cancelar”. O sentido, no contexto do livro, é referência directa à ubíqua tecla de qualquer keyboard de computador, aquela que se encontra no topo direito dos teclados e serve para, precisamente, “apagar” ou “anular” uma acção de digitação. A ideia central do livro é que a humanidade tem vivido há muitos milhares de anos numa idade estritamente analógica, afinando e modelando formas culturalmente variadas para garantir que, das múltiplas acções humanas, algumas possam ser memorizadas e passadas de geração em geração, e outras sejam esquecidas para sempre. Nesta perspectiva, a cultura é vista como um processo de selecção da memória colectiva, de escolha do que cada sociedade prefere lembrar – porque os meios de preservação da memória são (eram) limitados. A invenção dos computadores, da internet, dos telemóveis, etc., inaugurou uma nova idade do Homem: a idade digital, em que o esquecimento deixou de ser possível, ou pelo menos deixou de ser controlado por processos de selecção cultural, e pelos indivíduos-utilizadores. Os servidores não apagam nada, não esquecem nada, a não ser por decisão empresarial discricionária, ordem governamental irrevogável, ou avaria técnica irresolúvel. O passado reverte-se sem controlo sobre o presente, ameaçando a relevância e a sobrevivência da transmissão cultural analógica.
 
Porque a espécie humana não é mais inteligente ou previdente que os batráquios e os crustáceos, quando nos apercebermos da dimensão da tragédia que é o nosso sonambúlico mergulho colectivo na era digital será tarde demais. Vamos cozer em águas de “inteligência artificial”, se é que não grelhamos antes sob o inclemente estio de Dezembro.
 
 Jornal de Azeitão, Dezembro 2023​
Tags:
0 Comments

A suportável irrealidade da guerra

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
Mais quilómetro, menos quilómetro, a Faixa de Gaza tem uma extensão equivalente ao território que, de norte a sul, vai do estuário do Tejo à linha de costa da Arrábida e, de oeste para leste, dos areais da Costa da Caparica ao curso da Ribeira de Coina. Mais ou menos os mesmos 365 quilómetros quadrados. Não é difícil imaginar que dois milhões de pessoas possam viver nesta fatia da Margem Sul do estuário do Rio Tejo. Têm ambas uma longa linha de praias, a mesma hidrografia escassa, e uma orografia parecida – se exceptuarmos as arribas sedimentares da serra da Arrábida. E, claro, a sul, Gaza confina com o vasto deserto do Sinai e não a imensidão do oceano Atlântico.
 
Imaginemos que eram largadas, em três semanas, 30 mil bombas e mísseis sobre esta faixa da Margem Sul, que era mobilizado em seu redor um número de soldados equivalente à capacidade de cinco estádios do Benfica, mortas 10 mil pessoas e feridas outras 20 mil. Independentemente das emoções políticas, do horror ético e da mobilização social que um tal acontecimento catastrófico suscitaria, não custa pensar que as rotinas da vida em Lisboa ou em Alcoentre – a escassos quilómetros da fronteira da Ribeira de Coina –, continuariam a decorrer com normalidade. Malgrado o incómodo ruído dos bombardeamentos e o desagradável cheiro da pólvora, dos incêndios e dos corpos calcinados, os cafés e restaurantes para além dessa faixa continuariam abertos, as escolas continuariam a funcionar, e o combustível continuaria disponível nas estações de serviço.
 
O sentimento de irrealidade da guerra não seria muito distinto daquele que um europeu sente hoje face à tragédia de Gaza. Seria também um sentimento de impotência e de alheamento, independentemente da solidariedade, ou ausência dela, para com as vítimas do desastre humanitário. Não se trata de uma questão de insensibilidade porque “não é nada comigo”, mas de necessária compartimentação mental entre, por um lado, difusas emoções e racionalizações políticas e, por outro, as prementes necessidades de prover o dia-a-dia.
 
Estive, há anos, a poucos quilómetros de uma frente de batalha no norte da Etiópia. Vi hospitais sobrelotados, gente mutilada, mobilizações apressadas de milhares de jovens arrancados das famílias, e o crocitar das armas para além do horizonte. E, aí, confrontei-me com esta mesma irrealidade e com esta mesma dissonância cognitiva entre a terrível violência da guerra e a normalidade possível da vida do lado de fora do perímetro da batalha. As crianças continuavam a ir para a escola, as lojas continuavam abertas, e as rotinas diárias adaptavam-se às inúmeras restrições impostas – dos blackouts aos cortes de água, das estradas cortadas à penúria de mantimentos, do choro e da raiva individual à lavagem cerebral colectiva levada a cabo pela propaganda governamental.
 
