MANUEL JOÃO RAMOS
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Mentiras e más ideias

27/8/2021

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Fonte: http://oescapemaisrouco.blogspot.com/
Diz o povo que a mentira tem a perna curta, mas sempre me perguntei por que razão o adágio não explica qual das pernas sofre da deficiência. Nunca fui metódico a explorar esta dúvida, até porque me faltam dados empíricos para formular hipóteses credíveis de resposta. Já o historiador das ideias Arthur Lovejoy ensina no seu livro The Great Chain of Being, de 1936, que as más ideias têm a perna longa. Quando uma ideia, boa ou má, passa ao papel (ou, no caso que o ocupou, ao pergaminho), fica indefesa face aos olhos dos leitores. Não pode escolher entre quem a lê e quem a treslê, e quem acha que a leitura o faz atingir a sabedoria sofre da arrogância do ignorante. Terá sido isto que Sócrates disse a Fedro, se acreditarmos que Platão transcreveu fielmente o diálogo, e que eu refiro fielmente Platão. O argumento de Lovejoy é convincente: segundo ele, Platão teve a má ideia de escrever a “alegoria da caverna” no final da República; ao estipular que entre o mundo material e o mundo espiritual há uma barreira intransponível, ditou os termos de uma visão do mundo que se fazem ainda sentir 2.500 anos depois, no chamado mundo ocidental. Foi uma má ideia que, escrita, cedo perdeu o único defensor credível, o seu autor (nem sabemos se a ideia é de Sócrates ou de Platão). Foi uma má ideia que se infiltrou por todo o lado no pensamento euro-americano, da religião à política e à ciência. Segundo Lovejoy, foi mesmo um “monumento à estupidez”.
Temos assim que as expressões que passam por “verdadeiras” podem ter a perna longa (se acreditarmos que 2.500 anos é evidência de lonjura) e as expressões “falsas” perna curta (no sentido em que podem rapidamente ser contraditas).  Entrando pelos ouvidos ou pelos olhos, infectam como um vírus as circunvalações do cérebro e, se entram nele com o selo de “verdade”, podem ter consequências devastadoras.
Como sabemos, as ideias não se transmitem apenas de boca a boca ou da escrita para os olhos. Tomemos os dois seguintes casos:
- uma autarca (digamos, setubalense) vê na possibilidade de trazer para o concelho a mais importante colecção de arte contemporânea em Portugal; fecha os olhos à torrente de ilegalidades urbanísticas que transformaram uma antiga estação rodoviária em réplica absurda de palácio setecentista em Vila Fresca, para assim poder exibir créditos de “obra feita” em eleições locais; o pretenso dono da colecção de arte é apanhado nas teias das suas mentiras e é detido pelo ministério público; a ideia de transformar um edifício dos anos sessenta em pseudo-palácio sobrevive à mentira porque não passa pela cabeça da autarca demolir o edifício ilegal e pedir desculpas públicas à população.
- uma autarca em fim de carreira (digamos azeitonense) vê a possibilidade de deixar impressa no centro da vila a marca da gentrificação (dito de outro modo, da “renovação”) urbana; por motivos que só a burocracia, o subfinanciamento e a pandemia conhecem, a ideia de pedonalização da via principal da vila não se materializa; mas a ideia da executar e mostrar “obra feita” é demasiado tentadora e por isso, em vez de repavimentar a rua com calçada, ordena a repavimentação com asfalto; o resultado é que em vez de dar precedência aos peões e qualidade de vida à gentry que tarda a instalar-se no centro da vila, se cria uma pista automóvel que atemoriza os peões e estraga as noites aos moradores envelhecidos ainda não abandonaram o centro.
As mentiras políticas têm perna curta, mas resistem e infectam a vida dos cidadãos porque as más ideias têm perna longa – venham elas do lado esquerdo ou do lado direito. Daí eu preferir não dar ideias a ninguém por não poder determinar se são boas ou más; daí eu preferir não dizer que o pseudo-palácio ilegal podia ser arrasado e a conta da demolição enviada ao pretenso dono; daí eu preferir não dizer que seria boa ideia instalar medidas de acalmia de tráfego (lombas, etc.) na Rua José Augusto Coelho, em Vila Nogueira, e parar com as corridas nocturnas de motos. É que ninguém quer passar por estúpido, não é?
 
 Jornal de Azeitão, Agosto 2021
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