Certamente que o ministro da altura, agora presidente da Assembleia da República, não antecipou que, quase exactamente 10 anos depois, dois drones AR3 VTOL da mesma empresa Tekever viriam a protagonizar um duplo ataque a estações de radar de alerta antecipado do sistema de defesa estratégica nuclear da Federação Russa, em Armavir e em Orsk, no sul do país. E quase ninguém poderia também prever que, após o mediático falhanço do primeiro lançamento do AR4 nos idos de 2014, um tão profundo manto de silêncio viesse pousar sobre o temerário (ou insensato) sucesso dos AR3 na guerra que opõe hoje a Rússia à Nato por interposta Ucrânia.
Ao desabilitar esses dois radares, o ataque dos “drones” teve como consequência cegar momentaneamente a parte do complexo estratégico nuclear russo que cobre o território iraniano e a base naval norte-americana no Golfo Pérsico. O ministério da defesa ucraniano assumiu de imediato, e orgulhosamente, o feito, mas sem se pronunciar sobre a irrelevância do ataque no que respeita aos níveis táctico e operacional do conflito (os radares – de longuíssimo alcance – não têm qualquer utilidade militar no campo de batalha ucraniano). E também não se pronunciou de todo sobre o facto de a programação e operação dos drones ter sido feita por especialistas militares britânicos, de a tecnologia AI que os conduziu até aos alvos ser norte-americana, e de a sua manufactura ser portuguesa.
Nenhuma destas informações é propriamente secreta ou confidencial. O ataque, as potencialidades dos “drones”, e a nacionalidade dos operadores são descritas em publicações internacionais dedicadas a assuntos militares. Também não é segredo que a fábrica da Tekever se situa nas Caldas da Rainha, que a sua sede fica num escritório partilhado no Largo do Duque de Cadaval, aos Restauradores, e que a empresa é não só fornecedora oficial da Marinha portuguesa, mas também do Ministério da Defesa britânico. Se até eu, que de jornalismo de investigação nada sei, consigo ter acesso a estas informações públicas, por que razão não foi este óbvio protagonismo luso no campo da alta tecnologia militar notícia de abertura de todos os telejornais nacionais no início de Maio passado?
Lê-se na página internet do Conselho Europeu de Relações Estrangeiras, onde se detalham as implicações da doutrina de dissuasão nuclear russa, que “o parágrafo 19c (da doutrina) enuncia que a Rússia retaliará usando armas nucleares contra um ataque convencional que desabilite as suas forças nucleares ou a sua estrutura de comando: esta provisão emula a postura nuclear norte-americana revista em 2018”. Tem sido deixado muito claro, nestes últimos tempos, pela presidência russa, e pelos seus ministros da defesa e dos negócios estrangeiros, que ataques a alvos críticos russos provenientes da Ucrânia que impliquem operação do armamento por parte de intervenientes de países ocidentais não os exima das responsabilidades e das suas consequências. Poderíamos discutir se se trata, por parte das autoridades russas, de uma ameaça ou de um alerta, mas pouco importa: o relevante é que a potencialidade, mesmo que mínima, de um tal acto causar um confronto nuclear de efeitos absolutamente devastadores para toda a humanidade merece estar sempre presente nas nossas consciências e que, para que isso, as nossas consciências não devem ser mantidas em total ignorância.
Temos, portanto, uma empresa portuguesa dedicada ao fabrico de “drones” de longo alcance e grande autonomia, listada como fornecedora oficial do ministério da defesa português que, em parceria com a indústria de defesa norte-americana e com o dispositivo operacional britânico na Ucrânia se encontra envolvida num duplo ataque das forças armadas ucranianas a instalações críticas do dispositivo nuclear estratégico da primeira potência nuclear do mundo. Seria risível o catarro da formiga, não tivesse o assunto os contornos de uma gravidade trágica. Há em Portugal, tradicionalmente, um certo embandeirar em arco com façanhas de gosto questionável e de efeitos imprevisíveis: a estalada fundadora de um filho na sua mãe, uma santa que transforma rosas em pão e pelo caminho destrói o sistema comunitário das irmandades do Espírito Santo, um navegador de dobra cabos da Boa Esperança e bombardeia indianos incautos para obter vantagens económicas, um almirante que concebe um plano para, em aliança com o soberano cristão etíope, tomar Meca e destruir a Caaba (o símbolo mais sagrado da religião muçulmana), o anúncio da chegada do Quinto Império comandado por um brangantino, um rei que declara a independência de uma colónia para evitar o fim do tráfico atlântico de escravos, uma pastorinha portadora de segredos geo-estratégicos... E, pelo meio, uma longa história entretecida de vassalagens às elites imperiais britânicas.
Gostamos de imaginar que vivemos alheados dos males do mundo, num poético pequeno “jardim à beira-mar plantado”, como cantou Tomás Ribeiro. Mas o refrão do “orgulhosamente sós” deixou de capitar há muito, e as guerras “do Ultramar” não puseram um ponto final na nossa costela bélica: participámos na guerra contra a Sérvia, envolvemo-nos na invasão e ocupação do Iraque e do Afeganistão, intervimos na Líbia e no Sahel, e agora, por via das nossas auto-impostas obrigações como membros da OTAN, estamos a ser, “como sonâmbulos”, engajados numa guerra imensamente complexa sem nos autorizarmos um debate infundido por um mínimo de sanidade. Mas, se apelarmos à musa da história, percebemos tudo: a noção de debate são, crítico, estruturado, consequente, é tão estranha ao carácter português como os alimentos o são ao estômago por onde passam. Por isso, estando em causa perguntarmo-nos sobre o bom senso de participarmos em ataques imprudentes a instalações críticas de um país que demonizamos instintivamente, respondemos metendo a viola no saco, deixando correr o marfim e tentando passar entre os pingos da chuva, na esperança de que ela não venha a ser demasiado radioactiva.
O Público, 13 Junho 2024