Quem, em Lisboa, no Cairo ou em Reiquiavique, se emociona hoje com a tragédia de Gaza porque ela entra pelos olhos dentro graças à profusão de notícias provenientes de múltiplas plataformas de comunicação social, tem normalmente a quase certeza de que ela não altera os seus ciclos de vida diária (pelo menos, até ao dia em que sim). Poderá racionalizar e emitir opiniões, manifestar a sua indignação ou não, mas, não havendo transbordar do perímetro ritual da guerra para a sua zona de conforto, não deixará de estar atento às promoções do supermercado da sua vizinhança.
 
Tal como podemos duvidar que uma folha de árvore tenha caído se ninguém a vir cair, desdenhamos das tragédias que ocorrem todos os dias quando a comunicação social não nos oferece num prato de morbidez o testemunho da sua violência. Por extraordinário passe de magia, o horror de Gaza (complementado pelo horror menor da Cisjordânia) eclipsou nas nossas mentes o horror da Ucrânia. Mas esses horrores existem para nós porque no-los injectam. Todos os outros simultâneos horrores que pontuam a vida humana no planeta não têm direito à nossa comiseração ou sequer ao nosso reconhecimento.
 
Agora que o ano de 2023 se aproxima do seu termo, o inefável manto da irrealidade desce sobre várias outras guerras e conflitos violentos silenciados e, por isso, desconhecidos dos europeus. Não é concedido nem um momento de pânico moral pelos mais de 10 mil mortos em Myanmar, no Magrebe e no Sahel, no México, na Etiópia ou no Sudão; nem para os menos de 10 mil mortos na Colômbia, no Afeganistão, na Somália, na Nigéria, no Congo, no Iraque, no Sudão do Sul, na Síria, no Iémen ou no Haiti. Tudo porque morreram sem reportagens em directo, e longe da tribalização geoestratégica.
 
O Público, 6 Novembro 2023

Tags:
0 Comments

O cheiro da pólvora

4/6/2024

0 Comments

 
Mais quilómetro, menos quilómetro, a Faixa de Gaza tem a mesma extensão que o território que, de norte a sui, vai do estuário do Tejo à linha de costa da Arrábida e, de oeste para leste, dos areais da Costa da Caparica ao curso da Ribeira de Coina. Mais ou menos os mesmos 365 quilómetros quadrados. Não é difícil imaginar dois milhões de pessoas nesta fatia da Margem Sul. Mesma linha de praias, mesma hidrografia, e mesma orografia – se exceptuarmos as arribas sedimentares da serra da Arrábida. Para sul, num caso, a vastidão do deserto do Sinai e, no outro, a imensidão do oceano Atlântico.
 
Imaginemos que eram largadas, em três semanas, 30 mil bombas e mísseis sobre esta faixa da Margem Sul, mobilizado em seu redor um número de soldados equivalente à capacidade de cinco estádios do Benfica, mortas 10 mil pessoas e feridas outras 20 mil. Independentemente das emoções políticas, do horror ético e da mobilização social que um tal acontecimento catastrófico teria, não custa pensar que as rotinas da vida em Azeitão – a escassos quilómetros da fronteira da Ribeira de Coina –, continuariam a decorrer com normalidade. Malgrado o incómodo ruído dos bombardeamentos e o cheiro da pólvora, dos incêndios e dos corpos calcinados, os cafés e restaurantes para cá dessa faixa continuariam abertos, as escolas continuariam a funcionar, e o combustível continuaria disponível nas estações de serviço.
 
O sentimento de irrealidade da guerra não seria muito distinto daquele que um azeitonense sente hoje, face à tragédia de Gaza. Seria igualmente um sentimento de impotência e alheamento, independentemente da solidariedade ou ausência dela perante as vítimas e o desastre humanitário. Não se trata de uma questão de “não é nada comigo”, mas de necessária compartimentação mental entre difusas emoções e racionalizações políticas e prementes necessidades de prover o dia-a-dia.
 
