MANUEL JOÃO RAMOS
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(Ar)riscar o convento

12/11/2021

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Tive, no passado dia 25 de Setembro, a oportunidade de participar numa visita organizada pelo grupo Arrábida Sketchers, a dependência azeitonense da rede Urban Sketchers Portugal, ao Convento de Nossa Senhora da Arrábida. O propósito era deambular pelos espaços daquele conjunto alcandorado na falésia sobranceira à baía do Portinho da Arrábida, e ir aí desenhando livremente.
Seria fastidioso repetir aqui lugares-comuns amplamente conhecidos e reconhecidos sobre a beleza rara da paisagem arrabidina, a harmonia do enquadramento da arquitectura conventual franciscana no espaço natural, e a riqueza das tonalidades cromáticas do prisma formados pela arriba suave, pelo espelho marinho e pelo páramo outonal. Regressar ao espaço do Convento da Arrábida é renovar o deleite dos olhos.
Mas tenho de confessar que, por disposto que estava a deixar-me absorver e arrebatar pela beleza e quietude do local, não pude durante a visita e durante os momentos dedicados ao desenho esquecer o amargo que me causa a história recente daquele espaço. É fácil fazer desenhos “bonitos” sobre o intrincado casario, mas muito mais difícil fazer neles ressoar os achaques de que ele sofre. Neste caso, uma palavra vale mil desenhos.
A brancura do convento é a da tinta plástica para exterior, não a da cal. A textura das paredes é a do cimento industrial, não a do reboco tradicional. A tranquilidade do espaço é equivalente à de um cemitério abandonado, não à da clausura habitada por monges contemplativos. O convento não é hoje mais que um cadáver mumificado que serve de cartão-postal complementar a uma pousada de construção recente, convenientemente acoplada por um parque de estacionamento, uma piscina e uma sala de conferências.
Não é fácil representar através do desenho os efeitos tácteis do restauro feito a cimento e tinta plástica. Por isso, cumpri a missão – desenhar o convento – mas com um amargo de boca e de olhos por não conseguir transmitir os podres da sua situação presente e a sua previsível degradação futura. Restaurar paredes seculares a cimento é condená-las à acção erosiva do salitre e à deterioração estrutural, substituir a cal por tinta plástica é impedir as paredes de respirar e desumedecer sazonalmente.
A Casa de Palmela adquiriu o arruinado e abandoado convento em 1863, após a extinção das ordens religiosas, que ocasionou pilhagens e destruições várias dos seus interiores. Nos anos 50 do século XX, foram realizadas algumas obras de manutenção, mas depois disso o estado dos edifícios voltou a degradar-se rapidamente. Quando a Fundação Oriente comprou o convento e os 25 hectares envolventes em 1990, os telhados encontravam-se parcialmente destruídos e os edifícios ameaçavam ruína.
Graças a um prometido projecto de restauro, a fundação conseguiu erigir em pleno parque natural um complexo turístico de apreciável dimensão, que rentabiliza através do seu aluguer para retiros, colóquios, seminários, cursos, etc. É dado assente que todas estas actividades são complementadas por visitas guiadas ou livres ao espaço do convento, que se tornou assim um anexo recreativo de programas de turismo cultural e académico.
Não me cabe demandar os motivos que levaram a Direcção-Geral dos Monumentos a aceitar que a Fundação do Oriente procedesse à cimentação de uma das mais valiosas pérolas da arquitectura conventual portuguesa. Contra factos ocorridos há trinta anos, os argumentos não passam de chuva no molhado. Mas vale ainda assim a pena lembrar que este “restauro” apressado e invasivo se inscreveu sobre um estado de degradação avançada do convento devida ao facto de o seu anterior proprietário, o duque de Palmela, não ter durante décadas executado quaisquer obras de manutenção e preservação do convento.
A visita às celas dos monges revela ainda hoje os sinais de um curioso e esquecido acto de vandalismo. À excepção de uma cela, onde ainda se encontra um catre de cortiça que era a cama habitual dos frades, todas as outras estão ou vazias ou mobiladas com camas e armários dos anos oitenta. Este triste mobiliário é o que resta da passagem da comunidade Moonie – a comunidade evangélica de discípulos do coreano Reverendo Moon – que ocupou o convento durante mais de uma década com autorização explícita da Casa de Palmela, e muito  contribuiu para a sua degradação.
O republicano que há em mim tem algumas razões para duvidar do espírito conservador dos herdeiros da aristocracia portuguesa. A decisão de Luís de Sousa e Holstein Beck de ceder o convento à comunidade Moonie foi tão azougada como a de ceder ao senhor Alho a exploração das pedreiras que hoje em dia ameaçam fazer ruir o palácio dos Duques de Palmela no Calhariz.
 
 Jornal de Azeitão, Outubro 2021
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