MANUEL JOÃO RAMOS
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PEXITOS

9/7/2020

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Fotografia de Luis Carlos Chagas Rodrigues (2006)
É (ainda) comum ouvir às gentes “do campo” arrabidino a expressão “pexito” para identificar um habitante da vila de Sesimbra. É um termo popular que realça, senão antagonismo, pelo menos uma certa diferenciação tradicional entre duas identidades locais.
A tradição popular é um bicho estranho. Passa de geração em geração sem suscitar dúvidas, mesmo quando o seu sentido se fragmenta e a compreensão se vai perdendo. Umas vezes é renovada, outras esquecida. Mas também acontece que os enigmas que nela se acumulam ganhem, com o tempo, o curioso direito de nela subsistir sem ser questionados ou reinterpretados. A tradição é reportada e revivida sem despertar dúvidas: conta-se assim ou faz-se assado porque sim. A falta de curiosidade em relação à razão de ser de um enigma torna-se ela própria parte integrante da tradição.
Tomemos como exemplo o caso da lenda da origem do culto do Senhor Jesus das Chagas, padroeiro da vila de Sesimbra. Não obstante algumas variações pontuais, a história contada pouco tem mudado nos últimos séculos:
 
No período da reforma anglicana, em início do séc. XVI, em que a destruição das imagens dos santos foi ordenada por Henrique VIII, a sua mulher procurou preservá-las colocando-as em caixotes e lançando-as ao mar. Entre elas, contava-se a imagem de Jesus que veio a aparecer milagrosamente erigida sobre a Pedra Alta, no areal de Sesimbra. No entanto, faltava-lhe um braço e nenhuma das tentativas de o substituir vingou.
Certo dia, uma velha que recolhia madeira na serra para a sua lareira encontrou um tronco, possivelmente de zimbro, que ao arder sem se queimar revelou ser o braço que faltava à imagem de Jesus.

 
É estranha a inclusão, na lenda, da imagem de Jesus no catálogo das imagens de santos a destruir pelos iconoclastas ingleses. Seria apressado presumir que ela se deveu a uma deficiente compreensão, por parte dos católicos sesimbrenses, do sentido das reformas protestantes do norte da Europa. Como não podemos chegar a saber o porquê da inclusão, fiquemo-nos pela constatação de que tal inclusão não é problemática para quem conta e ouve a lenda.
Que a imagem tenha aparecido sem braço e que este tenha sido descoberto, não no mar mas na serra, e por uma velha, também não causa perturbação nem origina qualquer explicação – apesar de ser óbvia a analogia com a sarça ardente do episódio da epifania de Moisés na montanha. É, tal como a própria aparição milagrosa da imagem na Pedra Alta, um enigma que se quer enigma – um mistério, propriamente dito. Podemos, claro, imaginar que a velha representa uma figura de curandeira ou mesmo de parteira, dadas as propriedades farmacológicas que eram antigamente atribuídas ao zimbro, mas a verdade é que o episódio não requer interpretação por parte de quem o relata ou o escuta.
A lenda é contada e revivida em Sesimbra durante a festa e procissão do Senhor Jesus das Chagas a cada dia 4 de Maio, dia em que a velha encontrou o braço na serra (este ano, pela primeira vez, celebrada à porta fechada, devido à pandemia). Não requer interpretação nem explicitação. Mas, como o gato que se esconde com a cauda de fora, relembra todos os anos que a imagem do padroeiro é compósita: se o corpo é de origem marítima e migratória, o braço é de local e serrano, e é nele que se concentra a sua força taumatúrgica. O braço enxertado, tal como a distinção popular entre “pexitos” e “gente do campo”, conta uma história que não necessita ser explicitada para ser entendida. Um amador de história local pode, ainda assim, suspeitar que a lenda sesimbrense evoca uma relação secular problemática entre dois modos de produção e de vida que, ao longo de séculos, marcaram a rivalidade entre Azeitão e Sesimbra e acabaram por levar, primeiro, à desanexação da freguesia de São Lourenço do município de Sesimbra (em 1729) e depois, por irracionalidade administrativa do liberalismo oitocentista, à sua diluição no município de Setúbal (em 1855).
 
 Jornal de Azeitão, Julho 2020
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