Estive, há anos, a poucos quilómetros de uma frente de batalha no norte da Etiópia. Vi hospitais sobrelotados, gente mutilada, mobilizações apressadas de milhares de jovens arrancados das famílias, e o crocitar das armas para lá do horizonte. E, aí, confrontei-me com esta mesma irrealidade e esta mesma dissonância cognitiva entre a terrível violência da guerra e a normalidade possível da vida do lado de fora do seu perímetro. As crianças continuavam a ir para a escola, as lojas continuavam abertas, e as rotinas diárias adaptavam-se às inúmeras restrições impostas – dos black-outs aos cortes de água, das estradas cortadas à penúria de mantimentos, do choro e da raiva individual à lavagem cerebral colectiva da propaganda governamental.
 
Quem, em Azeitão, no Cairo ou em Reiquiavique, se emociona hoje com a tragédia de Gaza – seja a poucos ou a muitos quilómetros de distância –, porque ela entra pelos olhos dentro graças à profusão de notícias provenientes de múltiplas plataformas de comunicação social, tem normalmente a quase certeza de que ela não altera os seus ciclos de vida diária. Poderá racionalizar e emitir opiniões, manifestar a sua indignação ou não, mas, não havendo transbordar do perímetro ritual da guerra para a sua zona de conforto, não deixará de estar atento às promoções do supermercado da sua vizinhança.
 
Tal como podemos duvidar que uma folha de árvore tenha caído se ninguém a vir cair, desdenhamos das tragédias que ocorrem todos os dias quando a comunicação social não nos oferece num prato de morbidez o testemunho da sua realidade. Por extraordinário passe de magia, o horror de Gaza (complementado pelo horror menor da Cisjordânia) eclipsou nas nossas mentes o horror da Ucrânia. Mas esses horrores existem para nós porque no-los injectam. Todos os outros simultâneos horrores que pontuam a vida humana no planeta não têm direito à nossa comiseração ou sequer ao nosso reconhecimento.
 
Nota: no ano de 2023, estes foram os conflitos violentos de que resultaram mais de 10 mil mortes: Myanmar, Magrebe e Sahel, México, Ucrânia, Etiópia e Sudão. Os conflitos de que resultaram até 10 mil mortes foram: Colômbia, Afeganistão, Somália, Nigéria, Congo, Iraque, Sudão do Sul, Síria, Iémen e Haiti.
 
Jornal de Azeitão, Novembro 2023​
 

Tags:
0 Comments

Redução a pó

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
 Habituei-me, nestas páginas, a reportar instantâneos de Azeitão, vila, freguesia e região; a relatar impressões sobre rituais do presente e memórias do passado, a partir do que vejo, ouço e leio.
 
Vou procurando acompanhar, tal astronauta, as labutas, as festividades, e os diz-que-disse de quem por cá vive, por cá passa e, por vezes, quem trespassa. O casario, as pedras, árvores e caminhos têm histórias para contar, e faço-me disponível para os observar e tentar compreender. Diverte-me inquirir os sinais fugazes de passados longínquos, que se manifestam em coisas que se dizem, em pedras que se preservam, e espaços que se sacralizam. Séculos, milénios, de vidas vividas, aspirações, esperanças e desenganos, engajam-nos, inspiram-nos e assombram-nos como fantasmas imateriais.
 
Trazê-los à vida e dar-lhes sentido, convocando-os pela palavra, é ajudar a dar-nos a nós mesmos sentido.
 
Ao admirar a serra, ao apreciar o arvoredo, e ao perscrutar os vários estratos da mancha urbana construída, cismo frequentemente sobre o que restará do passado e do presente no futuro. Há por aí pedras seculares que nos prometem perseverar caso a mão da natureza ou da iconoclastia não as derrubem abruptamente. Há árvores e geografias que, tendo muito presenciado, se mostram disponíveis para continuar sendo testemunhas mudas e paradas do fervilhar da vida em sua roda. E há provérbios e narrações que, escritas ou contadas, nos irão sem dúvida sobreviver. Mas, e tudo o mais? Quanto do que julgamos hoje ser tão importante e valioso estará cá depois de depois de amanhã?
 
