O relativamente obscuro livro foi imediatamente pirateado, ganhando muitos milhares de leitores a partir do momento em que foi banido e a sua leitura proibida ao abrigo de uma lei de 1988 que proíbe a divulgação de conteúdos que ofendam a fé religiosa na Índia (promulgada por altura da publicação dos Versos Satânicos, de Salmon Rushdie). A tese central do livro é que o hinduísmo é historicamente uma religião tolerante e permissiva, argumento que ofendeu os fundamentalistas hindus do SBAS, que reclamavam o seu direito à intolerância religiosa.
Uma outra obra da autora, Sonhos, Ilusão e outras Realidades, estuda a importância do paradoxo na construção do pensamento filosófico indiano, em particular no que respeita à relação, que ela vê como não-binária, entre o sonho e a realidade (ilusória) desperta. Ela vê este não-binarismo como oposto ao binarismo do pensamento ocidental, não se apercebendo, aparentemente, de que o seu ponto de vista é inerentemente ocidental, incapaz de relacionar o pensamento indiano, que ela toma por não-binário, com o ocidental, que ela assume como binário, sem recorrer ela própria a uma visão binarista e opositiva.
Uma das histórias que ela reporta é a de um monge que imagina que um homem adormece e sonha com um brâmane que adormece e sonha que é um príncipe que sonha que é um rei que sonha que é uma mulher que sonha que é uma pomba que sonha que é uma vinha que sonha que é um elefante que sonha que é uma abelha que sonha que é um ganso que sonha que é um cisne que sonha que é o deus Rudra (mais conhecido como Shiva), o qual se surpreende por estar a ser sonhado por mortais, que ele próprio criou sonhando o mundo.
Eu também poderia contar uma história assim, e não tem de se passar na Índia de há três mil anos:
Conheci há algum tempo o Fernando, um jovem de Brejos, que se perdeu no mundo das redes sociais. O Fernando éconhecido como um rapaz tranquilo, tímido, algo ensimesmado. Aparententemente, criou um perfil no Instagram, onde se transformou em "O Manel_da_Vila". Na pele de Manel, começou a viver uma vida completamente diferente, cheia de aventuras online. Mostrava viagens que nunca fez, partilhava fotos retocadas de lugares onde nunca esteve. Era fácil. Ninguém desconfiava do embuste.
Cansado desta identidade, Manel decidiu criar uma nova persona. Inscreveu-se no Facebook como "Doutor Luís", um intelectual erudito, que gostava de se envolver em debates políticos e discussões filosóficas. Luís era quem Fernando nunca fora na vida real — alguém com opiniões fortes, admirado por outros utilizadores pela sua perspicácia. Com o tempo, o Doutor Luís cansou-se também dessa vida digital de debates sem fim. E foi assim que nasceu "#PríncipeDiogo", a nova identidade de Fernando no Twitter, onde se apresentava como um jovem vaidoso, extravagante, ligando a sua conta à de vários de influenciadores e conseguindo assim muitos seguidores.
#PríncipeDiogo conquistou rapidamente o mundo do Twitter, divulgando frases motivacionais e mostrando uma vida de aparente glamour. Passado algum tempo, a personagem evoluiu novamente. No TikTok, Fernando tornou-se "MariLux", uma influenciadora que partilhava vídeos de dança e dicas de beleza. MariLux brilhava em vários feeds, acumulava likes, mas depois de longas horas a postar vídeos de 5 segundos, também ela começou a sentir-se esgotada.
MariLux decidiu, então, fazer uma pausa. Desligou-se do TikTok e, ao regressar à vida fora das redes, passou a olhar as vinhas e os campos em torno de Azeitão com um novo olhar. Abriu um canal anónimo no YouTube onde partilhava vídeos de paisagens locais com mensagens poéticas sobre a vida pastoral. "MariLux" começou depois a partilhar os vídeos anónimos numa nova conta do Instagram. Reencontrou aí o "#PrincipeDiogo", um velho conhecido de outras redes, que a começou a seguir. O seu reencontro foi silencioso, sem diálogos, sem comentários, trocavam simplesmente emojis e corações. Partilhavam mutuamente os vídeos anónimos do Youtube.
No entanto, não há para Fernando possibilidade de retorno definitivo à "vida real". Cada pausa que ele faz no mundo da internet leva-o a criar novas personagens, novas aventuras, novas plataformas. Fernando e as suas criações continuam hoje a flutuar entre a vida rotineira em Azeitão e as infinitas realidades possíveis das redes sociais. O paradoxo de viver entre o analógico e o digital não se resolve — apenas se multiplica. Fernando está virtualmente perdido.
Em resumo: o paradoxo não tem de ser visto como um atentado à racionalidade, mas como um instrumento criativo de conectar o nosso cérebro com o(s) mundo(s). De outra maneira, como compreender que a Criatura deu à luz o Criador, ou que o azeitonense Fernando possa estar, simultaneamente, a falar comigo no café e imaginar-se numa rede social da internet?
Jornal de Azeitão, Outubro 2024