MANUEL JOÃO RAMOS
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O Inferno do Paraíso

20/7/2022

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Fui espreitar na grande cacofonia – ou melhor, na cacoletria - que é a internet alguma informação sobre a origem do provérbio “a palavra é de prata, o silêncio é de ouro”. Não me admirou que o ruído de links me tenha dirigido para detritos verbais incongruentes entre si. Segundo alguns, o provérbio é chinês; segundo outros é árabe, segundo outros ainda é judaico, aramaico, egípcio ou latino.
 
O significado é facilmente entendível: a comunicação verbal é preciosa, mas o seu valor é tanto mais apreciado quanto melhor respeitemos as pausas, os hiatos, as fermatas. Frequentemente, a primeira parte da frase é truncada e então o provérbio perde o seu valor propositivo. Torna-se uma expressão idiomática denominativa, que remete ainda assim para uma imagem de valor extra-linguístico: dizemos que “o silêncio é de ouro” porque atribuímos a este metal um valor inestimável.
 
No seu livro A Utopia, o filósofo Thomas More descreve a Ilha de Amaurota, uma sociedade imaginada onde a harmonia social é conseguida graças ao respeito estrito dos direitos individuais e colectivos, garantidos pela natureza igualitária do seu sistema político e económico. Aqueles que, por uma razão ou outra infringem estas regras são castigados de forma original: são forçados a carregarem pesadas correntes de ouro, tornando-se objecto de troça e vexame pelos seus conterrâneos. Em Amaurota, o silêncio não é de ouro, não porque não seja valorizado mas porque, sendo a sociedade harmónica e assente no respeito equitativo dos direitos cívicos, o ruído – a poluição sonora – é abominável, e quem o produz sujeito ao vexame público.
 
É parte do espólio da sabedoria popular o conhecimento de que os povos do norte da Europa, onde prevalecem formas diversas de protestantismo, uma fé que sobrevaloriza os direitos individuais, são por regra intolerantes ao ruído provocado pelos vizinhos, ao contrário dos povos do sul da Europa e da orla do Mediterrâneo, onde a tolerância à invasão sonora, assim como à invasão física do território pessoal, é muito elevada. Seja na Suíça calvinista ou na Suécia luterana, não passa pela cabeça de ninguém desrespeitar horários de descanso, subir o volume da televisão a níveis que incomodem a vizinhança, conduzir motorizadas sem silenciador no escape, ou permitir que festas privadas ou públicas sejam realizadas em zonas residenciais.
 
Fascinados como os portugueses são pelo ouro, se não desde que os romanos começaram a explorar minas no Tejo, pelo menos desde que o Brasil começou a ser sistematicamente saqueado no séc. XVIII, é curioso ver como são tão pouco sensíveis à ideia de que “a palavra é de prata”. A oratória não é, em definitivo, uma arte que se tenha fixado na nossa vida pública. Padres Antónios Vieiras são, em Portugal, mais raros que o ouro – que digo eu? Que a platina, o paládio, ou o irídio. Basta comparar um debate parlamentar português com um britânico, uma palestra de catedrático luso com a de um alemão, um sermão de padre minhoto com o de um sacerdote holandês, para nos certificarmos que, pura e simplesmente, somos rudes, toscos e impolidos no que respeita ao uso da palavra. Em Portugal, a palavra é de lata, e o silêncio é de pirite.
 
Diga-se que a pirite é, desde tempos imemoriais, conhecida como o “ouro dos tontos”. Este dissulfeto de ferro, sendo relativamente abundante e por isso pouco valioso, tem um brilho metálico e uma cor amarelo-dourada que o confunde com o “mais nobre dos metais”, tendo sido muitas vezes usado para defraudar incautos.
 
Em Azeitão, como em inúmeras outras regiões do país, a poluição sonora – o ruído – é uma triste constante. Acelerar em mota de 750cc pelo centro ou pela periferia da vila, deixar as crianças à solta aos gritos nas piscinas das vivendas, fazer festas de kuduro até às tantas da madrugada, pôr betoneiras a trabalhar às oito da manhã de domingo, ou deixar os cães a ladrar dia e noite junto ao portão, são comportamentos anti-sociais que no entanto são tomados como direitos inalienáveis de quem acha que os vizinhos e concidadãos são meros papalvos, tontos cujos direitos não são equiparáveis aos de quem grita mais, ou de quem faz mais ruído.
 
Não aprecio o anglicismo agora popularizado de bullying para designar atitudes intimidantes e abusivas nas escolas. Mas para explicar o que se passa em termos de ruído em Azeitão serve perfeitamente. A vila está cheia de bullies, gente que acha que o seu estatuto social e económico tem de ser anunciado aos quatro ventos através do ruído. Olhem para mim: tenho uma piscina; Vejam: tenho uma Ducati 1000; Mirem: estou a pôr mármore na soalheira da porta; Ouçam: tenho uma aparelhagem com woofers XPTO; Ena pá: tenho um rafeiro alentejano com DOP.
 
Dir-se-ia que é função da autarquia, se não contribuir para a educação destes munícipes, pelo menos fazer cumprir a Lei do Ruído. Mas, como um agente do posto da GNR me confessou recentemente, a Câmara é a primeira a dar o mau exemplo, atribuindo licenças para festas que se prolongam até às duas e três da manhã.
 
Numa vila assim, num país assim, quem pede que se respeite o sono, o descanso, a paz, passa inevitavelmente por tolo.
 
  Jornal de Azeitão, Junho 2022

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