O século XXI não reverteu, antes reforçou, a natureza efémera do que marcou a acção humana no século anterior. Somos muitos, muitos mais do que éramos antes, a reclamar o direito a bens materiais, e a um módico de conforto. Uma exigência colectiva que a ideologia do consumo de massas abraçou e exponenciou. O tempo da contemporaneidade – do hoje – é o da produção imparável de lixo – que é o estado final dos desejos, aspirações, produções, aquisições, transações de coisas materiais. Um carro durará 15 anos com um pouco de sorte, uma casa feita de cimento 75. O plástico degrada-se a partir dos 7 anos. O asfalto soçobra aos 30. As telhas – se não forem em placa sanduiche – durarão muito mais, mas quem quer um telhado sem casa por baixo?
 
De património físico, os nossos antepassados deixaram-nos muito pouco, para além do que os ricos e poderosos quiseram que ficasse: paços senhoriais celebrando a assimetria social, igrejas opulentas consagrando o poder do sacerdócio, caminhos consolidados com o suor e o sangue do povo e das muares. Deixaram-nos também intocado o gentil recorte da serra da Arrábida. E nós, que vamos deixar para quem – se é que alguém haverá – nos sobrerrestará? Vidros partidos, estradas esburacadas, paredes arruinadas pela degenerescência do cimento, microplásticos omnipresentes, invisíveis a olho nu, e uma serra ferida de morte por cimenteiras e pedreiras que – como o carcinoma explosivo – se alastram pelas encostas e reduzem a pó a pedra do tempo dos dinossauros e das conchas marinhas. E, por seu lado, a voragem das redes sociais, o tumor da internetização da comunicação humana, reduzirão sem dúvida a pó algorítmico as memórias, os hábitos, os costumes, os saberes que herdámos de quem nos precedeu neste pedaço de superfície terrena. O símbolo maior do mundo de hoje não é, como alguém escreveu, o deleite, mas sim o “delete”.
 
Jornal de Azeitão, Outubro 2023​

Tags:
0 Comments

Divagações termais

4/6/2024

0 Comments

 
Picture
Não me consigo lembrar do nome do café fronteiro ao Clube Sesimbrense (agora Grémio), no Largo José António Pereira, em Sesimbra. Era ali que o Rafael Monteiro tomava o seu café, quando não estava a cirandar pela vila ou por Santana. A barba longa albergava migalhas das torradas de vários dias, e os dedos que seguravam o cigarro sem filtro tinham uma tonalidade castanho-nicotina. Não havia segredo que ele não conhecesse, nem opinião que não tivesse, pelo menos no que a Sesimbra concernia. Foi ele que descobriu, na Quinta da Aiana de Baixo, uma lápide de seis medalhões igual à que ostenta a fonte de Aldeia Rica, em Oleiros, e a uma outra, proveniente da Quinta da Arca de Água, em Alferrar, Setúbal, que entretanto foi vendida por um sobrinho do visconde de Montalvo ao coleccionador Jorge de Brito nos anos sessenta.
A Fonte de Aldeia Rica é contemporânea da Fonte dos Pasmados, cuja construção, ordenada pelo juíz de fora Agostinho Machado de Faria em 1787, esteve envolta em polémica. Originalmente, a fonte situava-se num pátio interior da Quinta da Nogueira, que hoje é das Caves José Maria da Fonseca, mas o “Pombal Azeitonense”, como o juíz ficou conhecido, ordenou a sua deslocação para o espaço público, tendo a população trabalhado “de noite e em dias feriados não auferindo qualquer remuneração”. A obra causou controvérsia, tendo o proprietário da quinta apresentado queixa contra o juíz por a deslocação ter “causado graves prejuízos para o cunhal e muro da casa nobre da Quinta” e “o dito ministro” foi denunciado pelo “malévolo animo” de ter explorado “o suor e trabalho dos pobres”, e “para o efeito de que não faltem (...) são presos e manietados todos aqueles que faltem”.
Ainda assim, o chafariz causou tal impressão de pasmo na população que daí resultou o seu nome. Já quanto à “lenda” que conta que “quem das suas águas beber não deixa de Azeitão regressar”, creio que devemos dar certo desconto, já que essa parece ser uma frase feita usada para caracterizar um sem-fim de fontes e chafarizes em Portugal e no mundo.
Hoje, estão secas ou insalubres muitas das nascentes, fontes e olhos de água de onde antigamente fluíam as águas subterrâneas das serranias da Península de Setúbal. E, no entanto, elas foram a um tempo apreciadas e louvadas pela sua qualidade. A de São Simão, a da Quinta do Anjo, a cisterna do “Castelo dos Mouros” em Coina Velha, até a da Califórnia, na praia de Sesimbra... Uma das mais desconhecidas e misteriosas é a Fonte da Rocha, anichada na encosta sul do Vale dos Barris, perto de Palmela e ainda mais perto do Convento das Irmãs da Apresentação de Maria. Foi, em tempos, uma fonte férrea, com efeitos curativos. Em Portugal são raros estes pontos de água, de características termais. Quase nada se sabe hoje da história da Fonte da Rocha, vítima da perda da capacidade de retenção das águas de uma Serra da Arrábida cada vez mais árida.
As águas férreas são especialmente indicadas para tratar problemas da circulação sanguínea, curando anemias e restituindo o equilíbrio das plaquetas. Pelo que aprendi ao visitar a fonte de Vale da Mó, nas faldas do Luso, era hábito os pastores procurarem nascentes férreas porque tinham um efeito miraculosamente reconstituinte para o gado. Não custa imaginar que a Fonte da Rocha tivesse sido um ponto de paragem de rebanhos de ovelhas e cabras – como acontecia em Vale da Mó, antes da expulsão das ordens religiosas no final da monarquia, quando as irmãs ursulinas doaram à aldeia os terrenos do mosteiro e o célebre químico francês Charles Lepierre analisou as águas da fonte e determinou a sua qualidade como água termal.
Não provei a água da Fonte da Rocha, no Vale dos Barris, mas provei a da Fonte do Vale da Mó. Posso assegurar que sabe muito mal, e que a sua cor me fez lembrar os dedos do Rafael Monteiro, de saudosa memória.

