MANUEL JOÃO RAMOS
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O Queijo da Cabra Serpentina

3/8/2022

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​Há um desvio à direita mesmo antes das bombas da BP, na N10, ao chegar a Setúbal. Vai-se por uma estradinha serpenteante, desce-se e depois sobe-se até encontrar o portão da quinta, à esquerda. A linha do horizonte, na colina a sul, esconde as ruínas do Forte Velho e o Bairro SAAL do Casal das Figueiras. Para lá do portão, o caminho leva-nos a um vale estreito onde, num cotovelo, uma cerca guarda os chibos, paredes meias com o curral onde os cabritos de leite balem, pequenas cabeças despontando entre as traves de madeira. Ao fundo, na outra ponta do vale, sob um imenso sobreiro, o rebanho de cabras alvas pasta, aguardando tranquilo a chamada para a ordenha.
 
Estou finalmente face a face com as cabras serpentinas da Quinta de Santa Efigénia, trazidas há coisa de dois anos do interior alentejano com a dupla intenção de preservar uma raça autóctone em risco de extinção e de produzir um queijo de sabor forte e rico em proteína. O queijo artesanal de leite cru destas cabras brancas de lista negra no dorso, semi-selvagens, tem sido fabricado na queijaria da Quinta de Camarate, na Rua do Engano, que bordeja a Aldeia de Pinheiros. Foi aqui que provei pela primeira vez a versão azeitonense do queijo da nativa de Serpa – ainda experimental, avisaram-me –, numa informal prova de queijos de leite de pasto onde pontuou o cru de vaca, de casca lavada com vinho tinto, o primeiro bleu português, e o veludo de cabra de raça saanen. Tal como se pressente no sabor do cabra da Azóia o parentesco com o seu correlato de ovelha, também o veludo de cabra da queijaria I’m Cheese não deixa de evocar o ovelha de Azeitão. Esta é provavelmente a lição número um do aspirante a apreciador de queijos: o pasto faz o queijo - pelo menos enquanto este não é adulterado pela pasteurização, retorquirá o aspirante a purista.
 
No que toca ao queijo artesanal, seja ele de cabra, de ovelha, vaca ou burra (falo do raríssimo e caríssimo Pule sérvio), o segredo é simples: trabalho intensivo que obriga a dedicação total. Mal são desenformados e armazenados para maturação e formação da casca, devem ser virados individualmente todos os dias, lavados e limpos regularmente para que as bactérias não sofram contaminação e se atinja o grau de cura desejado. Na minha visita ao asséptico ambiente da queijaria da Quinta de Camarate, pude comprovar como o processo de maturação do queijo artesanal é exigente. Assim como cada jovem que pretende guiar uma mota deve começar por visitar o Centro de Reabilitação de Alcoitão, todo o comprador de queijo artesanal deve perceber que o trabalho intensivo se paga, que a dedicação merece justa recompensa, e que as promoções de supermercado são ofensivas. Um queijo realmente artesanal é uma obra-prima, e o mundo estaria mais equilibrado se a cotação do queijo estivesse anexada ao mercado de arte – ou então o inverso.
 
E como o bom queijo só pode vir do bom pasto, o pastoreio é crucial. Em época em que a pastorícia se tornou talvez uma das actividades mais desconsideradas do já de si desprezado meio rural, foi para mim uma agradável surpresa conhecer as pastoras do rebanho de Santa Efigénia. Em vez de pauladas no dorso e mordidelas de cão nas pernas, o rebanho foi chamado à ordenha aos gritos de “Meninas! Meninas! Venham para cá!”; as mães receberam festas no lombo e os cabritos beijos e abraços, enquanto eram rastreadas carraças e eventuais mazelas. Seguiu-se a catadupa de explicações, que fui anotando mentalmente:
Pode ser que as cabras sejam “safadas” e que “comam tudo e mais alguma coisa”, ao contrário das ovelhas, mas, tal como elas, são “melindrosas” e têm “sete males” – quando param de sofrer de uma maleita, já estão a preparar a próxima. As cabras serpentinas, como todo o gado “autóctone”, são muito sensíveis às mudanças de altitude, de humidade, de temperatura e de pasto. Em geral, as cabras são tanto mais férteis quanto mais longe dos polos e mais próximas do equador; para norte, tendem a ter apenas um cio anual, para sul terão dois e durante períodos bastante mais prolongados. As serpentinas, como as algarvias, são bastante selvagens, pouco habituadas a viver em rebanho. Tendem a fugir, a desaparecer durante vários dias, se não são constantemente vigiadas. O risco, para além de serem atacadas e mortas, é de o leite azedar e vir a contaminar o queijo. À medida que o rebanho cresce, é forçoso recolhê-las de noite, levá-las ao pasto diariamente, e vigiá-las em permanência. A serpentina é uma cabra de dupla aptidão: tradicionalmente, serve tanto para produção de carne como de leite. As de Santa Efigénia são apenas criadas para leite, porque o objectivo de longo prazo é apurá-las dado que a sua produção é actualmente muito reduzida: um litro e meio de leite, em vez dos três e quatro que as raças nordestinas produzem por dia. O seu leite é especialmente rico em proteínas e gordura, o que resulta num queijo muito intenso, mas cuja consistência e relação entre casca e miolo exige ainda muita experimentação, antes de poder ser comercialmente viável. E depois há questões logísticas complicadas: se as cabras não ficam todas prenhas ao mesmo tempo, separá-las para a ordenha é um pesadelo; e se os cabritos são alimentados com leite em pó o seu sistema imunitário fica enfraquecido, mas se mama durante dois meses, põe em risco a viabilidade da produção de leite.
 
Terminei a minha visita com duas convicções: bem se pode dizer que as cabras são “safadas” e que as serpentinas são semi-selvagens mas, pelo menos as de Santa Efigénia, não apenas são naturalmente estetas como são muito dóceis (será porque as pastoras são mais empáticas que os pastores?); por outro lado, aplicam-se ao queijo artesanal as talvez apócrifas palavras da baronesa de Rothschild a propósito do vinho: “O negócio é relativamente simples. Só os primeiros 200 anos é que são difíceis”.

Jornal de Azeitão, Abril 2022
 
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