MANUEL JOÃO RAMOS
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Efigénia, santa africana

18/9/2022

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“Tradição cultural” é uma expressão comum e muito desgastada. O seu sentido deriva, ele próprio, de uma tradição cultural. Uma vez forjado, pela pena da antropologia oitocentista para qualificar a permanência temporal de usos e costumes, e em oposição às noções de modernidade e progresso, o seu sentido raramente foi sujeito a escrutínio ou revisão. É certo que o historiador Eric Hobsbawm introduziu em 1983 o conceito de “tradições inventadas”, para descrever situações em que novas práticas ou objectos são introduzidos numa dada comunidade reclamando uma continuidade ficcional com práticas ou objectos passados. Esta inovação veio provocar uma brecha na visão linear que opunha “tradição” e “modernidade”. Mas ainda assim, porque o enfoque de Hobsbawm era o debate sobre os processos de modernização, a essência da “tradição cultural” permaneceu intacta e inquestionada.
A ideia de “tradição cultural” foi essencial na criação de todo o aparelho legislativo e ideológico que a UNESCO veio a designar como “património intangível”. Não é que este equivalha àquela, mas entende-se que os processos de patrimonialização – de preservação induzida pelas autoridades estatais – se fundamentam na existência e na bondade das tradições culturais. 
Mas não será que as tradições estão sempre a ser (re)inventadas, e que a sua realidade se esfuma apenas quando é consciencializada? Se assim for, a patrimonialização cultural corresponde à sua sentença de morte. Há alguma razão para pensar que assim é, sobretudo quando tais processos de patrimonialização se tornam elementos de estratégias comerciais, muitas delas de promoção política do consumo turístico.
Os casos mais evidentes, em anos recentes, têm sido as candidaturas ao estatuto de património intangível (ou imaterial) da humanidade, da UNESCO, em que o dito “património intangível” se impôs como homónimo politicamente correcto, e comercialmente apelativo, da velha expressão “tradição cultural”. Declarar o fado, os cantares alentejanos ou o “saber fazer” trouxas de ovos como “património intangível” não serve para preservar tradições, mas para as ossificar e as subjugar à indústria turística.
Vem isto ao caso das minhas recentes pesquisas amadoras em torno do queijo de Azeitão, e sobretudo da curiosa inovação que é a produção, ainda experimental, de queijo “de Azeitão”, feito a partir do leite de cabra serpentina, na Quinta de Camarate. Já aqui referi (num texto publicado em Maio passado) o misterioso queijo das cabras serpentinas. Mas deixei de fora um dado curioso, que me tem suscitado algumas interrogações históricas admitidamente especulativas. 
O rebanho de cabras serpentinas (i.e., de Serpa) que produz o almejado leite cru vive e pasta numa pequena quinta à entrada de Setúbal. Ora, essa quinta tem um nome surpreendente: Quinta de Santa Efigénia. Digo surpreendente porque a memória desta santa é muito rarefeita em Portugal. Existe, claro, uma igreja de Santa Efigénia no Porto e outra em Penela. Um dos altares da igreja de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, é dedicado a Santa Efigénia e a Santo Eslabão. Outras ocorrências do seu culto são ainda mais esparsas e apagadas: uma pequena imagem de Santa Efigénia em terracota no Museu Municipal de Portalegre; duas estatuetas carmelitas representando São Eslabão e de Santa Efigénia na igreja do Carmo, em Faro. E pouco mais... No Brasil, pelo contrário, Santa Efigénia é muito popular desde o início do séc. XVIII, altura em que foi construída a igreja a ela dedicada em Ouro Preto, e em que se começaram, sob o seu patronato, a estabelecer diversas irmandades de escravos alforriados. Santa Efigénia foi uma princesa abissínia (ou, segundo outras fontes, núbia), convertida pelo apóstolo São Mateus; por seu lado, Santo Eslabão, rei de Axum no séc. VI, foi grande promotor do cristianismo em ambas as margens do Mar Vermelho. O culto destes santos, assim como o de São Benedito, foi um dos principais instrumentos da Igreja Católica no Brasil para converter os escravos africanos, em particular através de obras hagiográficas como: Os dois atlantes de Etiópia. Santo Elesbão, Imperador XLVII da Abissínia, advogado dos perigos do mar & Santa Ifigênia, Princesa da Núbia, publicado pelo frade carmelita José Pereira de Santana, entre 1735 e 1738.
A referência ao nome de Santa Efigénia numa quinta à entrada de Setúbal mereceria estudo histórico. Dadas as temperaturas estivais, optei por não o levar a cabo, limitando-me a notar algumas particularidades que poderão, ou não, ter alguma ligação entre si. Tal como aconteceu no Brasil, o culto dos santos Eslabão e Efigénia terá sido instrumental no processo de conversão de populações escravas e alforriadas de origem africana, em particular na Península de Setúbal e Alentejo. Na senda da descrição de populações descendentes de africanos no Vale do Sado, por José Leite de Vasconcelos, na sua Etnografia Portuguesa, os historiadores Isabel Castro Henriques e João Moreira da Silva publicaram o livro Os “Pretos do Sado”. História e Memória de uma Comunidade Alentejana de Origem Africana. Aí, referem-se especificamente às irmandades e confrarias religiosas do Vale do Sado como evidência do sucesso da conversão ao catolicismo dos muitos escravos e alforriados de origem africana para ali levados. A chamada Ribeira do Sado, faixa ribeirinha que liga Setúbal a Alcácer do Sal, era extremamente insalubre, devido à presença do mosquito anopheles, causador do paludismo ou febre terçã, o que terá suscitado o uso de mão de obra de escravos africanos, supostamente resistentes à doença, para trabalhar na agricultura e nas salinas. Por outro lado, diversas menções a africanos e mestiços em arquivos nacionais e locais, assim como alguns dados da toponímia azeitonense, como por exemplo o Pinhal de Negreiros, sugerem a possibilidade de o transporte de escravos para as plantações e salinas do Sado ter sido, pelo menos em parte, feito através da antiga estrada que ligava Almada a Setúbal.
Não custa imaginar que a Quinta de Santa Efigénia tenha recebido o nome devido à presença de mão de obra africana, ou eventualmente à existência de uma ermida que funcionava como sede de uma irmandade de antigos escravos africanos em Setúbal, ou até propriedade de família crioula africana. Especulações, eu sei, mas suportadas por inúmeros documentos de arquivo que comprovam a antiguidade da presença de populações africanas na Península de Setúbal, e pela evidência de que as tradições culturais, e em particular, religiosas, que se lhes encontram associadas estão longe de estar consciencializadas na nossa memória histórica actual. Por essa razão, esquecidas e apagadas como estão, têm escapado a ser patrimonializadas e, consequentemente, transformadas em instrumento de comércio – seja turístico, seja político. Com alguma sorte, ninguém que leia este texto cairá na tentação de valorizar a memória de Santa Efigénia.

Jornal de Azeitão, Junho 2022
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