Jornal de Azeitão, Setembro 2023​
Tags:
0 Comments

a miopia infantil

8/9/2023

0 Comments

 
Picture
O capítulo 35 do livro 3 das Viagens de Marco Polo, onde se descreve o Reino de Abash (Abissínia, a antiga Etiópia), refere que aí os cristãos, para se distinguirem dos vizinhos muçulmanos, exibem uma cruz na testa, marca que seria feita com ferro em brasa no acto do baptismo. Ainda que possamos duvidar da informação de que a cruz fosse feita com ferro em brasa, a verdade é que ainda hoje, nas zonas rurais do norte da Etiópia, não é raro encontrar quem a exiba na testa, mas executada como tatuagem.
Também não é rara a existência de outro tipo de marcas na testa de muitos etíopes, mas estas não são sinal de fervor ou adesão religiosa. Muitas mulheres exibem tatuagens ornamentais em volta do pescoço, e é comum observar uma dupla escarificação em cada uma das fontes, tanto em homens como em mulheres: estas são o resultado de sangrias praticadas por médicos tradicionais, que têm como objectivo proteger as crianças de certo tipo de doenças. Para além destas marcas religiosas, ornamentais e rituais, é também muito habitual a existência de cicatrizes na cabeça. A origem destas cicatrizes advém de uma prática educacional curiosa, actualmente em recessão mas à qual eu assisti em diversas ocasiões: para castigar crianças desobedientes ou insolentes, os familiares mais velhos atiram-lhes pedras à cabeça. O efeito pavloviano deste castigo é tal que as mais das vezes basta fazer o gesto de apanhar uma pedra e ameaçar atirá-la para que a criança obedeça à ordem dada.
Não pretendo discutir a bondade ou perversidade desta forma de castigo corporal, tal como não venho aqui comentar a publicitação de correctivos radicais (como, por exemplo, submergir uma filha na água fria de uma piscina) contra birras infantis como forma de angariar seguidores em redes sociais. Pretendo apenas dar conta do meu pasmo permanente face aos comportamentos públicos de crianças e adultos na região de Azeitão – microscópico espelho do que, suspeito, acontece um pouco por todo o lado, dentro e fora do rectângulo luso. Não passa um dia em que não observe – seja no restaurante, no café, na loja, no parque, ou na praia – pais, tios e avós a silenciar filhos, sobrinhos e netos pondo-lhes telemóveis ou tablets na mão, para melhor poderem conviver sem interferências infantis. Quando não estão entorpecidos pelas imagens do ecrã, transformam-se em feras ditatoriais e inaturáveis a exigir toda a atenção do mundo, gritando, esperneando e correndo em círculos viciosos.
Ligar uma criança ao ecrã de um telemóvel é uma forma de hipnotismo fácil e prático no imediato, mas é também uma demissão de responsabilidades parentais cujas consequências são temíveis. Esta miopia educacional resulta, por um lado, em efectiva miopia precoce dos jovens – antigamente, havia um “caixa de óculos” na turma da escola; hoje, o elemento de distinção na turma é a cor do aro e a graduação da lente de cada aluno. Por outro lado, e muito mais preocupante, a consequência deste novo hábito é a progressiva miopia mental e emocional da juventude: desabituados do saudável balanço entre manifestação de afecto e a exigência de cumprimento de regras, resvalam para um autismo imoral, para o absoluto desrespeito, não apenas dos pais que não conseguiram fazer-se por eles respeitar, e dos professores que, na escola, com eles se confrontam impotentes, mas de todos quantos se encontram do lado de cá do ecrã. A única autoridade destes novos “meninos selvagens” é o algoritmo que gere as redes sociais e os seus avatares, conhecidos como influencers, youtubers, tiktokers, instakings e instaqueens.
Entrevistado em sua casa pouco tempo antes da sua morte aos 101 anos, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss referiu o seu profundo pesar pelo fim da diversidade cultural da humanidade e a sua repugnância pela monocultura que hoje impera. Terminou a entrevista notando que, agora que a sua existência estava perto do fim, deixava um mundo de que (já) não gostava, habitado por uma humanidade a viver num regime de envenenamento interno.
É, claro, possível duvidar desta visão apocalíptica e supor que a globalização monocultural não passa de um projecto utópico euro-americano em vias de derrapar na sua meta final. Mas não deixo de me perguntar como vão as novas gerações de azeitonenses gerir a pesada herança que vão ter de carregar.
 
Jornal de Azeitão, Agosto 2023​
Tags:
0 Comments

Inteligência natural

1/9/2023

0 Comments

 
Picture
Sentado à mesa do café da aldeia, ouço correr histórias sobre vidas passadas...

John Kegan, no seu reputado livro The History of Warfare, sublinha que não existe um conceito universal de “guerra”, porque a prossecução, percepção e compreensão da guerra é sempre ditada e condicionada culturalmente, apesar de, em si, a “guerra” ser um diálogo intercultural (geralmente violento) de transferência de ideias e tecnologias.
A dado passo da sua obra, apresenta-nos um caso raro de sageza na recusa de uma nova tecnologia militar, em função da preservação de um modo de conceber e fazer a guerra: a introdução de armas de fogo no Japão, no séc. XVI, foi entusiasticamente acolhida e os senhores da guerra japoneses lançaram-se numa verdadeira corrida às armas, produzindo versões cada vez mais aperfeiçoadas de arcabuzes, em quantidades cada vez maiores. O arcabuz mudou a face da guerra no Japão, causando carnificinas tais que, finalmente, levaram os senhores da guerra a reunir-se e decidir proibir a produção e uso de armas de fogo. Regressaram à forma tradicional japonesa de fazer a guerra, com arcos, flechas, sabres e paus, até que, no final do séc. XIX, britânicos e norte-americanos as reintroduziram, quando começaram a interferir na vida política e económica japonesa, em nome da modernização e ocidentalização do país.
Vem isto a propósito de uma nova tecnologia digital e do seu potencial destrutivo: a chamada “inteligência artificial”. Dizem alguns críticos que o termo é enganador porque sugere que os modelos de linguagem artificial são fruto de pensamento consciente. Pouco importa para o caso que quero aqui discutir: o uso cada vez mais generalizado destes modelos, em particular do muito bem-sucedido ChatGPT, na vida quotidiana, e em particular no ensino. Apresentando-se como uma ferramenta neutra e bem-intencionada de suporte informativo, tem, no entanto, duas faces sombrias. Por um lado, está longe de ser um suporte neutro e de valor público, já que os seus algoritmos são de uma companhia privada, sujeitos a instruções e condicionamentos que nos são inacessíveis, e dependentes de uma base de dados que é sobretudo norte-americana. Por outro, coloca o seu utilizador perante um paradoxo de difícil resolução: como simula ser uma entidade pensante, que responde com frases complexas e oferece uma mediana de informações convencionais, oferece-nos a ilusão de que estamos perante uma entidade pensadora que concede, a pedido do utilizador, acesso gratuito a textos organizados, que este pode “roubar”, fazendo-os passar como seus sem ser acusado de plágio.
É possível fazer uso criativo e crítico desta ferramenta, como bem mostra, por exemplo, a poetiza alemã Monika Rinck. Mas, no geral, o que promove é profunda preguiça mental e – o que é particularmente grave no processo de ensino – uma alteração profunda e com consequências imprevisíveis na aprendizagem e uma possível redução das capacidades de construção de textos e argumentos, para além de limitar a compreensão crítica da informação disponibilizada, que se apresenta como sumamente confiável. No estado actual, não prevejo que seja exequível fazer como os senhores da guerra japoneses: decidir por consenso suspender o uso desta tecnologia, cujos malefícios facilmente arriscam ser muito maiores que os benefícios.
O ChatGPT é um novo instrumento de imersão no mundo digital que pode ter efeitos devastadores. Arriscamo-nos a estar a prender as nossas capacidades intelectivas no interior de um batiscafo que se afunda no oceano com uma quantidade limitada de oxigénio e pouca ou nenhuma possibilidade de regresso à superfície.
Por mim, vejo a redenção no desligarmo-nos do mundo digital, como profetiza E. M. Foster no conto The machine stops, e na valorização do que podemos aprender no (que resta do) mundo analógico. Sentado à mesa do café da aldeia, ouço correr histórias sobre vidas passadas: os miúdos que se reuniam junto ao poço a jogar ao berlinde, os bailaricos no Verão e a matança do porco no Outono, os beijos roubados no virar da esquina, o labor nos campos e os tratamentos da bruxa com novelo e agulha para tirar o mau-olhado, o cheiro da urze e do estrume, as queimaduras do ferro de engomar aquecido a carvão, as zangas entre primos, o rapaz que fugiu para ir trabalhar na cidade, a tia que fazia milagres com a máquina Singer e um metro de chita estampada, os burros albardados a passar a ribeira no Porto de Cambas a caminho da feira de Azeitão...
O que vemos e o que imaginamos, o que ouvimos contar, o que cheiramos e saboreamos é essencial para conhecermos o mundo que está para além e para aquém dos “modelos de linguagem”. É parte fundamental da nossa inteligência natural e eficaz vacina contra a estupidez de nos submetermos à “inteligência artificial”.

PS: li agora que, nos céus da Ucrânia, voam drones kamikaze que, graças à “inteligência artificial”, funcionam de forma totalmente autónoma, identificando e destruindo alvos sem intervenção de operadores humanos.
 
Jornal de Azeitão, Julho 2023​
Tags:
0 Comments

esta terra não é para estranhos

3/8/2023

0 Comments

 
Picture
Li há pouco uma curiosa (auto)reflexão sobre o carácter russo.  A tradução dizia mais ou menos isto:
 
Quando as pessoas no Ocidente falam dos russos e da Rússia, citam frequentemente a célebre frase de Churchill: “A Rússia é uma charada, envolvida em mistério, dentro de um enigma”. É uma citação elucidativa: a Rússia era e é incompreensível para um ocidental.
Como lutavam os europeus na Idade Média? O meu primo Ludovico, proprietário da quinta vizinha, embebedou-se e chamou-me idiota. Não posso aceitar o insulto, por isso junto os meus quatro vassalos, distribuo paus e forquilhas aos habitantes do meu domínio, e parto em guerra contra ele. Hurra!... Vitória. E, quando estou prestes a cortar a cabeça do maldito Ludovico, o bispo meu primo, as minhas tias e os meus tios, e mais não sei quantas pessoas intervêm, dizendo que a minha resposta não é proporcional – ele só me chamou imbecil. Em resultado, eu não mato o Ludovico.
Esta moderação feita por parentes da classe dirigente funcionava a todos os níveis, dos conflitos entre quintas vizinhas às guerras entre estados. Daí, um estranho culto da proporcionalidade desenvolveu-se no Ocidente: se eu te esfaqueio mas não te mato, tu não me cortas a cabeça.
Os eslavos e, em particular, os russos nunca lutaram assim. A guerra era “ou nós ou eles”. Sem alternativas, era uma guerra com os infiéis, sem “proporcionalidade”. Era uma guerra pela sobrevivência. Em resultado, os eslavos desenvolveram uma tradição diametralmente oposta: ou não reagir de todo ou então resolver o problema de uma vez por todas. A transição da primeira opção para a segunda é instantânea, sem aviso, definitiva e irrevogável. A linha vermelha, ela própria, para além da qual está o “matem os sobreviventes e tenham um bom dia” variava, do “é para já” dos polacos ao “quando o sol se transformar num gigante vermelho” dos búlgaros.
Os russos estão algures no meio e, para quem nasceu na tradição cultural ocidental, este “meio” é precisamente “uma charada, envolvida em mistério, dentro de um enigma”. O ocidental não se consegue impedir de espicaçar o urso com um pau para ver onde está a linha vermelha. E fará isto apesar de todas as histórias que o seu avô lhe contou sobre o seu próprio avô, que também espicaçou o urso em Estalinegrado ou em Borodino.
A este respeito, o Ocidente não é nunca capaz de aprender. A memória histórica da Idade Média é mais forte que a memória do que se passou nos últimos três séculos. (@Slaviangrad)
 
Em Sesimbra, era comum um pexito dizer que as gentes do Campo se batem por um metro quadrado do terreno do vizinho, que respondem violentamente aos seus abusos, embora estejam sempre prontos a cobiçar, eles próprios, a sua propriedade. O espírito do mar não permite estes luxos. No mar é fácil morrer porque a natureza é infinitamente mais inclemente que os humanos. Por isso, talvez, os pescadores apreciam mais a vida e respeitam mais o outro. Não que não haja competição pelo bem comum que é o peixe, mas precisamente o bem é comum, não privado.
 
O Campo é agora, em grande medida, a Vila. Ainda assim, como dizia o russo, a memória dos tempos antigos é muito forte, encastra-se, encasqueta-se, como uma marca indelével. Hoje em dia, na Vila, os conflitos do metro quadrado de terreno passaram para as moradias geminadas sem que a memória do comportamento ancestral se perca. Abusa-se de novas maneiras: subindo muros e construindo anexos ilegais, disfarçando puxadas de água, fazendo barulho, estacionando o carro sobre o passeio público, fazendo cavalinhos em cima de motas, deixando os cães a ladrar dia e noite no quintal. O resultado é uma constante tensão colectiva, nascida de um sobranceiro desinteresse pelo direito privado dos outros e pelo bem comum que são os espaços públicos (e pelo ar que se respira).
 
Quem vem de fora desespera com esta maneira de viver agressiva e disfuncional. Ao fim de algum tempo a tentar socializar e conviver nesta Vila em permanente estado de bulha de aldeia de gauleses, acaba por desistir e rumar a outras paragens. Mas há que ver as coisas pelo lado positivo: é bom para o comércio imobiliário porque há sempre casas à venda para o próximo forasteiro incauto, e garante que a tradição cultural não se perde. Quem não gosta dela, que vá para Sesimbra.
 
 
 Jornal de Azeitão, Junho 2023​
Tags:
0 Comments
<<Previous
Forward>>

    Manuel joão ramos

    Breathing, talking, writing, drawing.

    Archives

    March 2025
    June 2024
    September 2023
    August 2023
    July 2023
    March 2023
    November 2022
    October 2022
    September 2022
    August 2022
    July 2022
    May 2022
    April 2022
    February 2022
    January 2022
    November 2021
    October 2021
    September 2021
    August 2021
    July 2021
    June 2021
    May 2021
    April 2021
    March 2021
    February 2021
    January 2021
    November 2020
    October 2020
    September 2020
    August 2020
    July 2020
    June 2020
    April 2020
    March 2020

    Categories

    All
    Ambiente
    Arrabida
    Arte
    Censura
    Comuns
    Conflito
    Diario De Noticias
    Digital
    Etiopia
    Gentrificacao
    Historia
    Jornal De Azeitao
    Mobilidade
    Mobility
    O Publico
    Oralidade
    Palestina
    Pandemia
    Pandemic
    Pesca
    Política
    Pollution
    Poluicao
    Portugal
    Risco Rodoviario
    Ritual
    Turismo
    Ucrania
    Universidade
    Urbanismo

    RSS Feed

Powered by Create your own unique website with customizable templates.